A esquerda, a direita e o Estado

(Ricardo Paes Mamede, 29/01/2020)

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É um equívoco comum: a ideia de que esquerda e direita se distinguem pelo desejo de mais ou menos Estado. Há esquerda e direita estatizante, como há esquerda e direita libertária. Há direita que se afirma liberal e nada faz (ou pretende fazer) para reduzir a dimensão do Estado, como há esquerda que se diz socialista e contribui activamente para a redução do espaço da intervenção pública. A questão não é apenas conceptual, influencia muitas das opções políticas que são tomadas todos os dias.

Vale a pena lembrar que o Estado contemporâneo é indissociável da emergência e do desenvolvimento do capitalismo. Neste processo, o papel do Estado foi duplamente repressivo: proteger a propriedade privada, não apenas contra os bandidos mas também contra aqueles que se opunham à acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos; e submeter pela força outros países e povos, para permitir a expansão do poder económico além-fronteiras.

Não admira, pois, que o Estado tenha sido desde cedo um alvo de críticas por quem se opunha ao autoritarismo e à exploração dos mais fracos. Para Marx, por exemplo, no contexto capitalista o Estado constitui um instrumento ao serviço das classes dominantes, uma “comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa”, lê-se no Manifesto do Partido Comunista.

O cepticismo de Marx em relação ao papel do Estado contrasta com a ideia comum que faz equivaler o marxismo a uma presença omnipresente do Estado nas economias e nas sociedades. Esta ideia decorre mais da evolução histórica da experiência soviética e de outras que se seguiram do que da leitura marxista original sobre o papel do Estado em sociedades como aquelas em que vivemos hoje.

Mas não é só no campo marxista que as confusões abundam. John Stuart Mill, um filósofo cimeiro da tradição liberal, contribuiu de forma decisiva para denunciar o papel coercivo do Estado, constituindo como tal um risco para a liberdade individual e para o respeito pelas minorias. No entanto, ao contrário do que se possa pensar, o mesmo Mill via no Estado um actor fundamental para promover a igualdade, a justiça social e o bem comum.

A confusão continua quando analisamos a evolução da social-democracia. Durante boa parte do século XX, os sociais-democratas inspiraram-se tanto na crítica marxista ao capitalismo como na visão do liberalismo clássico sobre o papel do Estado, vendo-o simultaneamente como um risco e como um instrumento de promoção do bem-estar geral. Para a social-democracia clássica, a intervenção do Estado é fundamental para corrigir as ineficiências dos mecanismos de mercado (externalidades, bens públicos, poder de mercado, etc.), para impedir a submissão de vastas áreas da vida em sociedade à lógica mercantil (o direito ao trabalho, à saúde, à educação, à protecção social, etc.) e para minimizar a instabilidade intrínseca ao sistema capitalista (através de políticas de estabilização macroeconómica e do controlo sobre os mercados financeiros). No entanto, muitos partidos sociais-democratas estiveram na linha da frente do ataque ao papel do Estado em todas as dimensões referidas desde a década de 1970.

Para confundir ainda mais, aquilo a que chamamos neoliberalismo, ao contrário do que muitos julgam, não se caracteriza pela defesa de um Estado mais fraco. O que preocupa os neoliberais não é saber se o Estado é maior ou menor: durante as presidências republicanas de Ronald Reagan e George Bush pai (1981-1993), por exemplo, o peso das despesas públicas no PIB americano não só não diminuiu como aumentou, de 30,1% para 32,8%. O que importa não é a dimensão, é o tipo de funções que o Estado exerce. O objectivo central dos neoliberais é estender a lógica de mercado e da acumulação capitalista a todas as esferas da vida em sociedade. Se para tal for necessário gastar mais recursos públicos em segurança, em defesa ou até na externalização para empresas privadas das funções tradicionais do Estado, assim seja.

A experiência do século XX mostrou-nos que o Estado pode ser tudo: autoritário, invasivo, emancipador, defensor de liberdades e garantias individuais; pode estar ao serviço de poucos ou da maioria; pode servir para promover a guerra ou a paz, a repressão de minorias ou a inclusão social.

