Só amamos as batalhas difíceis

(José Sócrates, in Público, 12/04/2021)

(Esta reflexão sobre o quadro político e mediático em que ocorreu e continua a ocorrer a Operação Marquês, é um bem conseguido exercício de análise, uma desmontagem coerente dos processos de utilização da Justiça como arma de combate político, nos anos mais recentes em Portugal.

Contudo – independentemente de ser ou não culpado de qualquer crime -, há algo de que Sócrates se deve penitenciar: ter tido uma conduta pessoal que forneceu à Direita o terreno propício para convocar a Justiça para o combate político. É que não basta a mulher de César ser séria. É preciso parecê-lo…

Estátua de Sal, 12/04/2021)


O processo Marquês nunca foi um processo judicial, mas um processo político. Foi concebido e executado para me afastar do debate público e para impedir a minha candidatura a Presidente da República, que a direita dava como certa. Teve igualmente como objetivo criminalizar as políticas do Governo que liderei e, desta forma, legitimar as políticas de austeridade do governo que me sucedeu. Em dois pontos constituiu um sucesso absoluto – o PS perdeu as eleições legislativas e o candidato Marcelo Rebelo de Sousa pôde ser eleito sem que o PS apoiasse qualquer candidato presidencial, o que aconteceu pela primeira vez na democracia. No entanto, como tantas vezes aconteceu na história, o golpe, vítima do seu próprio êxito, escapou das mãos dos seus artífices. A extrema-direita viu nele a oportunidade para julgar o regime e a democracia – afinal de contas era um antigo primeiro-ministro acusado de corrupção. De certa forma, o processo Marquês, e as diversas cumplicidades que com ele se estabeleceram, constituiu um marco importante no nascimento e afirmação do primeiro partido da extrema-direita no Portugal democrático.

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O processo teve também uma longa preparação. Antes dele houve duas outras tentativas de criar um processo judicial contra mim – o Freeport e as chamadas “escutas de Belém”. Ambas foram desmascaradas e ambas falharam. A primeira teve origem no gabinete do primeiro-ministro de então; a segunda na casa civil do Presidente da República. Quando decidiram tentar de novo, asseguraram-se que toda a gente estaria a seu lado – um Governo, uma maioria, um Presidente e uma procuradora-geral. Faltava um juiz. A obrigação legal do sorteio foi então substituída pela “atribuição manual” e o jogo foi viciado. Agora o juiz era o seu juiz, escolhido por quem nada quis deixar ao acaso. Eis a trapaça, agora denunciada na decisão instrutória. Eis o escândalo de que ninguém parece querer falar.

Nada disto tinha tradição na política portuguesa. A instrumentalização do combate à corrupção para combater o inimigo político é mais própria de outras latitudes. Na verdade, o Governo Passos Coelho foi o primeiro em democracia a iniciar esta caça ao homem. Após as eleições, a primeira preocupação foi a de criminalizar as políticas do Governo anterior, única forma que encontraram de legitimar as suas. A ministra da Justiça da altura deu o tom – “acabou a impunidade”. A partir daí valeu tudo: inquérito sobre gastos dos gabinetes, inquérito sobre as PPP, inquérito sobre a EDP, inquérito sobre a PT, sobre o TGV, sobre a diplomacia económica na Venezuela, sobre a Parque Escolar, estas últimas devidamente acondicionadas no chamado processo Marquês. Escapou alguma coisa? Talvez o Magalhães, o inglês na primária, as Novas Oportunidades. Muito por onde escolher.

Quando chegou a primeira imagem da detenção, estava tudo a postos. O clima de ódio instalado, a televisão da lei e da ordem atribuída à Cofina e o futuro chefe da extrema-direita com emprego – o de comentador principal da Operação Marquês. A televisão dá-lhe visibilidade e o líder do partido a oportunidade de se lançar na política. Depois de um pequeno teste numa campanha municipal e de uma primeira fala sobre ciganos, fica absolutamente claro que a direita salazarista nunca deixou de existir e fica igualmente claro o que quer ouvir. Chega de uma direita tímida e civilizada. Depois de Trump e de Bolsonaro chegou o momento de afirmação – violência, ódio e intolerância. A moderação e o civismo democrático são filhos do politicamente correto e é preciso acabar com isso. O momento simbólico dá-se quando os polícias se manifestam em frente à Assembleia da República e cantam o hino nacional voltados de costas para o Parlamento. Aplaudem freneticamente o deputado de extrema-direita que é também o único a discursar aos manifestantes. Têm agora à sua frente tudo aquilo com que há anos sonharam – ordem, pátria, autoridade, os eternos ontem.

