A FICÇÃO GREGA

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 27/06/2015)

Clara Ferreira Alves

                   Clara Ferreira Alves

Os chefes europeus pretendem ajudar a Grécia, mas na verdade querem recuperar aquilo a que julgam que têm direito, o dinheiro emprestado.

Gatsby acreditava na luz verde, o futuro orgiástico que ano após ano encolhe em frente de nós. Escapou-nos uma vez, mas isso não importa — amanhã correremos mais rápidos, esticaremos os braços mais longe… E uma bela manhã

E persistimos, barcos contra a corrente, arrastados sem paragem para o passado.”

Esta frase fecha o livro de F. Scott Fitzgerald “O Grande Gatsby”. No tempo do triunfo absoluto do dinheiro, calhou-nos assistir à dança da morte de gregos e europeus, remando incansavelmente para um passado extinto. A literatura podia aclarar as cabeças, mas esta Europa é a de um Sarkozy que chamou Stéphane Camus a Albert Camus e confundiu Roland Barthes com o guarda-redes Fabien Barthez. Os países comportam-se como pessoas e como personagens de ficção. Os países ricos agem como as personagens ricas de um romance de Balzac, “O Pai Goriot” ou “La Peau de Chagrin” (recuso a tradução “A Pele de Onagro”, porque chagrin é também desgosto), ou de Fitzgerald. E os países pobres comportam-se como um Rastignac ou um Raphaël de Valentin. Querem tudo o tempo todo e querem-no agora. Balzac e Fitzgerald são mestres na descrição da civilização do dinheiro, aquela que reduz a discussão e a vida a um confronto materialista entre os que têm e os que nada têm e absorve todas as propostas do espírito humano que escapam a tal tirania. Vivemos, no início do século XXI e do milénio, em tempos parecidos com os do brilhante século XIX parisiense e dos anos entre duas guerras da Jazz Age. Os anos da loucura e do desperdício, do barulho das luzes, da acumulação hedonística de capital e objetos. Aquilo que convencionamos chamar sociedade de consumo. Uma grega da média burguesia lamentava numa reportagem ter renunciado a comprar uma mala Prada anualmente. A mala Prada anual era tão importante como férias, viagens, conforto, comida. Era, simplesmente, parte da felicidade. A pobre mulher, que ainda não verificou os limites da sua destituição, acredita na luz verde. Não é a única. Ouvi o ministro grego da Economia dizer que depois deste “pacote” de ajuda a economia grega iria crescer. Um dos suportes do materialismo dos pobres é a crença na luz verde, uma crença romântica num futuro orgiástico. Neste caso, a Grécia nem pode remar para o passado, porque o único passado a que tem direito é o do tempo da pobreza. Do outro lado do canal, onde brilha a inacessível luz verde, os chefes europeus pretendem ajudar a Grécia, mas na verdade querem recuperar aquilo a que julgam que têm direito, o dinheiro emprestado. A figura do credor/agiota, que encontramos em Dickens e Balzac magistralmente descrita, é uma figura mais do que realista. É real. A Europa rica, com a sua Alemanha/FMI/Tom/Daisy Buchanan, a do poder do dinheiro inabalável, a da violência do tamanho e do título, comporta-se como agiota. E os países pobres, desgraçados e ambiciosos, olhando para lá do que têm direito a terem, comportam-se como Raphaël de Valentin, o herói de “La Peau de Chagrin”. Valentin encontrou uma pele rara que satisfaz todos os seus desejos mas que encolhe de cada vez que um desses desejos é satisfeito. Os países do Sul, durante anos de impensada prosperidade, desejaram o mundo enquanto a pele ia encolhendo. Havia um Rastignac em cada canto, sobretudo nos partidos, usando a política como forma de ascensão social, e havia um Vautrin em cada esquina, o mentor criminoso, o homem que sabe que o maior sucesso é o crime não descoberto. E que por trás de uma fortuna está um crime perfeito. Valentin queria, como Jay Gatsby queria, “viver no excesso”, julgando que basta a estratégia do sucesso e a entrada na alta sociedade (pela porta dos criados) para garantir a pertença. O mundo, um mundo exclusivamente material, torna-se a arena do combate da ambição contra a liberdade. A ambição ganha. A última parte de “La Peau de Chagrin” chama-se ‘Agonia’. Valentin morre exausto por um último desejo consumado, a pele encolhida de vez. Morre como morre Gatsby, vítima do darwinismo social que exclui os fracos que acham que por parecerem ricos são fortes. A pele da Grécia e de Portugal encolheu, a da Itália e da França, que padecem os mesmos vícios, não. Rastignac, de “O Pai Goriot”, reaparece em “La Peau de Chagrin” como mentor de Valentin, sendo um sobrevivente numa sociedade impiedosa.

Nada, nas conversações da dívida grega, fez sentido. A austeridade imposta pela Europa à corrupção oligárquica e ao clientelismo da Grécia adiava a miséria final. Na verdade, a Grécia já saiu da Europa, porque a Europa quer apenas sair da Grécia sem perdas catastróficas e sem sobressaltar os mercados. O futuro orgiástico que nos prometeram é como a pele que encolhe aos nossos olhos, é como a luz verde do outro lado da água — inalcançável. E continuamos a estender os braços, remando sem paragem para o passado.

2 pensamentos sobre “A FICÇÃO GREGA

  1. A Grécia e todo o mundo sabem que eles nunca pagarao a dívida, porque nao podem. Acho que era melhor para os gregos, saírem da UE.

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