Coreia do Norte em Alfândega da Fé

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 03/04/2017)

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Os alunos de uma escola básica do Alentejo andaram a ensaiar o hino do PCP para uma celebração dos 100 anos da revolução russa que deverá realizar-se na escola, hoje, segunda-feira em pleno horário letivo. O caso, que já recebeu críticas dos pais, pode não ser único. O presidente da associação de diretores admite situações pontuais. Segundo os pais de uma aluna – que denunciaram o caso -, os encarregados de educação não autorizaram a prática partidária. Questionado, o Ministério da Educação respondeu que “a participação de alunos em cerimónias partidárias – mesmo aquelas que eventualmente decorram em período escolar – é permitida e gerida no quadro de autonomia de cada escola”. E acrescenta: “Obviamente, nenhuma criança ou jovem pode ser obrigada a participar nessas cerimónias, sendo obrigatório o consentimento expresso dos pais ou encarregados de educação.”

A notícia saiu na sexta no Jornal de Notícias, e o parágrafo acima reproduz, palavra por palavra, o essencial – com uma diferença apenas: onde está “Alentejo”, “hino do PCP”, “100 anos da revolução russa” e “partidária” lê-se “Alfândega da Fé”, “cânticos católicos”, “missa pascal”, e “religiosa”. Esta diferença, no entanto, parece suficiente para que não haja escândalo nacional, interpelações parlamentares tonitruantes ou exigências de demissões. É que, dir-se-á, é “totalmente diferente” impingir, a alunos do básico, nas aulas de Educação Musical, cânticos religiosos ou cânticos partidários, e organizar, em horário letivo, uma celebração dos 100 anos da Revolução de Outubro ou uma missa pascal.

Só que não há qualquer diferença. Se se vai alegar que a comunidade de Alfândega da Fé é, como o nome indica, “maioritariamente católica”, e portanto decidir, na gestão da escola, transformá-la num estabelecimento de ensino sectário constitui uma decisão democrática, o mesmo se poderá dizer em relação a uma comunidade maioritariamente comunista. Ou PSD, PS, Benfica ou Futebol Clube do Porto. Ou, imaginando que havia áreas do país com predominância muçulmana, com certeza o ministério aceitaria também que as respetivas escolas pusessem os alunos a decorar o Corão – por que raio não?

Que aquilo que deve ser óbvio só se torne óbvio quando usamos exemplos de crenças ou ideologias que não são vistas pela maioria das pessoas, e nomeadamente pelas autoridades e representantes políticos, como algo “anódino”, que “não tem mal”, que “faz parte da cultura e identidade nacional”, e, sobretudo, algo com que não se quer “arranjar sarilhos”, diz muito sobre a forma como em Portugal se encaram os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Porque, na verdade, não é crível que o atual ministro da Educação não saiba que é inadmissível, à luz da separação constitucional entre Estado e religiões, assim como da definição da escola pública, que a direção de um estabelecimento de ensino estatal decida fazer proselitismo religioso, arregimentando os alunos para missas. Ou não estatuísse a Lei de Liberdade Religiosa que “o ensino público será não confessional.” O que se passa é que o ministério não quer chatices com a Igreja Católica. Não quer passar por “jacobino” ou “ateu radical”, ainda mais quando vem aí o Papa.

Uma iniciativa como a da escola de Alfândega da Fé (e que está longe de ser a primeira do género a ocorrer em escolas públicas) será sempre inconstitucional e legalmente inadmissível, com ou sem autorização dos pais, dentro ou fora do horário letivo. E decerto tal não passará a ser aceitável, como a resposta do Ministério da Educação incrivelmente pressupõe, se os alunos cujos encarregados de educação deduzem oposição tiverem “atividades alternativas”. Será que o ministério de Tiago Brandão Rodrigues leu o que escreveu? “Atividades alternativas” à missa? Os meninos que não vão comungar e cantar do missal é que são “alternativos”? Ensandeceram, na 5 de Outubro?

Será que o ministro e os seus serviços desconhecem que só perguntar aos encarregados de educação se estão ou não de acordo com a participação das crianças na missa viola um direito fundamental? Leia-se o artigo 41.º da Constituição, número 3: “Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis.”

A doutrinação escolar de crianças, que tanto nos causa repulsa quando descrita em regimes totalitários como o da Coreia do Norte, pelos vistos é aceitável desde que feita pela Igreja Católica – à qual 106 anos não chegaram para se conformar com não ser religião oficial. Mas, claro, os “radicais” e “odientos” são os que se insurgem contra a obscenidade de, no século XXI, ainda haver quem use o poder conferido pelo Estado democrático para converter menores e condicionar pais.

2 pensamentos sobre “Coreia do Norte em Alfândega da Fé

  1. Abordagem cristofóbica de um problema real, os limites e deveres da laicidade. Que é bem mais complexo.

  2. se fosse o hino americano, lá sei eu, coisa de sentimento, apenas, nem a Cância se importava, mas retinta soarista, sectária, fica ao rubro, qual comunista encarnado/a…

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