Cuidado com os sabichões

(Vicente Jorge Silva, in Público, 12/04/2020)

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Quanto mais o tempo passa e perduram as incertezas ou as contradições sobre a evolução da pandemia da covid-19, maior é a tentação de encontrar receitas mágicas para ultrapassar os efeitos desta crise sem precedentes – ou que nos remete para a Grande Depressão dos anos 30 do século passado ou da «gripe espanhola» dos tempos da primeira Grande Guerra. Percebe-se que os níveis inéditos de ansiedade e preocupação de encontrar saídas para o labirinto onde estamos confinados suscitem as mais variadas intervenções, divagações, propostas e palpites por parte de uma multidão de comentadores que vem engrossando todos os dias nos canais de TV e nos jornais (muitos deles pronunciando-se, de forma muitas vezes definitiva, sobre assuntos de que não são especialistas mas apenas aprendizes de oráculos).

Ora, esta tendência que ameaça crescer para além do que seria minimamente razoável acaba por influenciar também o discurso político, levando os responsáveis governamentais e partidários – senão o próprio Presidente da República (PR) – a formular propostas de sentido difuso e aparentemente antagónico sobre as medidas a adoptar para responder às crises sanitária e socioeconómica, arriscando criar com isso um clima de ainda maior desorientação entre uma população já naturalmente desorientada.

Assim, enquanto se avançam datas possíveis para o fim do estado de emergência – que não parecem ser exactamente as mesmas para o Governo e para o PR – assistem-se a sinais contraditórios relativamente à evolução da covid-19, entre o relativo optimismo que pressupõe o reatamento das aulas dos anos finais do secundário e o pessimismo manifestado pelo primeiro-ministro sobre a hipótese quase certa de uma segunda vaga da pandemia. Aliás, esta segunda vaga de que sabemos ainda muito pouco – como aconteceu, aliás, com a primeira vaga do coronavírus – está a suscitar uma onda suplementar de preocupações um pouco por todo o mundo, incluindo países que supostamente já teriam ultrapassado o problema e parecem vê-lo regressar, como é o caso da China.

Dito isto, nada pior do que alimentar expectativas irrealistas com base na necessidade urgente da recuperação económica, como fazem alguns dos nossos sabichões e aprendizes de oráculos ao compararem o carácter relativamente benigno – é-o, sem dúvida – da situação portuguesa com a de países como a Itália e a Espanha. Sim, é verdade que quanto mais tarde regressarmos à normalidade pior será para a economia (pelo menos, para esta economia que temos). Mas pior ainda do que isso será criar falsas ilusões que poderão ter consequências gravíssimas a nível sanitário – e, também, económico.

É certo que é mais fácil aceitar o confinamento do que sair dele. Por outro lado, para uma maioria de portugueses as condições desse confinamento são muito insatisfatórias e até deploráveis – devido à exiguidade e estado precário das habitações e ao número de familiares que nelas se aglomeram –, provocando situações de stress e violência potencial (ou efectiva). Mas perante o cenário de uma segunda vaga da pandemia resta saber o que será pior: prolongar o estado de confinamento actual ou correr o risco de expor os cidadãos a um surto de infecção cuja amplitude ninguém é capaz de prever.

O que esta crise global nos tem ensinado é que continuámos a saber muito pouco sobre a sua natureza até à descoberta de uma vacina eficaz contra a pandemia (o que só deverá acontecer daqui por um ano). Significa isto que, entretanto, teremos de nos submeter à paralisia e à impotência? De modo nenhum. O inconformismo e a busca persistente de soluções devem fazer parte da nossa agenda diária, mas não esquecendo o sábio conselho de que mais vale prevenir do que remediar – sobretudo aquilo que pode não ter remédio. Daí a oportunidade de outro conselho: cuidado com os sabichões.


