O Primeiro Direito do Ser humano: Ser

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 21/11/2022)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro 1948, há quase 75 anos e no ambiente do pós-Segunda Guerra, da derrota do nazismo e do fascismo. O seu primeiro Artigo refere: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

A Declaração qualifica sempre aqueles a quem se dirige como seres. Seres humanos, no caso.

Esta designação é central e definidora do que se trata e do que se defende: Um ser!

Os autores da Declaração partiram do princípio — que lhes parecia evidente — de que os seus semelhantes espalhados pelo planeta se reconheciam como «seres», pelo que tomaram como uma estultícia, uma redundância e até uma ofensa à dignidade de cada um declarar que os humanos são, antes de tudo, seres.

A atualidade desmente esse pressuposto dos autores e dos subscritores da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Shakespeare, um dos génios da humanidade, conhecia a história dos humanos desde a antiguidade e da violência em que ela assentava. Ele conhecia e retratou a perversidade dos humanos, homens e mulheres, Hamlet e Lady Macbeth. Não acreditava na alma, nem na criação de seres humanos à imagem de um qualquer Deus. Ele duvidava que o ser humano tivesse, sequer, consciência de si. A célebre frase de Hamlet — to be or not to be — ser, ou não ser, coloca a questão de os humanos serem apenas seres vivos como os outros, sem consciência da sua singularidade, sem qualquer ligação a um passado com origem no divino, vindos do nada nas mãos de um Criador. As ações sanguinárias relatadas nas suas tragédias, as traições (Júlio César), os crimes, levaram Shakespeare a formular a dúvida sobre o ser humano ter direito a sê-lo.

Isto é, o primeiro direito dos seres humanos é serem-no, independentemente de deuses, de criadores, de tábuas de lei, de mandamentos, de livros sagrados, de milagres, de aparições, de visões. De serem sem serem obrigados a serem sujeitos a agradecer a vida, isto é a serem seres, sem serem constrangidos a cumprir rituais de falar com espíritos, a cumprirem interditos quanto à comida, quanto ao vestir, quanto aos dias de trabalho ou de descanso.

O primeiro direito dos humanos é serem eles próprios.

As criticas à realização do Campeonato Mundial de Futebol no estado islâmico do Catar, porque nesse estado reina a lei (a sharia) que impõe a crença num Deus que determina que os seres humanos se agachem 5 vezes (julgo que são 5) voltados numa direção precisa (Meca) para glorificaram uma entidade que lhes define a dieta alimentar, nada de carne de porco, nem de bebidas alcoólicas, que impede as mulheres de fazerem a sua vida como seres, que determina a moda com que se vestem, que lhes tapa os cabelos, as pernas, os braços, cujos adoradores têm de matar quem não acredita nestas verdades absolutas — hereges e infiéis sem direitos, nem o da vida. Que condena mulheres à morte por apedrejamento e os homens à forca ou terem os membros decepados.

A critica que seres com a consciência de serem apenas seres e não desejarem ser criaturas de alguém fazem a esta civilização que nega a dignidade aos seres humanos tem sido contestada por alguns adeptos dos «não seres», dos que se entendem criados e sujeitos, com o argumento que a ausência de direitos no Catar é idêntica à ausência de direitos noutros estados onde se realizaram eventos idênticos, os dois casos sempre referidos são os da Rússia e os da China. Essa argumentação é falaciosa e não passa de uma vulgar manipulação por descontextualização.

Trata-se de uma falácia que assenta na comparação do que é na essência de natureza distinta. No Catar, trata-se da negação de direito a um ser humano ser um ser. Todos os humanos no Catar e nos estados islâmicos são escravos, pertencem a um dono — o Alá — que os criou e lhes ordena os gestos mais comezinhos, incluindo a limpeza das partes baixas após as cumpridas as necessidades fisiológicas. Um camelo é mais «ser» nos países islâmicos do que um homem ou, mais degradante ainda, uma mulher, isto porque o camelo pode comer o que quer, pode andar acompanhado da sua fêmea, não é obrigado a cobrir-se até aos pés, nem a rezar.

Noutros estados, na Rússia e na China, mas também na Índia, ou na Guiné Equatorial, na Nicarágua, nas favelas do Rio de Janeiro, nos bairrios da cidade do México existe separação entre a lei de um Deus e a lei dos homens.

O argumento falacioso da equiparação de uma regime regido pelo ódio de um Deus aos que não o adoram e os regimes que se fundam na lei dos homens (por muito restritiva de direitos que seja) corresponde a equiparar o governo de Portugal nos séculos (XVI a XVIII) em que que a Inquisição governou o país e o Estado Novo. Trata-se de dois regimes essencialmente distintos, por mais repressivo que o Estado Novo tenha sido. Os hereges — judeus, descrentes, relapsos, feiticeiros — eram queimados na fogueira por ofenderem Deus não jejuando nos dias recomendados, não baterem com a mão no peito, não conhecerem a hierarquia da Trindade Divina — os opositores ao Estado Novo eram presos por se organizarem em partidos políticos, em sindicatos, por apontarem defeitos ao chefe do regime, por quererem participar das decisões sobre o seu presente e futuro. A Inquisição não é comparável ao Estado Novo.

É quanto ao direito à palavra que também alguns comparam os regimes islâmicos a regimes de limitação de liberdade de expressão. E aqui surgem novas contradições entre os que associam a liberdade de expressão à democracia. Nos países islâmicos a expressão pública é apenas a da oração e a da adoração. Nos países laicos a expressão pode ser medida. E uma das formas de medir a liberdade de expressão (a qualidade da democracia — o governo do povo), a mais séria, é avaliar o impacto dela, da expressão dos cidadãos nos assuntos decisivos da sociedade.

