Somos todos loucos aqui

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 06/06/2020)

Pedro Santos Guerreiro

Se não sabes para onde vais, não interessa que caminho escolhes, respondeu a Alice o gato das garras grandes e muitos dentes. António Costa e Silva é o gato de Cheshire do Governo: o primeiro-ministro pediu-lhe um plano de futuro, o que signi­fica que não tem plano nenhum. Haveremos de chegar a algum lado, diria António Costa… desde que caminhemos o suficiente para lá chegar.

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A questão essencial não é se Costa e Silva é um bom nome (porque é) nem se é bom consultar independentes (também é). Costa e Silva não é um tiro no pé, mas pode ser um tiro para o ar, se o seu plano ficar no pó da prateleira das ideias impraticáveis ou se um dia destes cair da cama do desejado, bastará uma frase errada numa das demasiadas entrevistas que está a dar e o céu vira-se do avesso para o chão da política real. Mas mesmo que este tiro de Costa seja um tirocínio para Costa e Silva ser ministro do Planeamento, a questão essencial ainda é outra. É isto revelar não só que o Governo não se lembrou do futuro no início da pandemia como não encontra no Estado (não no Governo, no Estado) a capacidade de planea­mento, prospetiva e estratégia sem a qual Governo nenhum será mais do que Alice à deriva num Mundo das Maravilhas.

Quando, em abril, o primeiro-ministro reuniu 25 economistas para discutir o futuro, fiquei pasmado. Só agora? Mas até aquele agora foi o vazio: vários dos 25 relataram a animação de um encontro de nada, só improvisação e inconsequência.

Num Governo há três meses em emergência, os ministros não têm tempo nem para dormir, quanto mais pensar. Isso é natural. O que não é normal é não ter sido criada logo no início uma equipa de maduros estudiosos que ficassem confinados nas sebentas para municiar o Governo dali a uns meses, isto é, agora. Pior, tudo isto confirma que a Administração Pública foi lobotomizada. E isso explica tanta coisa, tantas estradas, tantos incêndios, tão pouca agricultura, tão pouco interior, tanta improvisação na justiça, na educação e saúde, tanto nada, tão pouco muito.

Os ministros são até vítimas. Um Governo tem de tomar decisões políticas com base em informação técnica, o resto é palpite e teste à sorte de um instinto. A decapitação da Administração Pública (acelerada com Sócrates e concluída com Passos) desprezou o pensamento. Onde estão os gabinetes de estudos do Estado? Onde está, aliás, a academia, que brilhou na pandemia na Ciência e na Saúde, mas na Economia foi dispensada do lugar do pensamento para a pantalha do comentário?

Só a informação esclarece e só o conhecimento transformado em pensamento alumia. A Alemanha está hoje a debater um plano de transformação radical da política económica, para indústrias de tecnologia e ciência avançadas, com mais Estado e protecionismo, para criar campeões que façam encosto de ombro à China e aos EUA. Não interessa discutir neste texto se esse é o caminho certo, interessa observar que há um caminho. E nós?

Portugal já teve um Ministério do Planeamento e gabinetes de estratégia a sério. Era o caso, entre outros, do Departamento de Prospetiva e Planeamento e Relações Internacionais, órgão com o nome mais chato do mundo, cheio de pessoas chatas, que faziam relatórios chatos que poucos liam. Lia quem precisava: os Governos que decidiam. Um desses chatos era José Manuel Félix Ribeiro. Se procurarmos agora um desses estudos, até encontramos uns relatórios recentes chatos, tão chatos como deslumbrantes, feitos para a Gulbenkian e para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto por mulheres e homens chatos como… José Manuel Félix Ribeiro.

Desejo-nos sorte. Pedir um plano em meia dúzia de semanas, por melhor que ele e o seu autor sejam, é só isto: estamos a improvisar. Fazemo-lo há anos. Por isso seguimos à risca o que nos mandam, seja a troika antes ou a UE a seguir. Se não pensamos, compramos feito e metemos o pré-congelado no micro-ondas. Um país que delega a estratégia noutros será sempre um país com a estratégia de outros. Sejam eles lúcidos ou loucos. Ou, como diz o gato, “somos todos loucos aqui”.