A esquerda, pelo seu lado, finge e finge e finge: o Partido Comunista considera as reivindicações dos polícias justas; o Bloco de Esquerda critica o Governo por ter sido tão indiferente a essas legítimas aspirações; e o Partido Socialista lembra tudo o que fez pela organização policial. Os manifestantes sentem imediatamente o cheiro da covardia e garantem que doravante serão os donos das ruas. A manifestação, na verdade, nada tem a ver com reivindicações profissionais. Ela pretende, isso sim, afirmar uma nova cultura política, a caminho de um estado policial.

Neste longo período, que tem agora mais de dez anos, a crise, o terror, os refugiados e os imigrantes criaram o ambiente propício para endurecer as leis, dar mais poderes às autoridades e enfraquecer as liberdades individuais. Como sempre, a caçada foi feita de arrasto, sem distinguir culpados e inocentes. O que importa é mostrar serviço: acusar, difamar, insultar. Tudo é suspeito, tudo é criminoso, até se provar que não é. Eis o caminho que despertou a memória histórica da inquisição e a cultura penal por detrás dela – o julgamento passa a ser feito por quem acusa e o direito de defesa e a presunção de inocência, bases do direito moderno, transformam-se lentamente em presunção pública de culpabilidade. A “morosidade insuportável” dos julgamentos acabou. Nós, procuradores e polícias, faremos a nossa própria justiça – já não precisamos de juízes independentes e imparciais. Foi este o caldo cultural que esteve no bojo do processo Marquês, que o permitiu e que o impulsionou. E ao qual a esquerda – toda a esquerda – assistiu em silêncio.

No final, anotemos o essencial. Primeiro, todas as alegações contidas na acusação – a fortuna escondida e a corrupção – caíram com estrondo. Segundo, fica agora absolutamente claro que, durante o meu mandato como primeiro-ministro, não foi identificada nenhuma conduta contrária aos deveres do cargo. Nunca. Pronto, este foi o primeiro passo.

No entanto, o juiz de instrução não resistiu à tentação de criar novas acusações. Pronuncia-me por um crime de que nunca estive acusado e do qual nunca me pude defender. Transforma o alegado “testa de ferro” em “corruptor” sem comunicar aos visados esta alteração de factos. Passei sete anos a defender-me da mentira da fortuna escondida e no final ouço, pela primeira vez, que há indícios (que alguns imediatamente transformam em provas e em sentença transitada em julgado) de um crime que já prescreveu. Essa acusação é tão injusta e falsa como as outras e dela me defenderei mais à frente.

Por agora, que fique claro que as acusações de corrupção no TGV, na diplomacia económica com a Venezuela, em Vale do Lobo, na PT e na ligação aos interesses do BES eram fantasiosas, incongruentes e sem nenhuma lógica, para usar as expressões do juiz. E, todavia, tive que as ouvir todos os dias reproduzidas nas televisões como se fossem factos provados. E, todavia, foi por elas, com base nelas, que foi decretada a prisão, pormenor que os moralistas de turno decidiram pôr de lado, por inoportunidade.

Bom, a batalha foi longa e dura, mas a solidão do combate deu-lhe uma beleza singular. Houve momentos em que parecia nada mais existir, a não ser essa vontade interior que “mantém acordada a coragem e o silêncio”. Não, não esqueço a ignomínia, mas celebro a oportunidade de vencer esta etapa. E vencerei a próxima porque nunca cometi nenhum crime. Para alguns esta foi a vitória possível. Talvez. Seja como for, só amamos as batalhas difíceis.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


19 pensamentos sobre “Só amamos as batalhas difíceis

  1. Quando deviam ter apoiado este para não deixar ir para lá o Passos que ainda é pior, aliaram-se ao Passos para o derrubar !!!!!

    Agora que o gajo está desmascarado como corrupto é que se lembraram de o apoiar, quando nem já nem o Costa e o PS o apoiam.

    A esquerda estar a ligar-se a corruptos completamente queimados na opinião pública – e que nem sequer são de esquerda – é esperto à brava.

    Depois ainda insultam o povo de racista e querem “cancelar” a história e a cultura portuguesa.

    Agora a sério, vocês juraram que hão-de fazer o Ventura primeiro ministro?

    Já não basta terem posto o Passos no governo ?

  2. Pedro:
    Se tens traves nos teus olhos e paredes nos ouvidos, para quê argumentar ?~
    Ao teu destino, em frente, marche !!!

    • Caro chevrolet

      “frente, marche”

      Já tinha reparado no brilhantismo da vossa argumentação.

      Ou fingem ignorar as criticas ou ameaçam de agressão e exigem censura.

