Do perigo de pensar e de ler os tempos

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 121/11/2022)


Julgo que nós, os humanos, temos a convicção de que nos distinguimos das outras espécies e principalmente dos outros semelhantes porque pensamos. Não sei se essa convicção resiste a um pensamento mais frio. Pensamos individualmente, mas esse pensamento, que nos dota de individualidade, é fruto da necessidade de tratarmos da nossa vida, de sobrevivermos e está então mais próximo dos instintos básicos do que da racionalidade.

Contudo, desde muito cedo somos induzidos pelos que nos cercam a acreditar sem pensar, a acreditar que temos de pensar coletivamente porque nos unem referências e projetos de vida comum e a coesão da sociedade é essencial para a sua sobrevivência em competição com as outras. A convicção de que é natural numa dada sociedade todos partilharem no essencial dos mesmos pensamentos tem expressão em slogans muito difundidos, «a união faz a força», «e pluribus unum» (entre muitos, um), ou dos mosqueteiros: um por todos, todos por um e até o Deus, Pátria e Família.

No entanto, quando ouvimos líderes de grandes nações, personagens do tipo de Trump, ou de Bolsonaro, de certos bispos católicos, ou pregadores evangelistas, aytollahs e rabinos, de certos oligarcas como Elon Musk parece ser legítima a dúvida sobre a existência de um pensamento entre os humanos. Essas personagens comportam-se de acordo com um código próprio de outra espécie, das que se atiram a tudo o que brilha — caso dos espadartes — e a tudo o que mexe no seu raio de ação — caso dos toiros.

A existência dessas personagens e da multidão de fiéis e crentes que os seguem e se identificam com eles justifica que, enquanto céticos, nos interroguemos se será natural existir um pensamento coletivo em sociedades de estruturas complexas, hierarquizadas, social e politicamente desiguais. Ou será o pensamento coletivo uma construção artificial para facilitar o domínio de um ou de uns grupos sobre a sociedade, destinado a fazer parecer natural o que é uma ideologia de sujeição?

Camões, em “Os Lusíadas”, defende a existência de um pensamento identitário que unia toda a sociedade portuguesa dos séculos XV e XVI. Identifica os portugueses com um povo antigo, os Lusitanos, com uma civilização assente na pertença à mesma religião, o cristianismo, e a um espaço, o Ocidente: “Os Portugueses somos do Ocidente, imos buscando as terras do Oriente”. Existiria assim um pensamento comum aos portugueses que levaria cada um deles a sentir-se protagonista de uma epopeia, mas no “Auto da Índia” a epopeia de Camões é transformada numa farsa por Gil Vicente: Fomos ao rio de Meca, pelejámos e roubámos e muito risco passámos. O conflito entre o pensamento coletivo e o pensamento individual é comprovado com a fuga ao recrutamento obrigatório para as naus e às críticas dos regressados das campanhas na Ásia, às atividades de comércio de rapina e da guerra, com o enriquecimento dos nobres e das ordens religiosas à custa do sacrifício da maioria dos que embarcaram. Mas esse conflito ficou submerso pelo pensamento dominante, da epopeia coletiva!

Invocar o pensamento coletivo é um embuste recorrente dos poderosos ao longo da História, e revela-se com clareza que quando soberanos e sacerdotes, chefes de gangue e banqueiros enchem a boca falando de povo, se estão, de facto, a acolher debaixo desse grande barrete para levarem o povo a sacrificar-se por eles. O recurso ao pensamento coletivo, à missão coletiva, o apelo ao regionalismo, ao nacionalismo, ao heroísmo, ao clubismo, a invocação do desígnio que une ricos e pobres, homens e mulheres, a referência a um “povo eleito”, a uma “elite” militar e social são atos de demagogia e de racismo, na medida em que apelam à superioridade de casta. Utilizam os mesmos estímulos que servem para treinar os mastins de luta, os galos e os bois para combaterem entre si sendo iguais e não tendo qualquer motivo para o fazer.

Na atual prática da invocação da necessidade de um pensamento coletivo como defesa da ordem (a proclamação propagandística é a da defesa da liberdade e do “nosso modo de vida”) apenas existe a novidade da tecnologia disponível, que tem elevado a demagogia a patamares de manipulação do pensamento a inauditos níveis de intensidade. A ideologia que ainda há poucos anos era ´fornecida aos dias santos de cada religião nas suas celebrações rituais, para audiências restritas, está hoje à mercê de poderosos meios tecnológicos que permitem a difusão planetária quase instantânea de mensagens cientificamente construídas e orientadas. As ciências da biologia e dos comportamentos (individuais e coletivos) fornecem armas subtis e perversas de domínio do pensamento e por isso os poderosos se interessam tanto pelas indústrias das tecnologias da informação, da inteligência artificial, da química farmacêutica, dos satélites que permitem determinar os comportamentos.