7 pensamentos sobre “Cuidado com os sabichões

  1. Nota, prévia. Na série sobre a comédia socialista, a propósito do Covid-19, tenho coleccionado umas quantas imagens de cromos para a troca. Do Fernando Medina já falei, exactamente onde o Sobral carrega também, pois ter a oportunidade de observar um edil da CM de Lisboa a carregar uma bilha do gás num bairro social frente às câmeras de TV ocupa o primeiro lugar do pódio. O segundo é do Eurico Brilhante Dias que as câmeras de TV apanharam a tirar selfies aquando do happening na pista do aeroporto com o Duarte Cordeiro, Jamila Madeira e, lá está, o Medina. Sei que a besta é de economia mas, sendo professor universitário, há decerto no ISCTE gente de outras áreas que lhe trate da bestialidade… Com a ajuda do artigo do Vicente Jorge Silva, linkado n’A Estátua de Sal, decidi-me por fazer um pódio em que o terceiro lugar cabe ao Eremita, que eu tenho por um bom moço, mas que anda, alegremente, a perorar sobre aquele que se veio a revelar o melhor spin dos gajos do governo do Costismo, a saber: o “achatamento da curva”, pois claro (presumo eu que nem tiveram muito trabalho como é recomendável, basta saber decifrar uns rudimentos ingleses). Aqui há dias ainda houve um maduro que, ligeiramente agoniado, lhe chamou a atenção para o facto de tal divertimento ser uma prova de que nós, os portugueses, olhamos egoisticamente, aqui do nosso cantinho, para o que se passa em Espanha e na Itália e, imperdoavelmente, nos sentimos no paraíso. Nada feito, anda há semanas a contribuir para a “curva achatada” exibindo pois uma fraca figura. Toda a oportunidade ao VJS, portanto, cuidado com os sabichões. Entretanto O Tigre de Papel, crónica de Fernando Sobral (vi-a hoje, tantas verdades aquelas as minhas, tuas, suas, nossas, vossas e as deles!).

    Viagens na Medinalândia

    Há alguns anos, o sr. Fernando Medina teve um sonho.
    Desejou transformar Lisboa na sua Versalhes.
    Como a tarefa se revelou demasiado ousada,
    optou por criar uma Fernando Sobral
    Disneylândia. Ou, numa versão mais
    poupada, a Medinalândia. O sr. Medina não
    tem culpa de sonhar tão grande
    empreendimento. As circunstâncias
    empurraram-no para isso. O sr. António
    Costa designou-o como delfim. E o sr.
    Manuel Salgado viu nele o príncipe perfeito
    para fazer uma cidade à sua imagem: uma
    urbe de negócios imobiliários e turísticos,
    disfarçada de futurista.