5 pensamentos sobre “Somos todos loucos aqui

  1. «o primeiro-ministro pediu-lhe um plano de futuro, o que signi­fica que não tem plano nenhum.»-Kaput.
    Bingo. Como meu desabafo ontem, algures. Contudo, Mr António Costa, teve uma visão..
    Algures em campanha eleitoral pelo IP2, He Had a Dream:
    Dado o crescimento demográfico do país, necessário era criar novos níveis de administração do Estado:
    a) uma Secretaria de Cinema Aidiovisual e Média, que tais actividades vinham em crescendo rápido desde o mandato do seu antecessor, Mr Passos;
    b) um Ministério da Coesão, para lá do interior profundo, dado no conceito da ministra, tal ‘coesão’ se tornar tão necessária na faixa fronteiriça, como algures em Oeiras ou Setúbal;
    que um Departamento no ministério da Economia,não teria capacidade para tal, e a multiplicação de cargos, serve perfeitamente aos desígnios do Profeta.
    c) faltava agora o Paraministro, an honest and serious man, noutra ‘visão’ de Mr Costa.
    Compensar, fazer por compensar, como na expressão acima de PSG.
    Mas desde que vi um Paulo Portas a ‘empreender’ um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional (MDN) ou depois uma Reforma de Estado a dourar o CV como Vice-PM,
    Tudo é possível. Tudo e o seu contrário.
    A bem do Regime.

  2. Concordo plenamente com o autor. Eu que, em tempos idos, também fui convidado pelo governo para apresentar um plano, (sem ter sido remunerado, sem filiação partidária, sendo quadro de uma empresa, então pública) sei alguma coisa do que vi, do que senti, do que apresentei e do resultado de tamanho trabalho.
    Há meses, desde o surgimento do problema com o Corona, que aponto para as fraquezas a que levaram o Estado e para a necessidade de, há meses, já se ter repensado Portugal nas suas múltiplas área, impedindo que os de fora (a UE) no venha a impor qual o caminho a percorrer, deixando assim de ser nós próprios a delinear o percurso.

    • E já agora, comigo a perder tempo.
      Um pequeno ‘ensaio’ para uma modernização da Defesa/Forças Armadas,
      deixado em mão a um oficial do gabinete de Severiano Teixeira MDN.
      Um cartão de visita a acusar a recepção, um mês depois, de alguém muito ocupado.
      Para nada mais, do que continuarmos a assistir ao desmembramento das FA,
      e termos visto a ruína de Tancos 28-J.
      Como se comprova aqui:tantos ‘reformadores’ depois:

      «Uma reforma que define um novo modelo para a DN» -Aguiar Branco (2013)
      «A reforma da instituição militar estará concluída em 2007» – Severiano Teixeira (2006)
      «O ministro está a fazer uma revolução tranquila no MDN» – Luís Amado (2005)
      «O Exército marcha para a mudança» – General Viegas CEME (2002)
      «O Exército não pode fechar mais quartéis» – General Barrento CEME (2000)
      «FA -caminho do futuro, que tropa queremos?» – General Alvarenga CEMGFA (2002)
      «Sampaio defende reforma das FA após as eleições» – Jorge Sampaio PR (1999)
      «As FA recebem demasiado para as garantias que dão» General Corbal CEMFA (1997)
      «Desafios das FA no virar do século» – Veiga Simão (2Abr98)
      «Racionalização efetivos, um imperativo de modernidade» – Fernando Nogueira (1992)
      «Vamos combater a nossa inércia» – General Loureiro dos Santos CEME (1991)

  3. A meu ver a admiração é verificar só agora, depois dos EUA e a Alemanha terem pura e simplesmente “comandado” as decisões nos domínios de política e economia de Portugal depois da revolução dos cravos do 25 de Abril de 1974, se questionar a ausência de planeamento estratégico na acção dos sucessivos governos nos media de referência!

  4. Concordo com a lebre que este artigo levanta – as consequências das décadas de destruição do estado pelos neoliberais do PS-PSD-CDS.

    Mas neste caso concreto não me parece que NESTE momento haja muito a fazer.

    Estamos a meio da vaga de coronavirus da qual ainda não sabemos quando vai acabar e quais vão ser as consequências finais.

    Não sabemos se vai haver uma segunda vaga que tanto pode ser dez vezes pior como nunca vir.

    Por outro lado toda a resposta do estado está condicionada por apoios da europa que não se sabe ainda se realmente virão ou em que condições.

    Quer um plano detalhado ?

    Vá á bruxa…

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