Os principais debates políticos que hoje se fazem à esquerda e à direita não visam pôr em causa a existência do Estado, nem sequer a sua dimensão. São muito poucos os verdadeiros libertários (sejam de esquerda ou de direita) que vêem uma incompatibilidade intrínseca entre a existência de um Estado e o respeito pela liberdade individual. O que mais distingue a esquerda e a direita é o papel que se defende para o Estado, em particular o modo como interage com os mecanismos de mercado.

Aqueles que defendem o predomínio da lógica da competição nas várias esferas da vida em sociedade compreenderam há muito que o Estado é um instrumento indispensável para atingir os seus fins. Aqueles que, pelo contrário, defendem a necessidade de impor limitações à lógica mercantil devem lembrar-se que a intervenção do Estado pode ser necessária, mas não é condição suficiente. Para que promova a justiça social e reduza a instabilidade no respeito pelas liberdades de todos, o Estado tem de ser devidamente escrutinado. Independentemente de ser grande ou pequeno, o fundamental é que o Estado seja melhor.

Economista e professor do ISCTE


14 pensamentos sobre “A esquerda, a direita e o Estado

    • Lindo menino, este é de facto um sobrinho do Fernando.
      Ora, o Fernandes de quem se fala é Sá mas, na verdade, também é Ricardo:
      Ricardo e Ricardo, a PDI sempre a atacar, dai a tua confusão, entendo-te
      (isso é o menos: não te invejo teres de ler c’as xaropadas do Vitinho
      todo o santo dia, uff!, o camarada do Tarrafal).

      🙂🙂

      • Adenda. Ia elogiá-lo mas o parvalhão não resiste.
        Lá estão a merda dos links para o seu blogue merdoso.
        Que figuras, tem pai qu’é cego!

  1. Folgo por ver um colega de formação a abordar estas questões. São poucos os que se afastam da avaliação do PIB, da FBCF, do empreendedorismo, do deficit… que se afastam do economicismo. São poucos os que se referem ao capitalismo como sistema de organização política e económica, com interesses concretos e grupos sociais em confronto.

    Porém, a análise do Ricardo aponta para questões interessantes

    1 – De facto, a dita esquerda e a direita comungam a ideia e a prática da utilização conveniente do Estado. Não é isso que as distingue sobretudo porque , não se pode falar de esquerda, como há cem anos. A dita direita defende a iniciativa privada, a democracia dita parlamentar (que habitualmente designo por democracia de mercado) e a tal esquerda encaixa-se perfeitamente no modelo, com propostas e práticas que se distinguem apenas nos pormenores ou no verbo

    2 – O socialismo é um cadáver.

    Morreu, primeiro na versão SPD e respetivas cópias na década de 10/20 do século passado, quando se definiu – arrastando outras formações políticas, como agente de gestão do capitalismo. E, nesse contexto, ao lado da tropa massacrou gente de esquerda (esses sim)– spartakistas, anarquistas, socialistas revolucionários. E, nesse contexto, o aparelho de Estado foi essencial, uma vez mais como instrumento do capitalismo.

    Pela mesma época, o famoso Lenin e o seu mestre de obras ,Trotsky, eliminavam os sovietes e os conselhos de fábrica, incorporando tudo e todos num Estado totalitário regido por um partido único, intratável, que eliminou rapidamente qualquer divergência; massacrando 20000 pessoas em Kronstadt, arrasando a Ucrânia e a sua tradição de agricultura cooperativa, coletiva, a que se seguiu a repressão estalinista. Estava criado o capitalismo de Estado no qual a burguesia tradicional foi substituída pela nova burguesia dos quadros do partido; não se percebendo o que havia de esquerda nesse modelo. Mais tarde, a China enveredou por um capitalismo concorrencial mas, dirigido no topo pelo partido.

    Claro que nessa linha horizontal há sempre algo que é menos reacionário ou mais reacionário. Por ex. o PS português é tomado como o mais direitoso da Europa e no entanto estará à esquerda do PSD; fica por saber que utilidade tem para o povo essa topologia.