Existe um pensamento humano? A resposta aos problemas que nos colocam a natureza e os nossos semelhantes justifica, ou permite que nos arroguemos o direito de afirmar que pensamos como seres de uma espécie? Pensamos verdadeiramente? Pensamos como um todo, como pensa um formigueiro, uma colmeia, uma matilha, um bando de aves? Pensamos em sobreviver enquanto espécie? O modo como os condutores de táxi de Nova Iorque, ou de Londres pensam o mundo tem alguma comparação com o modo como os camponeses da Somália, ou da Índia o pensam? Os banqueiros que dominam as bolsas de valores nas grandes capitais pensam o mundo como os caixas de supermercado, os barbeiros, os mecânicos, os camponeses, os pescadores, os pastores, os motoristas, os enfermeiros o pensam? O pensamento de um sem-abrigo que procura um lugar num vão de escada tem a mesma natureza do de um turista com um hotel à disposição? Um migrante subsariano que tenta passar uma fronteira a salto pensa no mesmo que um professor universitário em Berlim? A família real inglesa pensa sobre a ementa das refeições como uma mulher-a-dias filipina a quem estão destinadas as sobras dos patrões? O pensamento de um camponês africano que vê a terra seca e improdutiva é o mesmo de um cliente de hambúrgueres na Florida? O pensamento dos luzidios dirigentes dos vários grupos de dirigentes, do G-20, do G-7, do Clube de Bildberg é o mesmo dos chefes dos talibans, dos madeireiros da Amazónia, dos monges do Tibete?

O pensamento nasce e desenvolve-se como consequência de uma inquietação, de uma necessidade, de uma aspiração, de um sentimento, mas cada um de nós, individualmente e enquanto membro de uma sociedade, utiliza a palavra “pensamento” para designar fenómenos muito distintos, o transcendente e o modo de resolver problemas da nossa existência, um pensamento-ontológico e outro prático. A filosofia, entendida como a busca da sabedoria, resulta da procura de soluções para problemas práticos. Os primeiros que as encontraram foram os inventores dos criadores do universo e das religiões, que estabelecem hierarquias e deveres de obediência aos outros indivíduos, resolvendo os seus problemas de sobrevivência. Para a maioria dos seres humanos, tenham eles consciência do dilema, pensar é, em resumo, decidir ajoelhar-se perante o Criador (ou os seus agentes) ou enfrentá-lo e não lhe reconhecer a autoridade, nem a utilidade.

A ingénua frase de Descartes, penso logo existo, apesar das loas que há séculos lhe são tecidas é um embuste. Ela foi sempre negada pelos mais poderosos em cada nação, que condenaram e condenam os seres humanos que se arriscaram e arriscam a questionar a ordem imposta por eles. A frase deveria ser: «Penso, logo tenho a existência em perigo». Os exemplos são muitos, Sócrates, os cátaros, Giordano Bruno, John Hus, Galileu e tantos outros.

Os tempos de hoje continuam a ser de ameaça ao ato de pensar e ao ato de agir em conformidade. E a ameaça ao ato de pensar não se restringe a sociedades ditas suubdesenvolvidas, ou a regimes totalitários política e religiosamente. A ameaça está dentro da nossa casa comum de liberdades.

Vivemos no Ocidente tempos de censores, de impostores e de impositores de pensamento único. Pensar voltou a ser um perigo também na Europa e nas Américas, tanto ou quase quanto em África ou na Ásia, uma ameaça à ordem, uma heresia mesmo nas sociedades com regimes ditos democráticos. A atitude mais benigna da nova censura surge nas empresas que gerem as grandes redes sociais: “o seu pensar ofende os padrões da nossa comunidade”. É o início: censura.

Perante a amplitude e o vigor dos movimentos fundamentalistas que incluem o ocidental «Metoo», e os arábicos talibans, os neonazis e os evangelistas, hoje o simples ato de pensar implica correr perigo. Aos que pensam, os bem mandados, começam por atribuir um labéu: comunista foi o mais comum durante os anos da guerra fria, atualmente é o de putinista. Já foram hereges, protestantes, judeus, terroristas, livres-pensadores. Devidamente catalogados, passam à categoria de condenados e perseguidos. Nada de novo. Assim saibamos ler os tempos.


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9 pensamentos sobre “Do perigo de pensar e de ler os tempos

  1. Texto muito lúcido e inteligente e, já agora, um excelente exercício de pensamento, pois de facto, apesar de tudo, temos de continuar a tentar pensar!

  2. Reflexões que nos interpelam e devem incomodar. Para completar o texto sugiro a leitura do livro “Tirania do Mérito – O que Aconteceu ao Bem Comum?”, do filósofo Michael J. Sandel, da editorial Presença, de Abril de 2022. É, creio, uma séria ajuda a estas questões do autor Carlos Matos Gomes.

