O anti-Trump

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/03/2020)

Daniel Oliveira

Era suposto Bernie Sanders vencer no Nevada. Não era suposto esmagar. E esmagou. Por outro lado, era suposto perder na Carolina do Sul contra Joe Biden, mas não ser suposto perder por tanto. Joe Biden continua a ter o voto negro à boleia de Obama. A verdade é que os centristas – não lhes chamem moderados, porque Sanders é tão radical como um social-democrata escandinavo – continuam às voltas com a escolha de quem se tem de medir com Bernie. Já se pensou que era Buttigieg, e como se viu desistiu. Já se pensou que fosse Biden, depois pareceu que estava fora e agora volta a parecer que está dentro. E pensou-se que seria Bloomberg, mas a sua prestação no primeiro debate deixou claro que o dinheiro não compra tudo. Hoje, a tão esperada super terça-feira, ficará tudo mais claro. Com vantagem para Biden se transformar num forte rival de Sanders.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Duas ideias tentam-se instalar na cúpula democrata: que Bernie é um perigoso socialista e que, tocando-se os extremos, ele é uma versão esquerdista de Donald Trump, cabendo nesse conveniente saco sem fundo do “populismo”. Esta tem sido a linha da CNN, que já replica como se fossem objetivos os termos dos adversários, referindo-se a Bernie Sanders como “milionário”, por causa do dinheiro que ele ganhou com a venda dos seus livros e que não dá para pagar um pequeno devaneio de Trump ou Bloomberg. O comportamento dos media nestas primárias dariam para um tratado sobre as razões profundas da crise do jornalismo.

Como escreveu Paul Krugman, Bernie Sanders nem é propriamente um socialista. Pelo menos para um europeu, Bernie é um social-democrata ao estilo tradicional escandinavo (não confundir com a corruptela portuguesa). Não defende nacionalizações nem sequer uma economia mista. Mas teve a inteligência que falta aos que julgam que a “moderação” é uma boa estratégia defensiva: antes que dissessem que ele era socialista afirmou-o ele. E com isso normalizou o que era tratado como um insulto, obrigando Michael Bloomberg a dizer que ele é um “comunista”, o que nos EUA se aproxima de dizer que é criminoso e levou a uma reação indignada de quem assistia ao primeiro debate em que participou o milionário (esse é mesmo).

Bernie Sanders não é um Trump de esquerda. Há uma enorme diferença entre propor a perseguição a imigrantes ou exigir que os milionários paguem impostos, entre defender o preconceito como forma de convivência social ou o aumento do salário mínimo como forma de partilhar a riqueza. E a tentativa de criar um paralelo entre as duas coisas, fazendo assemelhar os mais fortes e protegidos aos mais fracos e vulneráveis, o esmagamento dos excluídos ao combate ao privilégio, é um programa político. Ele sim, radical

Como também escreveu Paul Krugman, que não é um apoiante do senador (tem mostrado mais simpatias por Elizabeth Warren), Bernie Sanders também não é um Trump de esquerda. Tirando apresentar-se como adversário de um sistema político e económico em falência, o que apenas faz dele um candidato eficaz no combate a Trump, Bernie não aposta na divisão mas na unidade, não aposta no ódio mas na solidariedade. Bernie Sanders não é um fanfarrão.

Claro que Bernie tem um adversário social. Mas há uma enorme diferença entre propor a perseguição a imigrantes ou exigir que os milionários paguem impostos, entre defender o preconceito como forma de convivência social ou o aumento do salário mínimo como forma de partilhar a riqueza. E a tentativa de criar um paralelo entre as duas coisas, fazendo assemelhar os mais fortes e protegidos aos mais fracos e vulneráveis, a base social ao topo do poder, o esmagamento dos excluídos ao combate ao privilégio, é um programa político. Ele sim, radical. A ideia instalada de que “os extremos se tocam” tenta tornar moderado o que é extremo – a crescente desigualdade económica e a demissão de uma pequena elite dos seus deveres sociais – e tornar radicais todas as propostas democráticas e populares.

