Last Christmas — O Mundo em que vivemos

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 28/12/2022)

(Para mim, o melhor texto deste ano do Coronel Matos Gomes. Um grande bem-haja a uma das poucas vozes lúcidas que ainda consegue pensar no meio da alucinação coletiva destes tempos negros, uma espécie de Matrix de largo espectro.

Estátua de Sal, 28/12/2022)


A guerra na Ucrânia motivou a recuperação do conceito de Ocidente, que tinha caído em desuso ideológico. A guerra na Ucrânia reergueu muros e muralhas, fronteiras entre impérios com língua, leis, exércitos e uma cultura. “Os portugueses somos do Ocidente”, escreveu Camões, e esta afirmação foi recuperada pelo Estado Novo. No pós-Segunda Guerra a afirmação foi utilizada como elemento identificador da bipolaridade da Guerra Fria. Eis-nos de regresso a esses tempos de Ocidente em versão recauchutada.

O Ocidente, que nos anos 50 e 60 podia ser associado a Mundo Livre, a esperança num mundo mais justo, é hoje uma bandeira descolorida e esfarrapada. O Ocidente de hoje é o que resta dos destroços das aventuras do Ocidente pelo mundo, das guerras da Indochina e do Vietname, do Congo, da Argélia, do patrocínio das ditaduras sul-americanas e de Israel, das invasões do Iraque, do Afeganistão, da Síria, da Líbia, das intervenções em África, dos escândalos financeiros e políticos.

O Ocidente do mercado global, esse “patife decadente e perverso” que resta como elemento identificador de uma civilização, produziu como derradeira obra uma elite geracional — os millennials e Z generation — que replica as bolas de Natal: brilhantes por fora, de casca muito fina e ocos por dentro, de Christmas ornaments em linguagem adequada.

No Ocidente foi notícia que um casal de ocidentais suecos andava a angariar dinheiro e adeptos para eliminar uma música, “Last Christmas”, uma obra que passou a fazer parte dos sons de Natal e que os ocidentais suecos querem banir, impedir que jamais seja ouvida (a não ser na clandestinidade). Querem impor o seu gosto à sociedade à custa de dinheiro. Comprar o que é de todos e pode ser ouvido por todos!

Esta grosseira censura baseada no conceito do alarve que arrota e afirma: Pago, logo posso! — que repete milhares de ações idênticas em época de trevas de destruição de símbolos culturais e identitários, seria em tempos de normalidade da civilização ocidental de estados liberais, de que, curiosamente a Suécia foi um farol, um não caso, uma diarreia resultante de uma ressaca. Mas tornou-se um caso nos tempos que vivemos, de regresso à caverna e ao patíbulo!

O primeiro indício do recuo civilizacional do Ocidente é o facto de esta fanfarronice ter merecido as honras da grande difusão. Não é um acaso. Os manipuladores das opiniões quiseram que ele fosse apresentado ao rebanho como um ato legítimo, quiseram normalizá-lo, e não o fizeram por ser uma notícia divertida, uma bizarria de um par que procurou aparecer, ser “famoso”, ter os seus cinco minutos de fama, mas porque está nos planos de restauração do Ocidente a aceitação de um pensamento de subordinação, de obediência que exige a aceitação da censura. Vêm aí tempos difíceis e os privilegiados querem massas acríticas que não questionem o seu poder!

A parelha sueca, em si, é irrelevante, são apenas atores, ferramentas. Mas a mensagem que transmitem é preocupante. Sou quase surdo, não tenho ouvido musical, não sou religioso, o Natal é para mim uma época de convívio, não conheço a dita música, não sei quem a toca, ou canta, mas recuso-me a aceitar que quem quer que seja, sueco, estónio, islandês, inglês, alemão ou francês reúna uma conta (talvez em bitcoins) e com ela a proíba, a elimine, não com uma bomba, como fizeram os talibãs às estátuas do Buda, mas com o dinheiro.

O ato da parelha sueca passa de forma subliminar a mensagem de que no novo Ocidente o dinheiro serve para destruir bens comuns, e não para promover a justiça e a liberdade.

A proposta muito publicitada destes suecos, e a “normalidade” com que foi admitida, é o resultado de um processo de domesticação ideológica que se iniciou nos anos 80, assente no individualismo, no egoísmo e no poder do dinheiro. Estes suecos são o produto da nova religião do Ocidente: tudo é comprável, tudo é mercadoria. Este par é sueco, mas seguem a doutrina de Elon Musk, ou de Trump, ou da deputada grega que andou a promover o Qatar, ou da namorada do futebolista Ronaldo, que lhe ofereceu um Rolls Royce com o dinheiro dele e o foi exibir em Espanha no meio de uma grave crise que arrasta milhões de pessoas para a pobreza.