      Mas fica-vos muito bem esta onda de defensores do Sócrates e do Ricardo Salgado.

      Assenta-vos como uma luva.

  3. A democracia tem a virtude de ao menos nos permitir a possibilidade de um olhar crítico para a realidade à volta. Quanto mais ela estiver consolidada e amadurecida, maior será o dever de evitar o afunilamento do nosso juízo e o encarneiramento dos nossos comportamentos sociais.O actual ambiente de histeria justiceira e opinativa por causa do processo Marquês faz-me pensar que a Inquisição deixou na nossa alma vestígios ainda não suficientemente delidos dos seus métodos e das suas práticas tenebrosas, como se fossem autênticos estigmas psicológicos.Parece que só falta submeter José Sócrates a um auto-de-fé, queimando lieralmente o seu corpo no largo do Rossio, uma vez que a sua alma, essa, já ardeu vezes sem conta nos vários postes públicos que a comunicação social elegeu de acordo com os seus critérios editoriais e o seu proveito comercial. Só falta cumprir este último acto de justiça popular para que o país possa exorcizar os seus temores e os seus fantasmas, libertando-se finalmente de si próprio.Os algozes até já ensairam cortejos pelas ruas a convocar o povo para o acto final.Como pessoa de bem que julgo ser, mas também como cidadão que preza a democracia, estou preocupado. É com estas palavras de introdução que vos envio os dois textos em anexo, da autoria de duas pessoas que pensam livremente pela sua cabeça.

      • Está aqui, acho.

        Da vergonha (e da falta que ela faz)
        13 ABRIL 2021 ÀS 8:49 POR VALUPI

        […]

        Por fim, donde brota o júbilo celebrativo desta gente, desta gente, desta gente?

        Como são possíveis o contentamento e o alívio perante o medonho retrato judicial, provisóriO, do antigo primeiro-ministro, pronunciado por seis crimes, que emerge deste despacho? Como é possível continuar-se a admirar e a louvar tão persistente e devotadamente a pessoa de José Sócrates? Que críptica e bizarra concepção tem esta gente — e, referindo-me a Valupi e sequazes, do Aspirina B, a Manuel Gomes, e apaniguados, do Estátua de Sal, ou à senhora e sua corte de bajuladores, do Um Jeito Manso, não estou a falar propriamente de desprovidos e desabrigados da inteligência e da cultura — do escrúpulo? Intriga-me deveras a noção que esta gente tem de asseio, a ideia que esta gente tem de integridade ou de honestidade [Valupi diz sempre “honestidade intelectual”, como se houvesse várias], o valor que esta gente dá à palavra. Pela relativa consideração em que as tenho e pela atenção assídua que lhes presto, quero pensar que o mal destas pessoas seja o de lerem pouco e ouvirem mal. A menos que sejam da família ou José Sócrates, perdão, Carlos Santos Silva, lhes pague: a família desculpa tudo, o dinheiro manda em quase tudo.

        Oferta do nosso amigo Plúvio.

          • […]

            «Que críptica e bizarra concepção tem esta gente — e, referindo-me a Valupi e sequazes, do Aspirina B, a Manuel Gomes, e apaniguados, do Estátua de Sal, ou à senhora e sua corte de bajuladores, do Um Jeito Manso, não estou a falar propriamente de desprovidos e desabrigados da inteligência e da cultura — do escrúpulo? Intriga-me deveras a noção que esta gente tem de asseio, a ideia que esta gente tem de integridade ou de honestidade [Valupi diz sempre “honestidade intelectual”, como se houvesse várias], o valor que esta gente dá à palavra.», sublinho.
            ..
            Nota. Responde é ao Plúvio, pá, não te armes aos cucos que a tua honra está quase ao nível da do Valupi!, perdão, da do juiz Ivo Nelson de Caires Batista Rosa!, perdão-perdão, da do cabrão do José Sócrates mentiroso. Vá, aguardamos…

          • Ainda nada? Mesmo que ponham en causa a tua honra aqui à frente de toda a gente tens cagufa de te defenderes, ó d’A Estátua?

            #socratete

            • Mas defender de quê? De um escriba que só tu lês e a quem dás crédito? As prosas do tipo são tão extremistas e facciosas que não tem qualquer credibilidade. Os gajos, como tu e ele, que padecem de “socratite” aguda, pelos excessos em que caem, pela cabeça perdida que revelam, pelo ódio de estimação que cultivam, são os melhores defensores do Sócrates: são tão psicopatas a atacá-lo que lhe permitem defender-se com as teorias da conspiração, independentemente de conspirações terem ou não ocorrido. Por isso, tu – e dá recado ao teu amigo diluviano -, deixem de me melgar com a vossa assanhada doença. Mesmo que tivesse estudado medicina – que não estudei -, teria ido para pediatria e nunca para psiquiatria que é a especialidade que trata a “socratite” aguda.
              Se quiserem abro aqui uma campanha de crowdfunding para pagarem as consultas. Vão ao Dr. Gameiro que parece que é bom.