    O capitalismo, no século XVII/XVIII criou o estado-nação, o nacionalismo e o aparelho chamado Estado . Se o Estado é por definição um instrumento do capital são os grupos de agentes do capital que o controlam e gerem. Sempre assim foi, mesmo ao tempo das cantadas nacionalizações de 1975, quando todos os grupos ditos de esquerda, estalinistas e maoistas (os trotskistas ainda estavam no berço) viram nas nacionalizações de empresas absolutamente descapitalizadas uma caminhada para o socialismo. Uma década depois, o investimento público e a reestruturação do sector nacionalizado tornou-as rebuçados para o capital privado.

    De facto, o Estado é o elemento essencial de domínio, com um poder próprio e, tendencialmente ditatorial ou claramente impositivo, sem pingo de democracia; ou um poder delegado, emanado pelos mais elevados interesses que concorrem para fazer valer os mesmos junto da classe política. E esta divide-se em duas parcelas – todas zelosas defensoras da existência de oligarquias corruptas ao serviço dos grupos de capitalistas nacionais ou multinacionais; uns vão procurando gerir o pote e outros que esperam a sua vez de o abocanhar

    A esquerda, depois dos massacres dos anos 20 na Europa , evidenciou-se, ali, em Espanha fazendo frente aos fascistas e aos sicários do PCE. Em 1968, houve uma enorme movimentação de esquerda, em França e Itália que soçobrou. E recordemos o mea culpa de Bettelheim quando descobriu ter sido aldrabado quanto aos feitos da China maoista

    Para não alongar demasiado estas notas, recordemos o papel da “esquerda” portuguesa em 2010 e 2013, respetivamente no âmbito das manifestações contra a cimeira da NATO e, depois com o “Que Se Lixe a Troika” criado pelo BE/PC em total harmonia para conduzir os protestos populares a um beco sem saída, enquanto a Troika fazia estragos.

    Em suma, falar de esquerda institucional, na Europa, dá vontade de rir . Onde estão os PC’s que não na decadência ou na irrelevância? O BE? o Podemos? No Melenchon? No caso do Syriza… a coisa foi mais clara…

    Só há esquerda, se nos situarmos, para não ir mais longe, aos tempos dos sans coulottes na Revolução Francesa; na Comuna de Paris; nas efémeras republicas dos conselhos na Baviera e no Ruhr, nas medidas sociais e igualitárias desenhadas durante a Guerra Civil espanhola – todas afogadas em lagos de sangue!. Só há esquerda onde se defende a abolição desse instrumento essencial para o capital – o Estado ; onde as decisões são tomadas em coletivo e executadas nesse mesmo âmbito; onde a satisfação das necessidades se sobrepõe ao crescimento do PIB; ou onde não haja capitalistas.

    Fora disso, teremos trumps, guerras, alterações climáticas, jornadas de trabalho enormes e penosas, para mais no desempenho de tarefas inúteis e aparelhos de Estado cada vez mais gordos, ávidos de receitas, geradores de dívida para agradar aos “mercados” com as esquerdas de plástico a clamar mais e mais intervenção do Estado (leia-se oligarquias intratáveis, corruptas, intelectualmente indigentes).

    VL

    • Caro VL.

      Quer dizer que a esquerda é uma utopia impossível de realizar.

      Assim que um grupo esquerdista alcança um mínimo de sucesso deixa imediatamente de ser esquerdista.

      Isso será por um azar monumental, verdadeiramente dos diabos, tipo maldição do faraó?

      Não será mais lógico admitir que será porque há qualquer coisa de errado com essa ideologia?

      A título de exemplo, no seu caso, como em todos os milhares de tendências esquerdistas, apresenta a sua solução milagrosa. No caso centrada na extinção do estado.

      Bem, essa também é defendida pela extrema direita libertária.

      Sabe porquê? Precisamente porque iria permitir que florescessem centenas de milhares de pequenas tiranias locais.

      Aliás o ocidente viveu séculos num sistema semelhante, sem ou com pouco estado, durante o feudalismo.

      Conhecendo nós a dinâmica dos grupos humanos, quem é que lhe diz que, no seu caso não os capitalistas locais mas, por exemplo, eventuais “secretários” de bairro e de fábrica não se iriam tornar em tiranetes locais? Eventuais pequenos caligulas de esquina, visto não serem sujeitos a nenhuma supervisão…

    • Há mais esquerda para além do anarquismo, e não ajuda nada à causa que estes tendam a continuar a usar conceitos neoliberais económicos, desde o Richard Murphy ao Vítor Lima. Entre um abstracto conceito de auto-organização dentro globalismo e o MMT com provas dadas de como controlar o capital no mesmo contexto, a utopia pode esperar, até porque só os estados podem resolver o clima.

