Le Carré, o maior escritor britânico do pós-guerra

(Francisco Louçã, in Expresso, 18/12/2020)

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John le Carré sempre recusou que os seus livros fossem candidatos a prémios, e quando o seu nome apareceu, em 2011, na lista do Booker exigiu que fosse retirado. Hesitava em considerar-se um “autor”, e essa estranha modéstia favoreceu que a sua obra fosse acantonada num género entendido como secundário, o romance de espionagem. No entanto, nada de mais injusto. Le Carré foi o maior escritor britânico do pós-guerra e criou uma literatura sem par, inventou um estilo e, em contraste com Fleming e o seu 007, um dandy que brilha pela tecnologia e por um glamour passadista, criou personagens e enredos extraordinários, contraditórios e vivos. Depois da Guerra Fria, o tema dos seus primeiros grandes livros, Le Carré continuou a pintar um meticuloso inventário da viragem do século e nenhum outro autor se lhe compara nesse monumento.

UM VELHO ESPIÃO CANSADO

Como os obituários recordaram, Le Carré teve uma primeira vida como espião. Por mais de uma década, sob o disfarce primeiro de estudante e depois de diplomata, fez parte do MI5 e do MI6. O princípio não foi heroico: recrutado em Berna em 1948-1949, conta que um casal o abordou numa igreja, convencendo-o de que a pátria precisava dos seus serviços, voltou a Oxford encarregue de espiar esquerdistas na faculdade. Seguiu depois carreira na Alemanha, responsável por entrevistar desertores soviéticos de segunda linha. E começou a escrever os seus primeiros romances, até que o serviço o aconselhou a abandonar funções em 1963, temendo inconfidências ou a liberdade da pena, tanto mais que a sua identidade fora revelada pela mais bem sucedida toupeira dos serviços russos, Kim Philby. Mikhail Lyubimov, que dirigiu a espionagem russa em Londres de 1960 a 1964 e depois se ocupou em Moscovo do departamento britânico ao longo da década seguinte, confirmou que terá sido Philby a revelar a função de David Cornwell, aliás, Le Carré.

O culminar da sua obra é a figura de Geor­ge Smiley. No primeiro livro em que surge, “Chamada para a Morte”, de 1961, é apresentado pela sua mulher: “Quando Lady Ann Sercombe casou com George Smiley, no fim da guerra, descreveu-o às suas amigas de Mayfair, muito espantadas pela notícia, como um personagem de uma banalidade surpreendente.” Ele já era o “velho espião cansado”, um “solteirão falhado de meia idade” que preferia ter estudado obscuros escritores alemães do século XVII, mas que fora chamado para uma carreira nos serviços de informação. Smiley é o contraponto do misterioso e implacável Karla, que dirige os serviços de Moscovo, com quem joga um xadrez fascinante até ao fim.

Pergunta Borges, em ‘Notas sobre (para) Bernard Shaw’, incluído em “Outras Inquirições”: “Um autor pode criar personagens superiores a ele? Eu responderei que não, e nesta resposta irei abranger o intelectual e o moral. Penso que de nós não sairão criaturas mais lúcidas ou mais nobres do que os nossos melhores momentos.” Pois Le Carré prova o contrário. Smiley, que foi o seu “pai de substituição”, ou o seu “mentor secreto”, é mais verdadeiro para si próprio do que para as conveniências do seu criador. É um poderoso retrato de uma época, de uma atitude, é uma história: “Eles (os personagens) foram os veteranos de um conformismo burguês, encontram penosamente o seu lugar e respeitam a estabilidade das instituições burguesas. Parece-me que eram todos uns românticos que sofriam por serem testemunhas da sua morte espiritual na sociedade que defendiam”, escreve Le Carré. Essa decadência é penosa, e quando Smiley regressa, 56 anos depois da sua entrada em cena, foi para invetivar Trump e o ‘Brexit’ em “Um Legado de Espiões” (2017), uma vida de desilusão.

O MUNDO COMO ELE É

O primeiro sucesso de Le Carré foi “O Espião que Veio do Frio” (1963), mas foi depois “A Toupeira” (1974), que iniciou a trilogia de Karla (1977 e 1979), que o estabeleceu como o mestre do thriller de espionagem. Dez anos depois, a queda do Muro de Berlim deslocou a geopolítica da Guerra Fria, mas o autor recriou-se como o escritor das sombras, da duplicidade e da manipulação em que assenta o domínio. Percorreu o Ruanda, a Chechénia, a Turquia, o Panamá, voltou à Rússia e Alemanha, foi à Palestina, ao Caribe, ao Líbano, veio a Lisboa e escreveu. As suas duas dúzias de livros constituem um dos melhores retratos, se não o melhor, destas adaptações do poder como crime ao longo do fim do século.