    Dentro da política central deste Governo,
    onde o turismo é ainda a mesa do casino
    onde se deve apostar todas as Æchas, o sr.
    Medina tornou-se o croupier perfeito. E os
    seus sonhos multiplicaram-se. Não custa
    acreditar que imagine ser secretário-geral
    do PS e, depois, talvez mesmo,
    primeiro-ministro. Com um pouco de sorte,
    daqui a uns anos, não fosse a covid-19,
    talvez até conseguisse remover a estátua de
    D. José do Terreiro do Paço e substituí-la
    por uma sua. Não montado num cavalo.
    Mas sim num tuk-tuk.
    São motivações que têm uma lógica. Mas
    é aqui que a missão pública de servir os
    cidadãos se confunde com servir-se disso
    para benefícios políticos pessoais. Nos
    últimos dias, o sr. Medina, com a
    cidade-fantasma a seus pés, optou entre o
    silêncio e a entrega de uma garrafa de gás a
    uma pessoa carenciada. Como isso dá,
    porém, pouca visibilidade, a luta contra a
    covid-19 revelou-se uma boa forma de se
    mostrar. Surgiu na conta oficial da CML no
    Instagram: “Chegaram hoje, 5 de abril, os
    primeiros ventiladores para reforçar o SNS,
    incluindo 78 doados por uma empresária
    chinesa, em articulação com a Câmara de
    #Lisboa e a Embaixada de Portugal na China
    (…) Fernando Medina.” Lê-se e não se
    acredita. Terá sido o próprio edil a escrever
    a nota num infantil auto-elogio? E a publicar
    uma fotografia de si próprio junto ao avião
    da TAP, como se fosse o
    comandante-em-chefe da operação? E o
    nome da milionária chinesa, Ming Hsu, que
    pagou a conta, acabou removido como se
    fosse uma actriz secundária? Chama-se a
    isto reescrever a história em proveito
    próprio. Mesmo que, mais tarde, a
    mensagem tenha deixado de estar assinada.
    Como se não bastasse, o sr. Medina tem
    amigos no Governo. Que acham que o
    turismo estilo pudim Flan continuará a ser a
    solução milagrosa para o país. Insistem em
    construir uma linha circular de Metro em
    Lisboa, contra todas as lógicas e a oposição
    da Assembleia da República. A linha
    circular era o corolário da estratégia de
    circulação interna no centro de Lisboa para
    os turistas. Atirou-se os lisboetas para a
    periferia e, depois, ainda se criava mais um
    transbordo para chegarem ao centro. É a
    chamada socialização dos prejuízos.
    À sucapa, no nevoeiro da covid-19, o
    Ministério do Ambiente e da Acção
    Climática emitiu um despacho onde
    determina que o Metro deve continuar a
    expansão da rede, incluindo o
    prolongamento das linhas Amarela e Verde.
    Diz mesmo, num momento de stand-up
    comedy, que estes investimentos são
    importantes “perante os efeitos sobre a
    economia que a pandemia da covid-19 está
    a provocar em todo o mundo e em
    Portugal”. Lê-se e não se acredita. A
    covid-19 até serve de justificação para uma
    decisão tomada às escondidas, enquanto as
    atenções estavam direccionadas para temas
    mais importantes. Ao contrário do que se
    supunha, o sr. Matos Fernandes não decide
    por razões ambientais: decide por causa do
    dinheiro. Justifica-se até com o argumento
    de que os fundos que vêm da Europa só
    poderiam ser usados nesta obra. Falso,
    como já veio dizer a comissária, a sra. Elisa
    Ferreira. Há uma certeza: continua a
    obsessão por este plano turístico para
    Lisboa, que após a covid-19 terá de ser, no
    entanto, bem repensado.
    O sr. Matos Fernandes mostra que há um
    equívoco no papel timbrado de onde envia
    os comunicados. Ele não deve ser o
    ministro do Ambiente. É o das Obras
    Públicas. Todas as suas decisões (do Metro
    ao Montijo ou ao lítio) têm que ver com
    dinheiro e não com o ambiente. Por favor,
    decidam-se: o sr. Matos Fernandes é, afinal,
    ministro de que pasta?
    Entre o país do elogio pessoal e dos
    favores e o país real, há uma brecha, cada
    vez maior. Apetece lembrar Ramalho
    Ortigão, quando escrevia: “É talvez a estas
    dádivas periódicas de eloquência (os
    discursos parlamentares) cada vez mais
    gasta e mais safada (…) que nas aldeias se
    refere a expressiva cantiga: ‘De Lisboa me
    mandaram/ um presente com seu molho/
    as costelas de uma pulga/ o coração de um
    piolho’.”

    Fonte: P. (P2), 12.4.2020, p. 24.

  2. O que me interessa no achatamento da curva é a ciência e o que se passa no mundo. Nem sequer tenho escrito sobre o que se passa em Portugal (excepto um elogio breve a um discurso de Costa). Se soubesse alguma coisa sobre a minha vida e o que ando a fazer perceberia que o seu texto é absurdo, mas é verdade que de um blog não se pode esperar muito mais.

