O cavalo que falava inglês

cavalo(Nuno Ramos de Almeida, in “Expresso”, 11/014/2015)

Há dois factos relevantes que foram noticiados nos últimos dias e que, embora possam não parecer, estão intimamente ligados: a apreensão de dois bolos pela Autoridade Tributária e a descoberta do FMI de que as estatísticas de emprego são exercícios criativos de produção de realidade eleitoral. Estes dois momentos mostram o falhanço de toda uma política.

O Governo fez-se mais troikista que a troika para resolver os problemas do endividamento — a dívida pública não para de crescer e ultrapassa hoje os 130% — e solucionar a situação da economia — de que o desemprego é um dos principais indicadores. Iniciou o assalto fiscal aos cidadãos. Hoje nas pastelarias deve perguntar-se: “É para comer já, embrulhar ou penhorar?”.

Os resultados, além do ridículo, estão à vista. Desde meados de 2010, foram cortados, pela austeridade, mais de 27 mil milhões de euros. Este esforço desigual pago sobretudo pelos trabalhadores e pelos reformados resultou numa diminuição da dívida inferior a 9 mil milhões de euros. A política do Governo só conseguiu a transferência de dinheiro da população para o bolso dos do costume.

Chegados ao ano das eleições, Passos Coelho e os seus pares querem-nos convencer de que vivemos no melhor dos mundos. Os números que exibem parecem a passagem de um célebre ensaio de Jorge Luis Borges em que se descreve uma enciclopédia chinesa com o sugestivo título de “Empório Celestial dos Conhecimentos Benévolos”. Este livro estabelece uma útil metodologia de classificação do reino animal, ordenando, para todo o sempre, os seres menos racionais da seguinte forma: “(a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados por um pincel finíssimo de pelo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de partir o vaso, (n) que de longe parecem moscas”.

Poucas lições são tão importantes como esta para a política moderna. A estatística é fundadora da realidade e não o contrário — para o Governo não é conveniente, nem suposto, que a realidade se reflita na estatística.

É pois pouco surpreendente que o FMI venha dizer que “o desemprego em Portugal encontrava-se em 13,1% no terceiro trimestre de 2014, bem abaixo dos 17,5% verificados no pico da crise. No entanto, é pouco provável que a escassez de emprego seja devidamente capturada pelas taxas de desemprego oficiais. No caso de Portugal, uma medida mais abrangente, que adiciona ao número de desempregados os trabalhadores desencorajados (que aumentaram drasticamente durante a crise), bem como o trabalho involuntário de curto prazo, coloca o desemprego em 20,5% em 2014, o que compara com apenas 9,5% em 2008. Os grandes fluxos de emigração de trabalhadores desde 2011 podem também ser adicionados ao enfraquecimento do mercado de trabalho, já que muitos trabalhadores migrantes provavelmente voltariam a Portugal caso existissem postos de trabalho disponíveis”, nota o FMI, concordando com o estudo do CES que coloca o desemprego real acima dos 29%.

No início da crise, um dos grandes cronistas do “Financial Times” comparava as políticas da troika à decisão de um condenado à morte, a quem é dada a possibilidade de viver caso ensine inglês ao cavalo do rei. O homem aceita o desafio pensando: “Neste ano, o rei pode morrer, eu posso fugir e até o cavalo pode aprender inglês”.

Não consta que os nossos equídeos o tenham feito.

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