              Happy now? 😉

              • «Não sei se o Estátua de Sal está infectado com SARS-CoV-2 e desenvolveu Covid-19, mas sei que isto é uma semana negra para este blog.»
                – Carlos Marques, ontem.

                Nota. De negro vestida, ó Karl, mas usando o socrático lápis azul!

                #socratete

  4. Este processo ilutra bem os malefícios da vaidade. Quem quer viver faustosamente sem ter rendimentos legais e impostos em dia, mais tarde ou mais cedo acaba na justiça…

  5. A Lei de Lynch e as fogueiras da Inquisição
    O atual processo mediático, em que comentadores, pseudo jornalistas e pseudo moralistas arrastam o bojo pela lama tentando cada qual agradar mais à turba sedenta de sangue, depois de ser durante anos instrumentalizada, faz-me pensar que não gostaria de ver ninguém cair nas mâos daqueles que, em Portugal, verdadeiramente, estão acima da Lei.

  6. Telegrama

    Caro Arthur:
    reencaminha esta minha missiva para o Manuel Gomes
    e diz-lhe que eu não fico aborrecido se ele publicar
    todas as nossas notícias do Público
    sobre o José Sócrates (cfr. o meu editorial, infra).
    Abraços.

    Assinado: Manuel Carvalho

    Sócrates, um mártir da democracia

    José Sócrates ficou conhecido
    entre muitas outras e tristes
    coisas como o político das
    narrativas e depois de conhecer
    o despacho de Ivo Rosa inventou
    mais uma: a de que tudo o que esteve
    na base da sua investigação, da sua
    acusação e da sua pronúncia por seis
    crimes se explica no âmbito de uma
    cabala política. Na origem dessa
    cabala, bem traduzida no artigo de
    opinião que publicou neste jornal e no
    brasileiro Folha de S. Paulo, estaria
    uma manobra para o impedir de se
    candidatar à Presidência da República
    e de desencadear as forças da
    extrema-direita que vegetavam na
    saudade do salazarismo. Para que não
    sobrassem dúvidas sobre o seu
    martírio às mãos das forças obscuras
    do regime e da comunicação social,
    encontrou até um caso comum do
    outro lado do Atlântico, na triste
    história do processo contra o
    ex-Presidente Lula da Silva.

    Os méritos destes textos são vários e
    o principal é o de revelar a sua
    manifesta incapacidade de responder
    às acusações que prescreveram ou às
    pronúncias que o obrigam a ir a
    julgamento. Seja na sua narrativa de
    martírio político ou de aniquilação
    judicial, as inconsistências são tantas
    que ora justificam dó, ora alimentam
    repulsa. José Sócrates continuará
    inocente até ao último recurso
    judicial, mas politicamente pode
    desde já ser julgado e condenado. Por
    muito que acuse, ofenda ou
    reivindique, o seu legado é uma
    nódoa na história democrática.

    O seu caso não tem nada que ver
    com o de Lula da Silva, que pode
    reivindicar uma condenação com
    base em indícios frágeis, feita a toda a
    velocidade para o queimar
    politicamente, por um juiz (Sérgio
    Moro) que dirigiu a investigação, a
    instrução e o julgamento
    propriamente dito. Se alguém
    alimentou o chavão da extrema-direita
    contra a venalidade da classe política
    ou a protecção dos corruptos não foi a
    abertura da Operação Marquês, mas os
    indícios e os factos que a Justiça lhe foi
    apontando. Se José Sócrates não
    concorreu a Belém, é porque
    percebeu que os portugueses não são
    cegos e sabem muito bem que só nas
    narrativas literárias há viagens caras
    ou apartamentos de luxo em Paris
    alimentados com empréstimos
    milionários de amigos.

    Independentemente do juízo que
    possamos fazer sobre a decisão de Ivo
    Rosa, por muito que seja
    indispensável acreditar que o sistema
    judicial funciona, há uma urgente
    necessidade de ler a realidade e dizer,
    sem margem para equívocos, que o
    martírio político de José Sócrates é
    uma mentira. A bondade dos seus
    artigos de opinião não está por isso no
    seu esforço de se explicar; está antes
    na possibilidade que nos concede de
    apontar os seus argumentos como
    delírios que só alguém sem pudor
    teria coragem de desencantar.

    Ops!

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