É pior roubar que violar

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 01/10/2018)

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Para um roubo ser violento basta constranger; na violação o mero constrangimento não é violência, diz a lei. Porque, lá está: à partida ninguém consente em ser roubado, mas sabe lá quem viola se a vítima não está a gostar.


Muita gente ficou espantada por descobrir que a lei não dá ao ato de violar uma pessoa inconsciente o nome de violação mas de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. E por um acórdão da Relação do Porto certificar que esse é um crime “sem violência”. Também a moldura penal do dito (de dois a dez anos, praticamente igual à de violação — de três a dez) causou perplexidade: há quem a repute de demasiado baixa.

Precisamente, numa ida à TV em defesa do acórdão, uma representante sindical dos juízes aventou que o problema não está em quem julga mas na lei, que deveria, talvez, ser alterada. Em quê não disse. Já a professora catedrática de Direito Penal Fernanda Palma, em declarações ao DN, foi clara: o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º do CP) deve ser incluído no crime de violação (164.º) e a pena deste último deve aumentar.

Palma sublinha igualmente que a atual redação do artigo 164.º e a sua muito estrita definição de violência é inconsistente com as definições de violência que informam outros crimes.

Por exemplo, a definição do crime de violência doméstica inclui, além da violência física, a psicológica. E, no capítulo dos crimes contra a propriedade, o roubo (artigo 210.º), que se distingue do furto (204.º) pela violência na apropriação da coisa alheia, tem, frisa a jurista, uma tipologia que evidencia o facto de “a violência neste crime não ter de significar ofensas corporais”, ou seja, violência física. Será roubo, por exemplo, constranger alguém a entregar um porta-moedas ou telemóvel apenas por via do temor criado pela exigência.

No roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

Mas, ao contrário do que sucede no atual artigo 164.º, em que se preveem dois tipos de violação – um mais grave, “com violência, ameaça grave ou colocação em incapacidade de resistir” e pena de três a dez anos, e outro menos grave, em que o constrangimento para a submissão ao ato sexual é “por qualquer outro meio” – e aí a pena é de um a seis anos -, no roubo não há diferenciação estipulada de penas e portanto de gravidade consoante a vítima leva uns encontrões e chapadas para ceder o que é seu ou se o entrega sem protestos, paralisada pelo temor. Ambas as condutas são, e bem, consideradas violentas.

O que há no crime de roubo, cuja pena-base é de um a oito anos, é um conjunto alargado de agravantes que a aumentam para de três a 15 anos. Vão desde a natureza do bem – “ser afeto ao culto religioso” é uma – ao que se tem de fazer para lhe aceder (arrombar uma gaveta fechada à chave, por exemplo), até ao aproveitar de uma circunstância em que a vítima se encontra – a sua “especial debilidade”, “um desastre”, “acidente” ou “calamidade pública”.

Assim forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente – o tal “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”. Para não falar do facto de se considerar que a tutela dos bens “afetos a cultos” deve impor penas mais altas do que a do direito que cada pessoa tem de decidir quem lhe toca, com quem tem ou não tem sexo, quem pode ou não penetrá-la.

Forçar uma gaveta ou aproveitar a especial debilidade ou fragilidade circunstancial de alguém para roubar merece, para a lei em vigor, uma pena muito mais grave do que aproveitar o facto de uma pessoa estar inconsciente para a despir e usar sexualmente.

Esta evidência, que demonstra o quanto o Código Penal de 2018 está desadequado em relação ao sentir básico da “pessoa comum”, para quem uma violação (sobretudo se nela perpetrada, claro) é algo de infinitamente mais gravoso do que ser despojado de um objeto, ganha outra dimensão quando olhamos para a história da lei penal. Até 1995, esta não via sequer os crimes sexuais como crimes contra as pessoas, muito menos, como hoje são definidos, contra a liberdade sexual. Estavam incluídos na parte “Dos crimes contra os valores e interesses da vida em sociedade” e no capítulo “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”. Eram, portanto, crimes “contra a moralidade”.

E com uma particularidade: a vítima era identificada como feminina. A violação – artigo 201º do CP de 1982 – era definida como “ter cópula com mulher”. E no seu número 3 previa que a pena, de dois a oito anos, seria “especialmente atenuada se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente”, tivesse “contribuído de forma sensível para o facto.” (Estão a ver de onde vem a “sedução mútua”?)

Este Código, no qual as vítimas de crimes sexuais eram sobretudo mulheres e portanto das quais por princípio se desconfiava, foi aquele que a maioria dos juízes dos tribunais superiores conheceram no seu período de formação. Quiçá alguns não terão dado conta de que mudou. Até porque, na verdade, o seu espírito persiste no atual: a pena para um roubo do qual resulte a morte do roubado ainda é muito mais elevada – de oito a 16 anos – do que a da violação da qual resulte a morte ou suicídio da vítima: de quatro anos e meio a 15.

É possível que haja para esta infâmia outro motivo que não o do desprezo secular da justiça pelas mulheres. Mas não me ocorre nenhum.

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