“Vote blue no matter who” é o mantra democrata destas primárias. Que todos se unirão em torno daquele que vencer na convenção. Mas há uma parte do partido que prepara o caminho para não o seguir. Ou para passar a ideia de que não o vai seguir, dando força à tese de que Bernie nem os democratas consegue unir. Apesar de várias sondagens dizerem que ele é dos candidatos mais bem colocados para enfrentar Trump, não me fio nisso. Os candidatos só o são no confronto, com a narrativa que se constrói quando se enfrentam. E sobre isso ninguém pode fazer adivinhações. Por isso, não sei se Sanders é o melhor candidato para derrotar Trump. Nem ele nem outro qualquer. Sei que ele é o melhor candidato para contrariar a sua narrativa, assim como Hillary foi e Bloomberg seria dos melhores candidatos para a confirmar. Exatamente porque ele não é o Trump de esquerda, é o anti-Trump.

A ideia absurda que as antíteses se assemelham deitaria por terra todos os movimentos libertadores que a História conheceu, fazendo deles a mesma coisa que combatiam. Bernie Sanders é o candidato ideal contra Trump porque, ao contrário de Trump, é mesmo antissistémico. Porque o sistema que ele combate não é o democrático, é o que está a destruir a democracia. Bernie Sanders é o único que pode mostrar que Trump é o sistema em versão descarada e musculada. E isso torna-se evidente quando, sem uma única proposta que possa levantar qualquer dúvida quando ao seu respeito pela democracia, o aparelho democrata parece ter mais medo dele do que de Trump. Bernie propõe-se libertar a democracia da desigualdade extrema que a limita, Trump propõe-se libertar a desigualdade de uma democracia já frágil que ainda a limita.

Só a nomeação de Bernie Sanders para enfrentar Tump já teria efeitos políticos internacionais. Assim como teve a nomeação de Donald Trump, ainda antes de vencer as eleições. Em vez de ser um sistema em crise contra a extrema-direita xenófoba, o que só dá força à extrema-direita, é a recuperação da agenda social para travar o ódio. Foi ela que o travou quando Roosevelt impediu que os EUA seguissem o caminho que seguiu a Europa. Foi ela que reconstruiu a própria Europa. Por isso, definir quem é o adversário contra a extrema-direita é o mais determinante neste momento. Porque determinará se será mesmo um adversário ou, como seria com um Michael Bloomberg, uma cedência.


3 pensamentos sobre “O anti-Trump

  1. O texto está excelente, a mostrar qual o melhor candidato às presidenciais norte-americanas para derrotar Trump, que é Bernie Sanders, para que se deixe de alimentar um sistema político ocidental podre, que desqualifica, degrada a democracia e a conduz como no passado à barbárie, ao ressurgimento cíclico do fascismo. Todavia, Daniel Oliveira parece esquecer-se qual a praxis na Europa onde os vícios são idênticos, todos os sinais que os partidos do sistema (que se revezam no poder) que na essência apenas têm nomes diferentes, tudo se resume a proteger os poderosos à custa da exploração cada vez maior de quem trabalha, protegendo-se uns aos outros (políticos de um sistema corrupto) para que nada mude. E o que fazem os media, as instituições que deveriam esclarecer os cidadãos, os comentadores de serviço pagos pela comunicação social do sistema para influenciar o voto dos eleitores?! Misturam no mesmo saco como “populismo” a demagogia de direita, que defende o mesmo sistema, incitando o ódio e os que apresentam outros modelos de desenvolvimento e outras estruturas programáticas, estigmatizando os políticos verdadeiramente de esquerda e omitindo os perigos, o facto da repetição da História, da burguesia instalada preferir entregar o poder à extrema-direita a ceder a exigências essenciais da esquerda!

    • Não se esquece, escreve e dí-lo várias vezes, mas uma crónica não é um livro.
      De resto, lá como cá, só nos resta rir da apetência humana para a distopia enquanto o mundo arde cada vez mais.

  2. Um bonito texto sobre corrida de cavalos suados, montados e dirigidos por jóqueis das grandes fortunas. E como democracia hoje em dia serve para tudo, produzir guerras, impôr sanções, fazer chantagem, saquear o mundo à bruta, porque não há-de uma pequena disputa interna entre cavalos estafados ser também um grande postal da democracia? Obrigado Daniel, um relatador de horse racing não faria melhor.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.