O certo é o incerto

(Ferreira Fernandes, in Diário de Notícias, 09/12/2018)

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Em março de 1968, num editorial que se tornaria célebre, escreveu-se no jornal Le Monde: “A França aborrece-se.” Poucas semanas passadas, foi o turbilhão do Maio de 68… Meio século depois, estamos exatamente na mesma, não sabemos o que vem aí. Mas, desta vez, temos uma certeza: o que quer que seja a vir é inesperado. E enorme. O certo é o incerto, que pode tornar-se esmagador.

Foi o Brexit imprevisível, pois da mais velha democracia do mundo não se esperava tiros nos próprios pés. Foi Trump na Casa Branca, quando ele nunca enganou ninguém: estando lá onde o puseram, inevitavelmente ele ontem escreveria no Twitter que nas ruas de Paris se gritava “Queremos Trump!” (não era em Paris, não foi ontem, não foi uma multidão, foi só um correligionário num vídeo, mas ficou decretada mais essa pós-verdade presidencial). Foi Bolsonaro a ganhar as presidenciais no Brasil, num continente onde os sargentos analfabetos tradicionalmente só tomavam o poder com golpe (gente, eu sei que Bolsonaro não é sargento analfabeto, é só capitão). Enfim, o mundo está demasiado previsível, acontece sempre o inesperado.

Pode faltar gasóleo barato nas cidades francesas de província, emprego nas minas de carvão dos Apalaches ou segurança nas favelas brasileiras, mas soluções e líderes estapafúrdios não faltam. Por cada reivindicação, quase todas elas legítimas, já não acontece o costumeiro: os governantes arremedam e os cidadãos, no dia do voto, confirmam ter ficado sossegados. Agora, eis a nova época (já não é só moda passageira): aparece um tipo colorido e tonitruante, e personifica a contestação (Trump, Bolsonaro…) Ou um palhaço surge e logo desaparece mas deixa a confusão instalada (Beppe Grillo em Itália, Farage na Grã-Bretanha…) Ou a multidão enche as ruas ou as urnas (França, Andaluzia…) e deixa-nos frente a um muro.

Fosse o lugar disto um palco e estávamos mais bem servidos do que nos tempos fastidiosos em que a democracia nos embalava. Mas, não, não é espetáculo, pelo menos daqueles em que o pano acabava por cair e nos devolvia ao ramerrame da vida. Por mais que eles se caricaturem (vermelhuscos de solário, palavras de tolo, mentiras de garoto indecente), eles são perigosos. Na fase inicial, que é a que vivemos, aparecem em manada votando tiros nos pés ou partindo montras e, quando em pessoa, epifenómenos exprimindo iniquidades. Mas isso é o menos, não fossem estes sucessivos inesperados (agora, certos de acontecerem) anunciar um descontrolo político em futuro próximo.

Não, não é fascismo. Nem Trump é Hitler, nem os cavaleiros andaluzes que prometem a Reconquista o são. Não, não é fascismo. Ainda não é a violência organizada, o assalto ao poder para institucionalizar o fim da democracia. Por enquanto. É sobre esta certeza – isto caminha para o descontrolo político num futuro próximo – que tem de se ponderar. Sobretudo os políticos têm de pensar nisso. Falo destes, dos nossos, de todos de esquerda e de direita para quem a democracia tem de ser. Tem? Então comecem por não cometer pecadilhos (metáfora piedosa) que nos dias de hoje podem tornar-se capitais.

Os diversos intermediários para a desgraça ainda são só isso, intermediários, antecâmara de um enorme sei lá o quê. Mas já são intermediários porque lhes abriram as portas da cidade dos cidadãos. Cada um dos conseguimentos deles tiveram cúmplices involuntários dentro da cidade. A corrupção da direita e da esquerda brasileiras trouxe para elas o desmoronamento e, para os brasileiros, Bolsonaro. O gosto pela politiquice levou Cameron, um anti-Brexit, a fazer um referendo imprudente e estúpido que criou uma crise continental. Os pactos parlamentares dos socialistas espanhóis com independentistas – mesmo com aqueles que tinham acabado de organizar uma sedição nacional – levaram muitos andaluzes a abandonar o PSOE, a maior força política da região.

Os políticos para quem a democracia tem de ser, esses, têm de saber que os tempos não estão para brincadeiras. Então, não brinquem. Uma coisa é certa, à espreita está uma multidão iludida por um perigoso agitado. E, se aquela é iludida e este é culpado, não restam dúvidas de que os brincalhões não vão inocentes para o caixote do lixo da História.

2 pensamentos sobre “O certo é o incerto

  1. Mussolini e Hitler massificaram e manipularam os povos com as arengas na rádio,
    Mais tarde inventaram a máquina que iria mudar o mundo… no sentido da imbecilidade. A que se juntou o futebol, quase todos os dias da semana, com dezenas de comentadores a adivinhar o que dizer sobre algo que nada tem para ser dito.
    Ainda mais recentemente passámos a ver multidões com os olhos e a atenção encalhados em jogos repetitivos e primários; imbecilizados.
    Quanto à Andaluzia, discordo da relação com a Catalunha. O Ciudadanos, originário da Catalunha, vem rapando o eleitorado do PP. O PSOE está com a crise dos partidos ditos socialistas ou sociais-democratas (ex, o PSF que não se sabe onde anda, o respeitável SPD, na Itália é coisa que nem há e na Grécia o avatar Tsipras secou o Pasok). Em Portugal. o PS teve de se valer dos compagnons da “esquerda” para aceder ao pote; e assim vai continuar.
    Por outro lado, o atual governo do Sanchez, é periclitante, nada adiantou quanto à Catalunha, mantendo os mesmos presos políticos e gente obrigada ao exílio. E, entretanto, os neofascistas do VOX que durante anos andaram em eleições com votações miseráveis, cavalgaram a onda LePen, Salvini, Trump, Bolsonaro, Orbán, Wilders, etc acenando com os “perigos” da forte imigração na Andaluzia. Creio não ser assim tão evidente um reflexo catalão em Sevilha e nos confrades da Susana Diaz
    Abraço
    Grazia Tanta
    http://grazia-tanta.blogspot.com/

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