Tratam do conflito israelo-palestino (“A Rapariga do Tambor”, 1983), dos traficantes de armas (1993, “O Gerente da Noite”), da mentira (“O Alfaiate do Panamá”, 1996), das manigâncias da lavagem de dinheiro (“Single & Single”, 1999), da exploração de África (“O Fiel Jardineiro”, 2001, “O Canto da Missão”, 2006), do papel de Tony Blair na invasão do Iraque (“Amigos até ao Fim”, 2003), das técnicas de sequestro e das prisões clandestinas da CIA (“Um Homem Muito Procurado”, 2008, que o “New York Times” considerou “a sua novela mais poderosa”) e, de novo, uma feroz denúncia do terror a pretexto da guerra ao terror (“Uma Verdade Incómoda”, 2013). Foi autobiográfico em “Um Espião Perfeito” (1986), polemizou acidamente com Salman Rushdie no confronto épico entre dois egos (1997) e, em outubro de 2019, com o “Agente em Campo”, deixou o seu testamento. Um livro melancólico, mais uma vez sobre um fracasso.

Foi esse o recado de Le Carré: os seus velhos espiões cansados são, como nós, testemunhas do desencantamento do nosso tempo.


Gente fina é outra coisa

Recebendo o pagamento mensal de €174.858, o ex-presidente do BCP Jardim Gonçalves beneficiaria da pensão mais elevada em Portugal. Disse-nos esta semana o Expresso que, depois de 11 anos de querela judicial, o banqueiro aceitou reduzir essa prestação para uns modestos €49.000 e abdicar de algumas outras rega­lias (ao que li, seriam a utilização de ­avião privado, quatro seguranças com dois carros, dois motoristas e vários automóveis). Generosamente, o acordo não toca nos valores do passado; fica tudo como estava. Jardim Gonçalves, assim, recebeu cerca de €38,3 milhões desde que foi afastado da direção do banco, em março de 2005; a partir de agora, passará a receber somente €686 mil por ano. O banco teve mais de 38 milhões de razões para impor a renegociação desta pensão, que saía dos seus fundos (e não da Segurança Social), e dos gastos com os restantes privilégios, que lhe custariam mais dois milhões por ano.

A história não fica por aqui. Se formos um pouco mais para trás, a administração de Jardim Gonçalves promoveu práticas de risco no BCP, o que conduziu ao seu afastamento. Na comissão de inquérito parlamentar em que participei, soube-se que houve movimentos bolsistas influenciados por jogadas que in­cluíam empréstimos a acionistas para comprarem secretamente ações do próprio banco através de empresas offshore (pelo menos um desses empréstimos, de dezenas de milhões de euros, foi entretanto perdoado). Assim, os preços das ações eram um retrato errado do valor do banco. Com este conforto, o BCP promoveu uma agressiva campanha de venda de títulos aos seus depositantes e levou milhares deles a perdas de mais de 95% em poucos anos, perdas nunca ressarcidas. A generosidade da pensão atribuída depois disto é um pálido retrato de um sistema corroído.

Mas há uma luz ao fundo do túnel. Se a generosa proposta dos partidos de extrema-direita um dia vingar, a redução da taxa máxima de IRS para 15% pouparia por ano a este denodado banqueiro uns módicos €808 mil (na versão anterior da sua pensão) ou €226 mil (na versão cruelmente reduzida da sua pensão atual). O que, convenhamos, já dá para os alfinetes.


8 pensamentos sobre “Le Carré, o maior escritor britânico do pós-guerra

  1. Um bom exemplo a seguir em casos como o de Jardim Gonçalves é o de Fidel Castro, que não hesitou em aplicar a pena de morte por corrupção.

    Até o general mais importante do exercito Cubano, herói da revolução, comandante das forças cubanas em Angola e membro do comité central do partido comunista cubano foi condenado á morte por corrupção no final dos anos oitenta.

    https://youtu.be/HaMP3qoTgOQ

    Vemos aqui Fidel Castro em 1989, o líder da revolução socialista cubana a defender a condenação à morte do seu camarada numa reunião do conselho de estado transmitida em direto.

    Ah granda Fidel, em algumas coisas tinhas razão.

  2. O partido comunista chinês também não é fofinho com a corrupção.

    Grande empresários e politicos chineses são rotineiramente executados por corrupção.

    https://youtu.be/oMM11YTw-vY

    Aqui uma das mulheres mais ricas da China, condenada à morte por corrupção em 2012. Teve sorte.
    Sendo gaja bonita era o poster ideal para a propaganda ocidental anti-partido comunista chinês.
    Safou-se por um triz, a pena foi comutada por pressão internacional.

    https://youtu.be/YZI_5gMNnEU

    Já estes politicos, também em 2012, sendo gajos feiosos não tiveram sorte nenhuma. Foram executados por corrupção pelo regime do partido comunista chinês.