Que impacto tem, numa dada sociedade a opinião dos cidadãos na decisão de lançar o país numa intervenção armada? Ou no valor da moeda? Ou na organização dos sistemas de saúde e previdência social? Ou na segurança no espaço público? Ou na percentagem das despesas dos orçamentos nacionais? Ou nos direitos das minorias? Os índios dos Estados Unidos têm mais acesso ao poder de decisão que os igures da China? E os ciganos da Hungria têm mais voz que os rohingya da Birmânia?

Que consideração merecem os seres numa dada sociedade apenas por o serem? Que consideração merecem os seres que vivem nas favelas do Rio de Janeiro ou nos subúrbios de São Paulo, ou da cidade do México, ou em Medlin, na Colômbia, ou nos bairros de caniço de Luanda, ou de Leopoldeville, ou no Soweto, estados formalmente democráticos e nunca referidos como autoritários. De qualquer modo merecem mais consideração do que um saudita, um catari, um iraniano, um afegão, mas talvez menos do que um moscovita, ou um chinês.

Serem tomados como seres, como alguém que após a revolução francesa na Europa continental passou a ser designado por “cidadão”, esse é o primeiro direito dos seres humanos e é esse primeiro e absoluto direito que está a ser negado nas sociedades teocráticas islâmicas e essa negação é distinta da graduação do respeito pelo vontade política de seres que não são condenados à partida a acreditar que são criaturas de outrem, que não são fiéis e não subordinam todos os seus atos a um “se Deus quiser”, que não tenham de fazer uma vénia e proferir Inshallah!

Já agora e como apontamento final, nos países anglo-saxónicos o conceito de cidadão, o ser com direitos de cidadania é geralmente substituído pelo de sujeito, de súbdito, o que não abona a convicção da superioridade dos seus regimes sobre os outros.


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Um pensamento sobre “O Primeiro Direito do Ser humano: Ser

  1. Estão a tocar num grande problema. A omnipotência do estado de direito, que sob o pretexto de fazer lei, diz tudo. A necessidade é a lei, como diz o ditado, e no caso é esse o problema.

    Individual e colectivamente, merecemos o que nos acontece porque preferimos a servidão e a sua baixeza à liberdade e aos seus perigos.

    E acima de tudo, tudo se torna incerto, dependendo do julgamento pessoal de X ou Y! E no entanto, a própria essência do Estado de direito ..

    O Estado de direito já não existe Portugal há muito tempo. Os cidadãos já não ousam comprometer-se com nada porque mesmo o Estado não cumpre a sua palavra.
    As decisões são anuladas, os compromissos são diluídos, os números são manipulados, os decretos não são aplicados, as instituições não são respeitadas, as regras são mal utilizadas.
    Quando tudo isto não é suficiente, os tribunais intervêm no final do processo para modificar a jurisprudência ou tomar decisões com geometria variável. E aqui vamos nós outra vez!

    Não sei se pensamos pouco e mal. Prefiro dizer que pensamos depressa, demasiado superficialmente. No final, os nossos pensamentos são como as nossas vidas: superficiais, rápidas, descartáveis, …

    “Quando um problema é colocado, não vale a pena tentar resolvê-lo com os mecanismos que o põem em prática” disse Albert Einstein

    O egoísmo não terá lugar a muito curto prazo, porque a rua será alimentada pelos desempregados que virão. Pelo menos uma justiça nesta catástrofe, o futuro não contaminado não será capaz de se proteger com fortuna ou poder ou ordem estatal…! Estamos num sistema em que responde aos desejos de cada pessoa que está inconsciente, enquanto o inconsciente não for tornado consciente, estamos condenados ao fracasso, à violência e ao terror, porque os desejos só trazem sofrimento, se o homem não compreender isso, terá de repensar qualquer sistema, não resolverá nada à violência, não mais estado, a violência existe, menos estado “Brasil”, a violência existe, comunista, capitalista, o problema é o Homem no seu interior forte, ele é um animal e enquanto não elevar a sua inconsciência consciente, o homem estará perdido.

    Os homens estão enganados por acreditarem que são livres, e esta opinião consiste apenas em que estão conscientes das suas acções, e ignoram as causas que os determinam”.
    Baruch Spinoza

    Todos sabemos que existe um conluio entre a oligarquia financeira, o “poder” e grandes grupos (na sua maioria filhos de burgueses)!
    Mantendo a própria mente direita, alerta, nada é grátis, cada acto tem consequências que são sempre pagas em dinheiro no início ou à medida que o fim da vida se aproxima.
    A história é o espelho.

    Como nesta citação de Platão: “Ninguém é mais odiado do que aquele que diz a verdade”. Algumas pessoas preferem viver na ignorância. … As pessoas que preferem viver numa mentira têm medo de enfrentar a verdade e não são capazes de lidar com uma situação difícil.

    Sim, tudo está a ser feito pelos capangas da POWER, sejam eles quem forem, para destruir a nossa potencial capacidade de

    PENSAMOS por nós próprios.

    Ao servir-nos o pensamento pronto do mundo materialista do comércio, somos servidos a pensar pronto, como comida pronta, e não desenvolvemos a nossa capacidade de pensar por nós próprios, nem a nossa capacidade de cultivar alguns vegetais para fazer sopa.

    Há muito tempo que me sinto sozinho a pensar como vós, mas agora estou tranquilo.
    Infelizmente a batalha é desigual, como de costume os manipuladores vencerão, já há demasiadas ovelhas sem cérebro que recusam os disparos de reforço.
    Já é tempo de o planeta se livrar da raça humana e recomeçar numa caverna!

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