Nós que vimos morrer o André

(Manuel Gouveia, in AbrilAbril, 22/07/2022)

Este texto é sobre um piloto que morreu. Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber.


Na música onde Zeca Afonso homenageia Catarina Eufémia pode-se escutar que «quem viu morrer Catarina não perdoa a quem matou». Como é evidente, não se refere o poeta apenas àqueles camaradas de Catarina que no dia 19 de Maio de 1954 estavam ao seu lado, em luta, e literalmente a viram cair varadas pelas balas da ditadura fascista de Salazar. É a nós todos que se nos dirige. Todos nós temos a obrigação de ter visto morrer Catarina. E de não perdoar a quem a matou: o fascismo português.

Mas este texto não é sobre Catarina Eufémia. É sobre um piloto português que morreu a combater os incêndios que se abatem sobre o nosso país. Cuja morte foi transmitida e retransmitida até à náusea por uma comunicação social nauseabunda. Que serviu de distracção nas tascas, nos cafés e nos sofás de milhares de casas.

Não se faz isto à família de ninguém, e muito menos à família de um herói. Ou não se devia fazer. Porque se faz, todos os dias. E não se pode fazer. Por tudo, e porque nas televisões transformadas em cloacas o mundo é um espectáculo de desastres sem contexto, antecâmara das explicações fáceis e demagógicas, que nada explicam, tudo escondem e todos manipulam.

E este acidente tem contexto. Desde logo, todas as negociatas em torno do ataque aéreo a incêndios. Em vez de uma entidade pública, com equipamento próprio, profissionais dedicados e bem remunerados, temos um estendal de negócios escandalosos, promessas, parcerias público-privadas, subcontratações, onde se fizeram e fazem fortunas, mas se continua sem construir a resposta possível e necessária para um eficaz combate aéreo aos fogos. É o modelo capitalista e neoliberal, que faz ricos e ricos mais ricos, mas também aumenta o risco para os operacionais.

Sem esquecer um outro processo, que levou um capitão da Força Aérea a desta sair para poder entrar para a TAP, logo por azar nas vésperas de uma pandemia, e para mais azar ainda, nas vésperas de uma reestruturação que levou ao seu despedimento sem contemplações. «Razões ponderosas e legítimas correlacionadas com o contexto pandémico» chamou-lhe a TAP. Chamem-lhe agora também flexibilidade laboral, a mesma que tantos apregoam para outros sofrerem na pele. Isso e a mais completa insensibilidade social. É que azares acontecem, mas com a flexibilização das relações laborais os azares esmagam quem trabalha e exoneram os exploradores.

Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber. E alterar.

Chamava-se André, e é um herói que morreu a combater os incêndios. Morreu num acidente, e os acidentes acontecem. Ao contrário de Catarina, ninguém carregou num gatilho. Mas tal como a morte de Catarina não foi mera responsabilidade de um qualquer Carrajola, mas do fascismo português, também a morte de André nos deve alertar para os custos reais do neoliberalismo vigente.

E nós que vimos morrer o André não o podemos esquecer.


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2 pensamentos sobre “Nós que vimos morrer o André

  1. A estória dos oficiais piloto aviador que se formam e fazem cv na força aérea à conta do erário publico para darem o salto para o privado logo que podem ( e podem depressa…) mereceria uma reflexão. Mas não é este o contexto, obviamente.
    Falemos então dos médicos formados nas universidades públicas com propinas a preços de promoção, estágios e especializações garantidos e remunerados, emprego assegurado, que também dão o salto para o privado assim tenham o cv recheado qb. Também deviamos falar disto, quero dizer, destas coisas da ética republicana . Não ?

  2. Os “Governadores” da Ocidental Praia Lusitana ,apenas executam as Ordens vindas da Capital do “Império” Bruxelas e não respeitam os anseios e interessses do Povo que aqui vive e sofre ……ver os Homens e Mulheres ,do Pais de Marinheiros ser “Governado” pela central Europa ,cujo abandono está inscrito nos seus rostos tisnados pelo sofrimento em que as TVs “arruaceiras” mostram até ad nauseam um “Pais” de costas voltadas do Eixo ,Lxa ,Foz ,Cascais e o resto dum Pais que já não é Rural,mas no seu abandono e solidão ,apenas serve de cartaz a u “Turismo Folcolorico” ,em que o desPovo(amento) é marca de um Interior em que os fogos são um grito de alerta desse desastre anunciado e não duma Politica integrada dos Territórios e as pessoas que resistem e que embora poucos são os “Cuidadores” daquilo que resta dum País que resiste………

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