  2. Viva Pedro

    As utopias são isso mesmo utopias. Porém, hoje estamos mais realistas do que Thomas Morus e Campanella
    Em cada tempo há um painel de “utopias “ disponíveis ou concebíveis

    Naturalmente, quem tem o poder faz tudo o que pode para o conservar e, se possível para o alargar

    Não há ideologia de esquerda mas ideologias; umas mais outras menos avançadas, outras mais ou menos retrógadas. E ser de esquerda é coisa difusa. Para o verme Ventura, o tosco Chicão é de esquerda. Para o Costa, a Catarina e o Jerónimo são de esquerda; e para estes, por tática política, não qualificam o Costa como de direita mas falam de políticas de direita. Tretas

    Essa de que um tipo da extrema direita libertária também não querer Estado, tal como os anarquistas é tão relevante como sabermos que ambos gostam de cozido à portuguesa, que ambos gostam do SLB ou que ambos frequentam a Costa da Caparica

    De facto na Europa feudal a figura de Estado não existia. O poder de uns sobre outros existia, claro mas era muito restrito. Havia livre circulação e não fronteiras e o senhor feudal “só” queria um saco de trigo, por exemplo, por ano, a possibilidade de se apossar de jovens para as suas disputas com congéneres e, eventualmente exercer o direito de pernada. Para manter a plebe mansa lá estava o padre que mantinha o medo do Além com discursos em latim que o povo não entendia mas era obrigado a engolir. Na realidade, as pessoas comuns não precisavam do senhor para coisa alguma; aquele é que precisava deles. Desenvolvi recentemente este tema que foi apresentado numa conferência em Lisboa, quase só com a presença de estrangeiro, nos três fascículos de “Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo”

    https://grazia-tanta.blogspot.com/2019/12/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.html
    https://grazia-tanta.blogspot.com/2020/01/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.htmlhttps://grazia-tanta.blogspot.com/2020/01/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.html

    Na realidade eles, os oligarcas e os capitalistas é que precisam do Estado, para se servirem e ajudarem os esforçados capitalistas a singrar. O ditoso Paulo Portas dizia com um tom algo bíblico que “temos de ajudar os empresários (não referia capitalistas porque a palavra tem conotações negativas) porque são eles que criam empregos”. Dito de outro modo, Deus não teria criado Adão e depois Eva para o distrair mas antes, teria criado o empreendedor e depois o assalariado devendo todos viver felizes no Paraíso. A máquina estatal é cada vez mais opressiva e rapace; criando impostos, taxas, leis, regulamentos, obrigações, cortes e gastando o dinheiro no apoio aos empresários, armamento, burocracia (porque não lhe interessa reduzir a jornada de trabalho e criar tempo disponível para a plebe pensar ) e tachos para a classe política e excelentíssimas famiglias e famílias

    Os tiranetes locais? Estão por aí, aos magotes! E sabe porquê? Porque a democracia dita representativa é uma aldrabice. A democracia é direta ou, não é democracia

    Acrescento alguns elementos sobre uma aplicação de democracia direta aplicável à paróquia lusa

    1. Aplicação do princípio da subsidiariedade, segundo o qual, as decisões sobre a vida coletiva são somente tomadas pelos seus beneficiários diretos. Por exemplo, um infantário é decidido pela população de uma freguesia mas uma escola secundária, será decidida pela população de várias freguesias;

    2. Todo e qualquer residente há mais de um ano numa circunscrição eleitoral tem o direito de se candidatar à representação em qualquer nível onde essa circunscrição esteja contida;