    • «Nem sequer tenho escrito sobre o que se passa em Portugal (excepto um elogio breve a um discurso de Costa)», vírgula, que teve direito a uma senhora resposta como sabes, Eremita. Em estéreo, ou como diria o Henrique Amaro em… três pistas.

      […]

      15.03.20

      Eremita, olha aqui: perante uma personagem como o António Costa, que era apenas um relativo desconhecido da grande opinião pública apesar de, sobre si, haver um lastro, uma lenda, de habilidades, tangas e de manhas que muita sorte lhe têm dado durante os períodos em que ocupou cargos ministeriais menores, idem de autarca em Lisboa onde, pacientemente, organizou a sua teia de interesses que depois depois deu bronca com o escândalo das ligações famiiares nos salões ministeriais e que assumiu a sua fase sexualmente explícita nalgumas das suas velhas ou novas paixões, Ana Catarina Mendes é o maior exemplo, e noutros/as cabeças rendidas ao Costismo urdido à frente do PS, dizia, tens múltiplas formas para olhares para a figura em análise. Como reage ele sob a pressão dos acontecimentos (incêndios florestais, greve das matérias perigosas, birra da demissão por causa dos professores, processo político que levou ao nascimento, e ao fim!, da Geringonça e, agora, aeroporto do Montijo e o coronavírus). Ora, em qualquer um destes casos, a minha avaliação como se compreende não é famosa… Não é uma decepção, pois já lhe tirei a pinta e ainda bem que o fiz.

      Demais, como escrevia repetidamente o VPV em 1972, acompanho muito do que o António Guerreiro diz na última crónica do Ípsilon a propósito do debate italiano, europeu?, sobre o que está, subrepticiamente, a mudar à vista de todos nestes tempos de cólera em que vivemos. E, neste particular, arrepia-me que seja um governo do PS a “simplificar”, assim mesmo, a lei do lay-off… Disse-o antes e digo-o agora. Aliás, na senda das conspirações que têm sempre um bocado de lucidez, parece-me claro que a escolha desta ministra do Trabalho que do assunto sabe nada (como se viu na conferência de imprensa após o Cnselho de.Ministros, com uma performance confrangedora), é a cereja em cima do bolo.

      Em conclusão, eis mais uma das linhas vermelhas fundamentais para se saber onde estamos e, é claro, o governo que temos.

      É simples, isto.

      _____

      Nota, ainda. Sobre saber, e não saber, presumo que se trata de uma Revolução-no-mínimo-qu’é-o-que-eu-e-os-portugueses-esperam-de-ti mas, por natureza, d’uma Revolução não se sabem dos pormenores a priori. Força, camaradas!

      • Muito bem.

        […]

        Por sua vez, [Catarina Martins,] a antiga parceira do
        acordo de governação à esquerda diz
        não temer perder o lugar para Rui
        Rio, até porque o seu partido e o PSD
        apresentam “soluções diferentes” e
        “ninguém espera que o BE apresente propostas de austeridade”. E deixou um recado ao líder social-democrata, aludindo às críticas feitas a
        quem aponta o dedo ao Governo:
        “Não confundimos solidariedade
        com um Governo que está a combater a crise com um unanimismo que
        reduza a política a zero e faça com
        que, na ausência de proposta, seja a
        austeridade a parecer natural.

        Fonte: P., 19.4.2020, p. 10.

  3. Sobre a COVID-19, não estou muito interessado nos temas paroquiais em que se concentra. Tenho procurado ler e escrever sobre a COVID-19 num contexto mais global do que a forma como Costa leva a mão ao nariz num mercado de peixe ou o que diz Marta Temido todos os dias. Por isso me surpreendeu o reparo de que eu estaria a branquear o Governo ao escrever sobre a evidência do achatamento da curva. Pense o que entender, cada um vê o mundo com as lentes que usa e umas disrtorcem mais do que outras.

    Cumprimentos,

    PS: apesar deste episódio, gosto da selecção de textos e dos originais que aqui coloca.

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