Quando outro jovem responde ao jovem Bourbon

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 06/11/2019)

Daniel Oliveira

Uma carta aberta pueril, como é normal que seja quando é escrita por alguém de 17 anos que aparenta ter pouco mundo (posso estar a ser injusto), foi o sucesso das “redes”. Publicada pelo “Observador”, ganhou uma legitimidade política diferente daquela que teria se o autor, Manuel Bourbon Ribeiro, a tivesse escrito no seu Facebook.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Aquela redação, sem desprimor para o esforço meritório do jovem conservador, mereceu entrar, pela porta do jornal que hoje representa esse sector da política portuguesa, no debate público. E tendo atingido, a partir daí, notoriedade nas redes sociais, deveria merecer resposta. Preferencialmente de alguém que esteja próximo da faixa etária do Manuel, para que fique clara a falácia que o jovem autor e o “Observador” obviamente quiseram fazer passar: que há aqui um confronto geracional, o que seria extraordinário tendo em conta as velhíssimas ideias que o texto divulga. Haverá um debate político, é certo. E, provavelmente, um combate social.

Tropecei nessa resposta e pedi autorização ao autor, que não conheço, para a publicar aqui. O título é descritivo – “Carta aberta a Manuel Bourbon Ribeiro” – e o texto bastante claro. Ao publicá-lo, não subscrevo tudo o que nela está escrito, apesar de subscrever grande parte. Dou-lhe apenas o espaço que acho que merece. O autor é André Francisquinho (nome real), tem 20 anos e é aluno do 3.º ano da licenciatura de Economia na Nova SBE. Sei sobre ele quase tanto como sei sobre o autor da outra carta. Publicou-a originalmente no site da Comunidade Cultura e Arte.

“Caro Manuel,

Ao contrário de ti, não vou começar esta carta com deliberações de grandeza nacional que, ainda que tenha a certeza de que demonstrem o quanto aprendeste com a professora de História lá do colégio, estão por estes anos já um pouco ultrapassadas. Quando tiveres mais uns aninhos vais perceber que a grandeza de um país é de pouca substância e que criticar é tanto um direito como um dever que não é nem deve ser cingido àqueles que tu consideras que têm autoridade intelectual para o fazer. Se calhar não te apercebeste deste facto, uma vez que fazes dos teus 17 anos uma característica especial, mas a democracia que nos permite a cada um de nós criticar o estado das coisas já por cá anda há uns 44 anos.

Caso também não te tenhas apercebido, a universalidade da educação é um feito histórico e a sua gratuitidade um direito constitucional. Se achas que é chato que esta tal escola gratuita e para todos, sem olhar a classe ou origem, te “impinja coisas sem sentido” como a igualdade fundamental entre homens e mulheres ou a educação sexual, eu arriscava-me a dizer que, por muito que queiras ter liberdade de escolha para optares por outra escola, não vais conseguir é optar por estudar no século XIII.

Se afirmas que queres ter liberdade para escolher o que fazer com a tua saúde, ótimo, estamos de acordo, até porque a despenalização da eutanásia que criticas é isso mesmo que faz: dar a opção a cada um de escolher o seu destino final da forma que achar mais digna, sem preconceitos alguns. Quando também achas que deves poder ir ao hospital que queres, apenas te posso dizer que fico feliz por ti, por efetivamente teres essa possibilidade. E para os que não a têm? Há os impostos que os teus pais pagam que servem, em parte, para financiar hospitais públicos que garantam que ninguém morre por não poder pagar os privados onde tu vais. Sim, porque não acredito que quando te referes aos rendimentos que o nosso país te tira, queiras dizer que já sofreste o que é a precariedade laboral em que tantos jovens um pouco mais velhos que tu e eu vivem e, que eu saiba, as mesadas ainda não são tributadas.

Quanto à natureza dos nossos governantes, a história geralmente mostra que qualquer governante que não é questionado ou escrutinado tem um caminho muito mais fácil para a “grandeza”. Mas é mesmo essa grandeza desmerecida que tem de ser explicada nas escolas e desenterrada (por vezes literalmente) de um passado histórico entrincheirado. Se quiseres falar de corrupção, também o lamento em todas as suas dimensões, mas talvez tenhas mais a aprender sobre isso com aqueles com quem partilhas o teu nome do meio do que comigo.

Eu sei que tens 17 anos, eu tenho 20, a diferença talvez não seja assim tanta, mas porventura três anos sejam suficientes para tomar atenção às contradições dos outros: não deixa de ser engraçado que fales em falta de democracia no nosso país por teres um governo que, para todos os efeitos, governou durante quatro anos com um apoio da maioria dos deputados eleitos ou que questiones a legitimidade de uma decisão referendada democraticamente há já 12 anos.

Posso não ter muitos mais anos de vida do que tu, mas sei que a nossa geração, a outra parte com que tu não te cruzas no teu dia a dia, resultado de um Portugal ainda desigual e classista, está farta da demagogia e preconceito com que tu e outras vozes à tua direita propagam a sua mensagem.

André Francisquinho”

É isto.


5 pensamentos sobre “Quando outro jovem responde ao jovem Bourbon

  1. Assertiva desmontagem de um EU mal amanhado num país que não será, provavelmente, o dele…do seu imaginário! Um EU que nunca terá comido o pão que o diabo amassou, usando assim a metáfora popular para identificar a pobreza e a miséria em que viveram milhões de portugueses ao longo de várias gerações….provavelmente agruras que aquele EU jamais terá vivido/partilhado!!!!

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.