A compra do Twiter por Elon Musk, o despedimento de milhares de “colaboradores”, a imposição de censura, ou de liberalização dos apelos à violência, o desprezo pelas vidas dos que vivem do trabalho, a corrupção dos homens e mulheres que tomaram o poder — desde a compra de vacinas à promoção de regimes totalitários, — a instituição das “fake news” como um instrumento legítimo de comunicação dos poderosos, da exibição obscena do luxo e da admissão da compra da liberdade que as obras artísticas representam, independentemente da sua qualidade intrínseca, a promoção de “famosos” e “influencers” de figuras que causaram desastres como o de 2008 com a falência dos banco Lehman Brothers estão a ser apresentados aos homens e mulheres do Ocidente como a Revelação de uma nova era em que a seguir à proibição do Last Christmas será banido o Requiem de Mozart, serão reduzidas a cascalho as esculturas de Miguel Ângelo, que em alguns museus do Ocidente já estão cobertas para que olhos mais sensíveis de islâmicos vendedores de petróleo e compradores de propriedades não se ofendam e recusem os negócios.

Estamos, no Novo Ocidente (que começou a ser designado pelos órgãos de propaganda como “Ocidente Alargado”, que inclui a Austrália e a Nova Zelândia, mas não a Rússia, nem a Sérvia), a ser domesticados para que os novos poderes emergentes nos façam percorrer o caminho de aceitação e imprevidência que Brecht descreveu: primeiro vieram buscar os judeus e eu não me importei, porque não era judeu, depois vieram pelos comunistas e eu descansei, porque não era comunista … até que me bateram à porta. O totalitarismo não é um direito!

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8 pensamentos sobre “Last Christmas — O Mundo em que vivemos

  1. O texto é muito bom de facto. E estava a chegar ao fim para vir só elogiar ou nem sequer comentar (que é o que faço quando fica tudo dito). Mas… tem um erro factual. A tal frase não é de Brecht, é de Martin Niemöller.

    «”First they came …” is the poetic form of a 1946 post-war confessional prose by the German Lutheran pastor Martin Niemöller (1892–1984)»

    É um erro bastante comum. Talvez porque um o tenha escrito, mas o outro é que o tenha tornado conhecido. Sei lá. Mas é de Niemöller, disso tenho a certeza.

    O original de uma das versões mais conhecidas do poema que circulou nos anos 50:

    Als die Nazis die Kommunisten holten,
    habe ich geschwiegen;
    ich war ja kein Kommunist.

    Als sie die Sozialdemokraten einsperrten,
    habe ich geschwiegen;
    ich war ja kein Sozialdemokrat.

    Als sie die Gewerkschafter holten,
    habe ich nicht protestiert;
    ich war ja kein Gewerkschafter.

    Als sie die Juden holten,
    habe ich nicht protestiert;
    ich war ja kein Jude.

    Als sie mich holten,
    gab es keinen mehr, der protestieren konnte.

    Primeiro os Comunistas, depois os Sociais-Democratas, depois os Sindicalistas, depois os Judeus, e por fim eu.

    A wikipedia espanhola tem esta parte interessante sobre versões anteriores, mas menos conhecidas:

    «Niemöller creó varias versiones del texto. Los primeros discursos, escritos en 1946, enumeran a los comunistas, a los pacientes incurables, a los judíos o a los testigos de Jehová, y a los civiles en los países ocupados por la Alemania nazi. En la primera versión documentada (1955), y en otras posteriores, nombra también a los católicos.​ En todas las versiones, el impacto se construye cuidadosamente, pasando del grupo “más pequeño, más lejano” al grupo más grande, judío, y luego finalmente a sí mismo. Niemöller se confesó en su discurso para la Iglesia Confesante en Fráncfort el 6 de enero de 1946»

    PS: relembrando uma conversa de outro dia, cá está mais um exemplo de que todos mentimos mesmo sem sermos mentirosos. Basta não se saber a verdade. Basta o diz que disse. E quantos por aí é que não repetem isto e dão a autoria a Brecht? É mentira. E quem mente, mente sem o saber. E quem aponta o dedo, não está a insultar ninguém, está simplesmente a repor a verdade.

  2. Bem vindos à Silly Season, uma autêntica paródia etnológica (o roto ao nu interminável de escatologias, nu e cru, poder d(a)emente).

  3. Texto corajoso, de aguda lucidez. Obrigatório, porque urge acordar da teia que leva ao servilismo aos senhores do mundo. Os falsos pudores de uma moral hipócrita e castradora dos valores do iluminismo e do humanismo que fizeram da Europa o centro do Mundo, não podem prevalecer, sob pena de cairmos numa era de escuridão e sofrimento.
    Julgo que, no 4º §, contado a partir do último, na frase “O ato da parelha sueca passa de forma sublimar a mensagem de que no novo Ocidente o dinheiro serve para destruir bens comuns, e não para promover a justiça e a liberdade.”, o autor pretendia dizer subliminar, em vez de sublimar.

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