    3. Qualquer eleição não poderá recair num mesmo elemento mais de duas vezes;

    4. Não há lugar a candidaturas coletivas;

    5. Qualquer eleito como representante tem os deveres de se informar e manter informados os seus eleitores, de recolher entre estes uma súmula do pensamento coletivo, por referendo, se necessário; é precisamente neste figurino político que a representação legítima e democrática se pode e deve perfeitamente enquadrar, numa democracia direta, indo-se ao encontro de relevantes historiadores do pensamento político entre os quais se destaca aqui o italiano Norberto Bobbio (1909-2004). Destarte, democracia direta não é antagónica com a atuação de representantes legitimados como mandatários do povo. A esta simbiose de duas formas de operacionalização da democracia, denomina-se nos meandros académicos e políticos, de democracia semidirecta. Nesse contexto, a democracia direta é naturalmente, representativa mas a inversa pode não se , tal como nos referia o supracitado autor, pois se “ nem todo o Estado representativo é um Estado parlamentar, o Estado parlamentar pode muito bem não ser uma democracia representativa “ (1997:44) ;

    6. Qualquer eleito, em qualquer instância, pode, a qualquer momento ter o seu mandato retirado, por referendo organizado para o efeito, na circunscrição eleitoral que o elegeu;

    7. Existe uma total ausência de imunidades específicas para os eleitos;

    8. Todos os encargos relacionados com o desempenho de uma representação, são cobertos pelo erário público afeto à circunscrição em que o representante foi eleito;

    9. Qualquer elemento, em funções de representação, sobre o qual se demonstre ter cometido qualquer crime ou irregularidade lesiva da comunidade, é suspenso/afastado dessas funções; e a sua punição não tem prazo de prescrição;

    10. A administração pública, a todos os níveis, tem todos os seus lugares ocupados através de concurso público transparente, integro e não por nomeação; a meritocracia toma o lugar das nomeações de carácter questionável, onde é visível a forte influência de elites e directórios partidários, com relevo para os – ainda – dois partidos do arco do poder em Portugal.

    11. O acesso à informação contida em qualquer nível da administração pública está aberto a todos, salvo informações quanto a concursos, enquanto os mesmos não estiverem concluídos;

    • – Interessante falar contra a existência do estado mas depois propor normas gerais que só poderiam ser impostas por um estado…

      Sem estado quem é que ia garantir o cumprimento dessas normas todas?

      Quem lhe garante que a nível local uma comunidade não poderia acabar governada pelos nazis ou pelo ISIS e não inaugurariam câmaras de gás ou recintos de apedrejamento a nível local?

      Administração pública? Sem estado? Como?

      Uma sociedade sem estado caracteriza-se precisamente pela ausência de administração pública e de normas gerais.

      – O problema da esquerda é não entender que a opressão não se deve apenas a uma estrutura económica especifica mas á própria natureza humana.

      Coloque dez individuos numa sala e em pouco tempo uns estão a tentar oprimir os outros.

      Isso é perfeitamente visível nas escolas, com o fenómeno dos bullys e nas prisões, com os “patrões” das celas e dos blocos que oprimem os mais fracos.

      O ser humano reproduz sempre essa estrutura seja em que regime for.

      Não tem necessariamente a ver com dinheiro, muitas vezes os bullys e bosses das escolas e prisões são os mais pobres.

      Numa sociedade sem a imposição de regras gerais por um estado os “bosses” locais fariam as leis em seu proveito.

      Nada nos garante que a vontade de um chefe de gang local seria mais respeitadora dos direitos humanos do que a de um estado democrático – antes pelo contrário.

      Os exemplos que temos, dos rancheiros americanos da lei de Lynch aos senhores da guerra da China do inicio do século passado ou somalis actuais, vemos que os abusos são muito piores nas sociedades sem estado do que nas sociedades com estado democrático.

      • O que para aí vai! Não se podem considerar como estruturais na natureza humana , elementos de ordem política, construções datadas no tempo e na fixação de desigualdades sociais.

        1 – A organização dos grupos sociais, das populações é necessária porque dificilmente cada um de nós pode suprir as suas necessidades sem o concurso de outras pessoas (Espinoza explica isso). Dizer que isso só pode ser conseguido com uma oligarquia com poderes de garantir coercivamente a obediência dos restantes é tomar Estado como algo inerente à espécie; e não é, nem nunca foi; e equiparrar os forçados à obediência como carneiros tementes do cajado do pastor

        2 – As normas coletivas podem e devem ser geridas coletivamente, com decisões coletivas e sem reis sacerdotes. E hoje, o precioso Estado garante alguma coisa que não a crescente desigualdade, o empurrão para o consumismo a dívida? E a exação fiscal para uma redistribuição regressiva ? E as guerras ? E os aparelhos judiciários e polícias cada vez mais extensos? A coerção, portanto deve basear as nossas relações numa lógica militarizada, no trabalho, na escola, em casa… como na prisão, não?

