A responsabilidade dos “não há alternativa” no ascenso do populismo

(José Pacheco Pereira, 10/02/2017)

Autor

                Pacheco Pereira

1. Anda muita gente para aí incomodada, e bem, com a ascensão do populismo, na Europa e nos EUA. O populismo e a demagogia são enormes riscos para as democracias, visto que colocam em causa os procedimentos da democracia, a sua mediação através de mecanismos como a separação de poderes e a representação parlamentar, e o primado da lei supostamente em nome da vontade popular. Mas não se consegue combater fenómenos como o “trumpismo” ou as variantes europeias de Marine Le Pen sem perceber aquilo que deu força a estes movimentos e sem compreender que há razões profundas para a sua existência e crescimento. E mais, sem compreender que há no impulso populista e demagógico muitas razões que não devem ser ignoradas, mas pelo contrário deveriam ser centrais no contra-ataque democrático. Começa por termos que olhar com olhos muito críticos para estes anos de devastação económica e social que corresponderam à resposta “sem alternativa” à crise financeira.

2. Para o caso da Europa, que não é exactamente igual ao americano, estou a dizer com todas as letras que os principais responsáveis pelo ascenso do populismo foram os governos europeus e a União Europeia, que responderam à crise financeira fazendo cair o seu ónus sobre a classe média e os mais pobres, de forma diferente, mas com resultados comuns, “salvando” os bancos mas aumentando com indiferença as desigualdades sociais. A chave do que estou a dizer é “com indiferença”.

Tratada como efeito colateral, o aumento da exclusão e a maior distanciação social entre ricos e pobres, o empobrecimento da classe média e o bloqueio da mobilidade social, geraram, além dos efeitos da perda de status ou a paralisação da ascensão social, a noção do afastamento acentuado das elites, a começar pela política, e as pessoas comuns. Qualquer sinal, por ténue que seja de corrupção, transforma esta distanciação num abismo.

3. Se a isto somarmos os efeitos de anomia que têm sistemas políticos onde a direita se radicalizou, o centro desapareceu e uma parte da esquerda se colou à direita, perdendo referências e programas, percebemos que apenas ficaram no terreno os extremos políticos. Aliás, empurrar tudo o que era dissidência para os extremos foi também um efeito destes anos, que varreram tudo com a intransigência e a arrogância do “não há alternativa”, acabando por reforçar a radicalização e gerar uma crescente crise dos “partidos de governo”. A captura da governação pelos interesses financeiros, acompanhou este processo, com efeitos devastadores como a abertura de crises que passaram da banca, criminosamente gerida sob o olhar complacente de governos e reguladores, para a sociedade, onde os únicos contratos que eram violados eram os do Estado social e os do mundo laboral. O “ajustamento” dos últimos quase 10 anos escolheu os alvos, e não é surpreendente que esses alvos acabassem por ripostar, até porque ninguém os representou a não ser os populistas e os demagogos.

4. A globalização acabou por ter as costas largas, serviu como justificação para cortar salários e pensões, desmantelar o Estado social, num processo em que, em seu nome, se fizeram certas políticas e não se tocaram noutras. A globalização não é um processo estático, é contraditório nos seus efeitos e depende do que fizermos dele. Não é um produto de qualquer ciência, não tem leis como a termodinâmica, é um processo social, no qual as nossas escolhas – porque podemos e devemos ter escolhas – definem como ela se “realiza” e para quem vão os seus frutos ou os seus custos. Uma mistura de deslumbramento tecnológico, com uma governação medíocre, associada a algumas das piores ideias que vieram dos bas-fonds da direita para encherem o discurso público, com think tanks, uma comunicação social mais próxima do que nunca do poder de facto, e a sucessivas traições de quem deveria falar e se calou com medo – como acontece com os dois partidos americanos, democratas e republicanos, a social-democracia europeia e mesmo muitos sociais -democratas e democratas cristãos – levou a este deserto ideológico e político onde hoje, em desespero de causa, se clama contra o populismo sem se pretender mudar significativamente qualquer política dos últimos anos.

5. A globalização “inevitável”, como aliás muitas outras pragas escondidas debaixo da ideia da “inevitabilidade”, estão agora a dar os venenosos resultados para que muitos preveniram. Mas foi cómodo chamá-los de luditas ou de “velhos do Restelo” face às maravilhas da “nova economia”, sem regras, sem direitos, sem regulação, geradora de desigualdades até à medula, e aqui estão os seus frutos. Não quiseram pensar a bem, nem reformar a bem, não quiseram dar atenção ao crescimento da desigualdade, essa coisa anacrónica dos marxistas radicais, e agora que a mudança se apresenta como tumultuosa estão assustados. E é para estar, infelizmente também para nós, que não alinhamos com a vulgata do “pensamento único” dos anos da crise. Os demónios, que estão já soltos, só à força de muita resistência e luta é que voltam para o Inferno.

3 pensamentos sobre “A responsabilidade dos “não há alternativa” no ascenso do populismo

  1. Obviamente que sim. Aguardemos os próximos passos desta evolução catastrófica, mas temo o pior em termos sociais. Marx morreu mas acertou em muitas coisas

  2. Gosta da abordagem que desconstroi a ideia de que ha mundos inevitáveis e sem alternativas . Globalização,mercados, capitalismo como o vemos….etc etc.

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