  3. A respeito do Dia Internacional das Migrações, e quando somos confrontados diariamente com a destruição inapelável de postos de trabalho (sem perspetivas razoáveis de recuperação nos próximos anos), faz algum sentido continuarmos a apelar sofregamente a uma entrada descontrolada de gente que vai acabar por não ter trabalho, ser explorada pelos nossos típicos “empresários” ou viver de expedientes (não pagando impostos nem descontando para a ss, oops, lá se vai o argumento da sustentabilidade da segurança social, pelo menos por via direta)? Já que hoje em dia tudo é racismo e xenofobia, conseguem conviver com um país que assume claramente que os portugueses “verdadeiros” (whatever) não têm de se sujeitar a lavar pratos/wc ou a trabalhar na construção civil? Eis o verdadeiro racismo de grande parte dos países “desenvolvidos”: somos demasiado bons para trabalhos indignos, venham de lá esses escurinhos mexer na merda.

    • Caro marosca.

      Uma pequena correção.

      A maior parte dos portugueses trabalha nesses trabalhos “indignos”. A diferença é que muitos emigram para os fazer lá fora.

      A imigração e a deslocação da industria para o terceiro mundo é um truque para desvalorizar esses trabalhos para os manter artificialmente “indignos” – um truque para reduzir salários.

      Porque não há nada de indigno em lavar retretes, indigno é empresários ricos andarem a roubar os pobres.

      A questão é que não podemos ser contra a imigração, por razões éticas.

      -Portugal é um pais de emigração. Como não respeitar os imigrantes como nós ?

      -A dignidade humana. Temos de respeitar a liberdade de deslocação e fixação.

      -A questão histórica.
      Invadimos o agora terceiro mundo, colonizámos, explorámo-los, forçámos as trocas e a miscigenação, chamámos-lhes cidadãos portugueses.
      Como é possível agora dizer que não os conhecemos de lado nenhum ?
      Eticamente seria escandaloso.
      DEVEMOS a esses povos o direito de boas vindas.

      Que realmente não precisemos deles e que só sirvam para os empresários de merda baixarem os salários é outra conversa.

      Temos a OBRIGAÇÃO de os receber – e bem.

      A solução tem de passar pela construção do estado social no terceiro mundo, para que ninguém seja obrigado a emigrar, porque 99% das pessoas só emigram porque são obrigadas.

      Claro que falar disto é difícil, porque está tudo minado por psicopatas de esquerda e de direita.

      Á direita temos principalmente os lambe botas dos ricos que só pensam nos interesses do capital e uns poucos racistas anti-pretos que são autênticos criminosos.

      Á esquerda temos outra cambada de psicopatas que só sabe chamar fascista e racista a toda a gente.

      As pessoas lúcidas precisam jogar com estes psicopatas nem que seja manobrá-los uns contra os outros, pelo voto, para arranjar uma verdadeira solução algures pelo meio da confusão causada por estes doidos.

      • Sim, admito que me esqueci dos portugueses que vão fazer esses trabalhos no estrangeiro (cá, muito provavelmente não os desempenhariam, por “vergonha” e por serem mal remunerados – conheço dezenas de casos assim, os familiares que cá ficam acabam por fantasiar um pouco a coisa, dizendo que os filhos foram trabalhar para a “hotelaria” e “restauração”, mas a verdade depois sabe-se).

        Sim, estado social e liberdade de oportunidades nos países de origem, de preferência em regimes que não sejam umas nojentas cleptocracias como atualmente.

        Dívida histórica, ok, consigo aceitar (apesar de por vezes achar que esta necessidade de fazer um mea culpa sem esquecer o contexto histórico é um pouco como obrigar um adulto a pedir desculpas públicas por ter roubado a chucha a um coleguinha no jardim de infância).

        O objetivo do meu comentário foi acima de tudo desmascarar a hipocrisia dos Estados “desenvolvidos”, tão politicamente corretos e defensores das mais nobres causas, mas que conscientemente acham que há trabalhos menores que devem ser realizados pelos outros (porventura mais “tropicais”) em detrimento dos seus (que ou vivem de prestações sociais ou emigram).

        E o ciclo assim continua…

      • O que é preciso é mandar esses empresários não competitivos fazer outra coisa falindo-os. É que os emigrantes, a menos que sejam enganados, não vão viver em contentores, sem água e sem direitos.
        Mas como o dinheiro só cresce nos ricos e o estado só existe para os servir, ficamos a discutir se são mais ou menos do que os outros, invés de ser irrelevante economicamente.

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