        3 – A referencia à câmaras de gás é demagógica. O armamento actual nas mãos de oligarquias de dementes está por aí à vista, com Estados ditos democráticos, com eleições e parlamentos, a usá-las e a melhorá-las

        4 – Adminsitração pública é pública, é a gestão da res publica, das necessidades coletivas. Não é monopólio de casta; e quando o é temos a corrupção e o compadrio

        5 – Há em si o preconceito de que a espécie humana é irremediavelmente má e egoísta, marcada por um qualquer pecado original, como na tradição judaico-cristã; e daí que tenha de haver uns pretensos iluminados – classes políticas e caceteiros – para impor a lei e a ordem… que eles definem. claro. Os restantes terão de ser feitos de carne de obedecer?

        6 – Não é preciso chefes para coisa alguma. As decisões devem e podem ser coletivas, envolvendo todos os interessados e intervenientes, com todos a dar opinião até se atingir um consenso. Só é difícil quando alguém pretende situações de favor. O articulado referido na última postagem foi retirada de um projeto de defesa da democracia direta – em substituição desta palhaçada corrupta que nos consome e rouba, chamada “democracia representativa” em que só os gangs partidários estão representados

        5 – Sem tocar na lei de Lynch ou nos senhores da guerra chineses vejamos os somalis. Primeiro, quem definiu o que é a terra dos somalis? Não foram eles. A “comunidade internacional” que pretende impor a sua lei e a sua ordem não é aceite pelos somalis; que já tiveram de correr com os etíopes armados pelos EUA e agora com os quenianos também a mando dos EUA. Se essas estranhos de lá saírem e os deixarem em paz, sem despejar resíduos tóxicos nas águas somalis ricas em peixe que fica envenenado, seria interessante, não? Continuamos com o preconceito de que é preciso “brancos” para ensinar e disciplinar os brutos dos “pretos”?

        O colonialismo – que ainda sobrevive – com as sociedades africanas ainda mais desestruturadas que antes, continua a seguir as sábias palavras do Dumont para definir o colonialismo; os 3 “M” – le militaire para conquistar e matar, le marchand para roubar, e le missionaire para amansar e fazer aceitar sem refilar as ordens dos mandantes

        Com esse tipo de lógica, Pedro , faz-me lembrar a minha avó que rematava qualquer discussão de ordem política com um “sempre assim foi e sempre assim será”

        “Quando um homem sonha, o mundo pula e avança”

        • – Já existiam estados na Somália milhares de anos antes dos brancos ocuparem o país. Ocupação branca que aliás só durou umas décadas. Parece que realmente os somalis não precisaram dos brancos para criar estados e até impérios esclavagistas.

          – O que remete para o facto de TODAS as sociedades, a partir de determinado nível de população, se organizarem em estados ou pelo menos proto-estados.

          O estado capitalista não é senão a ultima versão do modelo de proto-estado que surgiu nos finais do neolitico, quando chefias militares e religiosas começaram a juntar os povoados e a criar entidades politicas acima do nivel tribal.

          – Parece partir do pressuposto que foi o estado que inventou a opressão, quando na verdade as sociedades pré-estado também a praticam.

          Assim, a guerra, a escravatura, o serviço militar obrigatório a discriminação de género e de orientação sexual, coerção religiosa e de costumes, tudo isso era praticado também nas sociedades tribais.

          – Os casos que citei de opressão espontânea e instintiva, os bullys escolares e os bosses das prisões, não só não são incentivados como são cada vez mais combatidos pelo estado, visto que minam a actividade das instituições do estado.

