(Por António Guerreiro, in Públlico, 12/05/2017)
Nestas últimas semanas, em que a França foi motivo de um discurso público, pudemos confirmar a persistência de um tópico já com alguma idade: visto do exterior, o Hexágono – as suas idiossincrasias políticas e a sua cultura – só é admirado e elogiado a 50%. É sempre preciso salvar “a França de X” contra “a França de Y”. Facto curioso: por cá, quando esta fórmula é utilizada, é para salvar a parte medíocre ou já inactiva.
Estes admiradores da França a 50% acham que ela se move entre dois pólos, o do mal e o do bem, o da Revolução e o da Civilização. Suponhamos: entre o pólo Marquês de Sade e o pólo Condessa de Ségur, as preferências recaem na Condessa (aliás, pérfida), em detrimento do Marquês (dito divino).
Nenhum outro país obriga a estas concessões: não encontramos facilmente quem ache que é preciso salvar a Espanha de Dom Quixote da Espanha de Sancho Pança; ou que é preciso maldizer Brecht para venerar Arendt. A França, ela própria, tem certamente algumas culpas nestas representações de dupla face. No seu Dictionnaire des idées reçues, Flaubert deu esta definição de Français: “O primeiro povo do universo”. A definição de Flaubert requer um pequeno ajuste: o povo do universal, esse sim, corresponde a “une certaine idée de la France”. Uma maneira bastante mais sofisticada de olhar a França, encontramo-la no filósofo alemão Peter Sloterdijk, que reuniu em 2013 vinte e três textos sobre autores e temas franceses num volume intitulado Mein Frankreich, “a minha França”. Há, como sabemos, um mito alemão da França, tal como há o mito francês da Alemanha. Mas a paixão de Sloterdijk pela França, declarada neste livro, não alimenta o mito e é até bastante desmitificadora. Com apaixonados destes, dotados de um amor tão cerebral que não fica aquém dos libertinos franceses do século XVIII, a França tem razões de sobra para sucumbir à melancolia, ao sentimento elegíaco que a atormenta há muito tempo e que se manifesta num desfile de reflexões masoquistas sobre grandezas perdidas, como a que fez Jean-Pierre Chevènemet, em 2011, num livro que começa, no título, com esta pergunta: La France est-elle finie?. Diz Sloterdijk que se existisse “uma geopolítica europeia da consciência infeliz” a França ocuparia nela um lugar central. E, com a brutalidade de um gigante hanseático, inicia o seu diagnóstico: a França, que engendrou a ilusão de que tinha aderido à Resistência e, conduzida pelo general de Gaulle, tinha ganho a guerra, é a mesma que resistiu aos fenómenos geralmente designados com os termos “liberalismo” e “neoliberalismo”. Sloterdijk acha que ela quis ser uma excepção sem no entanto o poder ser, e que essa resistência ao espírito liberal não foi acompanhada por uma atitude de confiança, tal como a mitologia da Resistência ao exército alemão e a Vichy foi uma auto-hipnose, sem arrependimento, de onde a França nunca saiu. Ambas as atitudes, diz Sloterdijk, relevam de um mesmo irrealismo e provocaram-lhe um mal psico-político. No seu diagnóstico, o filósofo aplica-se com alguma insistência a denunciar as “mitologias da esquerda” e o “imaginário revolucionário” como responsáveis da “implosão da França”. E chama-lhe “laboratório de luxo partilhado”, onde o povo quer ser governado por um educador e exige ao governo uma “termo-política social”, uma protecção contra o frio social. Como se vê, há alguma crueldade na declaração de amor que este filósofo pouco dado a gentilezas faz à sua amada, última representante de “uma longa história do pensamento europeu” e pátria “desse grande filósofo, último representante do idealismo europeu”. Chama-se ele: Derrida.