  3. Neste texto apenas observo a historia..

    Estamos num país onde a democracia está acabada!

    Vivemos um declínio socioeconómico que está a começar … O simbólico, o sócio-cultural são apenas espelhos.
    Vivemos num Ocidente de emoções e Ilusões em vez de termos uma visão fundamentada e a longo prazo…

    Bem, não, já não somos livres, depois do covid e da guerra na Ucrânia que não nos diz respeito de todo, vemos que as nossas liberdades são questionadas todos os dias por decisões políticas que são tomadas de propósito para justificar a implementação destas restrições de liberdade, por isso o nosso sistema é apenas teórico, mudámos para a utopia da democracia, por isso quebra a face, e todos os discursos estão ao serviço do poder para nos distrair, e lembro-vos que a maior parte da dívida dos ocidentais é detida pela China.

    O que estamos assistir não é uma mudança no modelo de sociedade. É que atingimos o limite existencial de um sistema económico que foi posto em prática em 1971, com o fim da norma de ouro.
    Um “novo” sistema de crenças e o ressurgimento do obscurantismo..
    Encontramo-nos num declínio político liberal globalizado.
    É pena que possamos sentir o declínio dos ocidentais, com o seu colonialismo.
    Cada civilização chega ao fim…

    Porque é que as pessoas regressam às coisas do passado? Porque já não têm qualquer esperança no que o futuro lhes reserva e no que o seu país, o seu mundo, lhes dá.

    O modelo ocidental tornou-se esquizofrénico

    A questão que temos de colocar e concordar é quais são os nossos valores embutidos?
    Fazer uma escolha entre um modernismo louco ou um regresso aos valores tradicionais.
    Escolher o modernismo que estamos a ser vendidos irá desumanizar-nos (metavers, hibridização do homem ou da mulher ….) sobre isto as regras não foram ditadas, por isso é tudo um disparate.

    Estamos a viver uma mudança como a que aconteceu no início de 1900 com o comunismo.
    As sociedades ocidentais estão a seguir o pensamento único a alta velocidade.
    Desumanização (grupo)
    Mundo Inverso….

    A nossa ilusão é acreditar que estamos no clã da liberdade e da democracia. Os nossos ídolos são os futebolistas e os representantes dos meios de comunicação social. Impusemos um mundo unipolar e matámos para o bem da humanidade. Os senhores de outrora deram lugar a especuladores modernos que se empanturram em nome do povo.

    A China é um exemplo perfeito disto, algumas áreas estão totalmente sob controlo liberal sujeitas ao movimento comunista e outras áreas comunistas sujeitas ao totalitarismo da sua população.
    A democracia e a liberdade são assustadoras porque a maioria das pessoas, especialmente no Sul da Europa, precisa de responsabilidade individual e objectividade para que o modelo funcione.

    Para impor valores, é preciso aplicá-los, e a crise anterior mostrou que não é esse o caso.

    Há muito tempo que a democracia não tem estado apenas no nome….

    A democracia é a separação de poderes. Quando todos os poderes estão nas mãos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, já não é uma democracia, e vimos que em Portugal é este o caso, há conluio entre os três poderes + o quarto poder que é a imprensa.
    Quando dizemos que a ditadura se instalou em Portugal, é-nos dito que “isto não é a Coreia do Norte”.

    Os seres humanos raramente escolhem a liberdade, veja-se o que aconteceu nos últimos três anos. Eles escolhem a segurança e estão dispostos a sofrer horrores por uma ideia distorcida de segurança.

    Os problemas são auto-infligidos e organizados voluntariamente. Os nossos sistemas políticos não são absolutamente democracias, não basta fingir ser uma democracia para ser uma.
    Uma democracia é um regime político em que os cidadãos têm poder político, nomeámos representantes que só nós temos poder político, estamos portanto numa oligarquia electiva (oligarquia = poder político de um pequeno número de eleitos)!

    Uma oligarquia é um poder político monopolizado por industriais ou homens de negócios ricos.

    A este nível existem vários problemas: falta de cultura política, o que a torna susceptível à manipulação dos meios de comunicação social, confusão entre democracia e república, decorrente da cultura incompreendida do direito constitucional.
    E não, o modelo americano não é modelado no modelo europeu. As origens ideológicas são as mesmas, mas a base da democracia é diferente.

    No que diz respeito à liberdade, a manipulação mental das massas fez com que, embora já não tenhamos qualquer liberdade, sucessivos governos nos fazem acreditar nela. Na realidade, mesmo em casa, o que se possui é condicionado pela publicidade.
    Já não há liberdade de pensamento, uma vez que tem sido condicionada desde a infância pelo sistema de educação nacional.

  4. Caro comentador em relação à célebre frase do Descarte que o meu amigo comenta acima eu propunha para ficarmos todos esclarecidos a seguinte forma:- PENSO LOGO EXÍLIO

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