          – Sim, a “maldade” seja lá a forma como se define isso é inerente á espécie humana. Somos animais predadores que também depredam a própria espécie. Por vezes para comer🍴 mesmo. Muitas sociedades humanas praticaram o canibalismo,🍴, curiosamente a maior parte delas sociedades de bando ou tribais pré-estado…

          Aliás qualquer pessoa com um mínimo de experiência de vida sabe que grande parte das pessoas andam cá só para lixar os outros.

          Atribuir a maldade humana ao estado capitalista é de uma infantilidade 🚼 comovente.😢

          • Estado-nação é um território com limites bem definidos, com uma população mais ou menos homogénea, com um aparelho de estado bem definido, gerador de “poder de estado” sobre os súbditos aos quais exige obediência, impostos e o nacionalismo suficiente para desconfiar, repudiar ou combater os tipos de outro estado-nação.

            Antes do capitalismo, havia senhorios imperiais, o aparelho resumia-se à manutenção do aparelho militar e à exação fiscal para o manter, bem como ao rei, imperador que muitas vezes funcionava como detentor de poderes divinos a exigir a devida veneração

            O que surgiu no neolítico foi a elevação de uns tipos espertos em adivinhar se havia chuva ou sol, o que dependeria dos seus feitiços ou orações e a que os ignorantes recorriam. E, para manter tão excelsa atividade de adivinhação ou cura de doentes precisavam de meios para se manter, alçando-se ao papel de rei-sacerdote, com gente para o defender e cobrar os tributos. As pirâmides estão ali no Egipto. Até Octávio Augusto se tornou divino e objeto de culto; e os romanos, por definição não eram bárbaros

            A opressão institucionalizada, cara, alargada e multiforme só poderia surgir a partir de certo nível de acumulação que o capitalismo montou na exata medida das riquezas do comércio longínquo e da massificação da escravatura e o desenvolvimento da indústria, muito para além dos mesteres medievais. E daí a importância das fronteiras e o papel dado à guerra, como defesa de vizinhos rapinantes ou para serem esses vizinhos as vítimas

            Certamente que em épocas anteriores a violência era mais que muita, MESMO SEM ESTADO; matar alguém era comum podendo haver contrapartidas por parte dos familiares do morto; o papel das mulheres. Hoje, a violência é menos física e quando tem essa forma gera problemas para o agressor. Com maior ou menor receio da atuação estatal, nós pessoas do século XXI, aprendemos a lidar uns com os outros sem espadeirada ou assassínio… talvez porque não sobre tempo disponível depois do circuito casa-trabalho-casa-ecran. Em miúdo, recordo ver cenas de pancadaria na rua (em Lisboa) entre homens e também de mulheres que se agrediam agarrando as guedelhas de cada uma; como ouvia os gritos das mulheres sovadas pelos respetivos machos… que se vangloriavam disso junto de amigos; e a porrada na escola era frequente. E o Estado, não se metia nisso, nem queria saber. A violência hoje é mais subtil, psicológica, intra-muros, privada; e quando passa para a esfera tribunaleira, muitas vezes… é de fugir

            O comité central dos capitalistas, o Estado trata de organizar a contento o depenar da plebe e a aceitação disso

            As prisões tendem a ser privatizadas com o aproveitamento da “mão de obra disponível” para trabalho para o exterior, com grandes margens de lucro; para além do tráfico que enriquece guardas e fixa hierarquias entre os presos. Os Estados estão-se nas tintas para o que se passa nas prisões; é assunto de privados – gangs ou empresas adjudicatárias

            Claro que houve canibalismo… a proteína animal era escassa e os próprios mortos eram devorados. Há poucas décadas, um avião caído algures nos Andes teve sobreviventes suficientes e esfomeados para ferrarem o dente nos mortos

            Essa de que “somos animais predadores mesmo entre si” só acontece em duas circunstâncias; em caso de extrema penúria ou quando a predação é um elemento do funcionamento do mercado, validada pelos Estados.

            Essa da maldade inerente à espécie não será uma emanação vinda do Genesis quando o patrão celeste castigou a espécie com a sobrevivência à custa do suor do seu rosto? E tudo isso porque Adão e Eva decidiram curtir sobre um leito de folhas secas ou na areia quente da praia?

            É lastimável que havendo meios para alimentar 12000 M de pessoas existam os problemas que sabemos

            • ´Não, a “maldade humana” não vem do génesis, vem do facto de sermos o que em termos de zoologia se designa como o “super-predador”.

