Gaspar e Bento, os ideólogos desiludidos

(Nicolau Santos, in Expresso, 14/02/2015)

Por trás do nosso processo de ajustamento estiveram três economistas: António Borges, Vítor Gaspar e Vítor Bento. Foram eles que deram suporte científico e ideológico ao modo como o Governo de Passos Coelho aproveitou o memorando de entendimento para mudar as relações económicas e sociais no país. Infelizmente, Borges faleceu e não sabemos que balanço faria hoje do que se passou entre 2011 e 2014. Mas quanto a Gaspar e Bento temos os seus testemunhos.

Na sua carta de demissão a 1 de julho de 2013, Gaspar afirma: “O incumprimento dos limites originais do programa para o défice e para a dívida, em 2012 e 2013, foi determinado por uma queda muito substancial da procura interna e por uma alteração na sua composição que provocaram uma forte quebra nas receitas tributárias. A repetição destes desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças”.

No texto que publicou a 8 de fevereiro de 2015 sobre a eurocrise, Vítor Bento afasta-se desta esta visão (que é a dominante na zona euro): “Centrar a abordagem da crise nas finanças públicas nunca poderia conduzir a uma boa solução, pelo impacto negativo que essa abordagem tem tido no crescimento económico. E porque não é a situação das finanças públicas que tem entravado o crescimento, é a insuficiência de procura (em boa parte causada por um excesso de austeridade sistémica) que entrava o crescimento e dificulta o ajustamento das finanças públicas”.

Se ler o ensaio de Vítor Bento, Yanis Varoufakis vai ficar feliz ao descobrir que há quem compartilhe a sua visão da crise.

Pior, os países que fizeram o ajustamento estão agora presos numa armadilha: “Atingiram o equilíbrio externo, à custa do equilíbrio interno (visível nos níveis de desemprego). Pelo que, sem um choque de procura externa, só conseguirão recuperar o equilíbrio interno, sacrificando o equilíbrio externo e só conseguirão manter este, continuando a sacrificar o equilíbrio interno (isto é, a manter elevados níveis de desemprego)”. A cereja em cima do bolo, no texto de Vítor Bento, tem a ver com o discurso moral sobre a crise: “Esta forma de ajustamento tem envolvido uma efetiva transferência de bem-estar social (incluindo emprego) dos Deficitários para os Excedentários. E aqui reside a grande falha da argumentação moral que tem subjazido à condução do processo, pois que não são os Excedentários que têm estado a sustentar o bem estar dos Deficitários, mas o contrário. Nestes termos, a justiça do processo de ajustamento em curso só poderia ser restabelecida com uma transferência efetiva de recursos (e não de empréstimos) dos Excedentários para os Deficitários”. Ou, por outras palavras, “os custos desse ajustamento recaíram quase exclusivamente sobre os países mais pobres, empobrecendo-os ainda mais e aumentando o seu desnível para com os mais ricos”.

Tenho a certeza de que se ler este ensaio, o ministro grego das Finanças, Yanis Varoufakis, vai ficar feliz ao descobrir que tem um amigo inesperado em Portugal, que compartilha com ele a mesma visão da crise.


A podridão do SwissLeaks

O escândalo SwissLeaks, para lá dos aspetos caricatos (como os portugueses que ninguém conhece mas que teriam milhões em contas na filial suíça do HSBC) ou formais (a maioria dos crimes associados a esta fuga de capitais já terá prescrito) vem de novo colocar em cima da mesa a questão incontornável dos offshores. Os offshores servem, no mínimo, para fugir aos impostos — e só estão disponíveis para uma camada muito reduzida de cidadãos, aqueles que dispõem de fortunas avultadíssimas. No máximo, servem para ocultar dinheiro de atividades ilícitas: droga, redes de prostituição, venda ilegal de armas. Para os governos democráticos deveria ser um imperativo acabar com os offshores. Mas se, como argumentam alguns, isso só é possível se todos os países atuarem ao mesmo tempo, então há uma alternativa: retirar a licença bancária a instituições financeiras que sejam coniventes com a fuga e a evasão fiscais. Tenho a certeza que rapidamente escândalos como o SwissLeaks se tornariam residuais.


Maria Luís fez bem

A ministra das Finanças decidiu antecipar o pagamento de parte do empréstimo que o FMI nos concedeu no âmbito da troika. Fez bem. Primeiro, porque nos coloca a par da Irlanda, como um país que também foi bem-sucedido no processo de ajustamento. Depois, porque os juros praticados hoje favorecem a substituição por dívida mais barata, aliviando os encargos do Estado. E, depois, porque Portugal não tem agora dificuldade em captar dinheiro nos mercados a 10 ou 30 anos. É bom senso e boa gestão da dívida pública.


Os próximos 6 meses na PT

A entrevista que Armando Pereira, o misterioso português que é um dos sócios da Altice, deu à RTP Informação, serve para sinalizar o que vai acontecer nos próximos seis meses na Portugal Telecom, que foi adquirida pelo fundo francês. O que Pereira sinalizou, desde já, é que 1) vão atuar rapidamente nos próximos seis meses; 2) vão reduzir significativamente o número de administradores, que serão restringidos a cinco; 3) vão reestruturar as várias áreas do grupo; 4) vão renegociar contratos com os fornecedores. Por outras palavras, o que Pereira disse é que a Altice vai cortar a sério nos custos de estrutura da PT, emagrecendo e despedindo; e vão poupar à custa dos fornecedores. Nada de novo. Foi exatamente isto que a Altice fez quando comprou a Cabovisão: despediu e suspendeu pagamentos aos fornecedores, até estes aceitarem os novos contratos. A pequena questão é que a PT não é exatamente a Cabovisão. O que aí vem é um pequeno tsunami sobre a economia portuguesa, com epicentro na PT.


amanhã vou comprar umas calças vermelhas

porque não tenho rigorosamente nada a perder:

contei, um a um, todos os degraus

sei quantas voltas dei à chave,

sublinhei as frases importantes,

aparei os cedros,

fechei em código toda a escrita.

amanhã comprarei calças vermelhas

fixarei o calendário agrícola

afiarei as facas

ensaiarei um número

abrirei o livro na mesma página

descobrirei alguma pista.


(Ana Paula Inácio, ‘Amanhã vou comprar umas calças vermelhas’, in “Vago Pressentimento Azul por Cima”, Porto: Ilhas, 2000)

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