              Somos o único animal terrestre que depreda todos os outros, a começar pelo próprio.

              Que isso não está dependente do estado mas é genético é o que lhe estou a tentar dizer.

              O estado não cria a violência, reflecte a violência que existe nos indivíduos.

              O estado busca o monopólio centralizado da violência, onde deixa de existir temos simplesmente milhares de monopólios locais descentralizados – os gangs locais exercem a violência, que não são necessariamente melhores, podem até ser muito piores.

              A violência passa a ser exercida pelo traficante do bairro, pelo grande rancheiro, pelo camarada secretário de bairro whatever.

              A sua ideia idílica das sociedades sem estado está fora da realidade.

              Por exemplo, na sociedade feudal os camponeses eram brutalmente oprimidos e os senhores viviam em estado de guerra permanente uns com os outros.

              E antes do estado nação capitalista os impérios hereditários cobravam impostos pesadíssimos para custear as guerras permanentes em que nos faziam viver. isto é, cobravam-nos aos que não fossem das classes privilegiadas…

  3. Interessante como o texto do Francisco Paes Mamede leva um vl a efabular sobre pós-modernismos e pós-histórias, desmentidos pela realidade contemporânea, onde eu vejo um marxista a explicar que o papel do estado na sociedade é o critério fundamental que destingue a direita da esquerda.

    Marx e Engels foram só os primeiros a ver no estado “O” aparelho repressivo ao serviço da classe dominante. É assim, quando surge, durante o esclavagismo, na sua evolução monárquica do feudalismo e na contemporaneidade do capitalismo e do imperialismo. De acordo com as predições desse modelo explicativo-interventivo continuará a sê-lo durante a democracia do proletariado para reprimir O Capital (tem-se verificado em todas as revoluções e exceptuando o caso de Cuba, mostrado ineficiente nesse papel) até se extinguir ele próprio por evolução para uma superestrutura de gestão numa sociedade sem propriedade privada de meios de produção, fase nunca atingida até porque as zonas geográficas “revolucionadas”, maiores ou menores, tiveram e têm de lutar para se defenderem de intensíssimas guerras de agressão por parte do capitalismo hegemónico e portanto não podem prescindir de um estado repressivo.(4)

    A direita, porque defensora do capital, da “sua” propriedade privada e da liberdade para maximizar a exploração de quem não possui meios de produção (1) é sempre favorável a um estado repressivo forte na imposição da exploração e fraco na repressão dos desmandos da classe dominante. Independentemente do que propagandeie, prometa ou queira fazer de conta que defende, vai agir sempre no sentido de reforçar o estado de classe repressivo e limitar-lhe a capacidade de distribuir com justiça a riqueza socialmente criada.

    A esquerda, enquanto defensora dos que não possuem meios de produção, vai pugnar sempre por um estado que garanta amplas liberdades para a maioria (os que não possuem meios de produção) e reprima os desmandos de quem de facto detém o poder: os proprietários dos meios de produção.(2)

    Este é o principal critério para perceber onde anda a esquerda e a direita. As restantes modas, identitárias, culturais, “fracturantes” não passam disso mesmo, de modas a que o facto de a esquerda defender os interesses da maioria (de explorados) e portanto a mudança da ordem vigente, e a direita defender os interesses da minoria (de exploradores) e portanto a manutenção do “estado da coisa”, empurram naturalmente para os lado da mudança em deterimento do lado da manutenção, para a esquerda em deterimento da direita, os que pugnam por mudanças na “ordem da coisa”.

    Afinal o lema da refer&ncia é o critério diferenciador: a esquerda está com o trabalho e a direita com o capital 😉

    (1) Chama-se «maximização da apropriação privada da mais valia socialmente produzida»
    (2) Lembremo-nos que durante o derrube do feudalismo monárquico a burguesia plebeia, em oposição ao estado repressivo monárquico, se sentava à esquerda dos estados gerais.
    (4) Mesmo que disso não tenha consciência.
    (5) É o grão de areia das revoluções “nacionais” a corroer a “perfeição” de um modelo que impõe uma revolução mundial.

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