Para resolver a crise na Ucrânia, comecem pelo fim

(Henry Kissinger, in Washington Post, 05/03/2014, trad. Resistir)

(Publicamos este artigo de Henry Kissinger, Secretário de Estado dos EUA, e durante décadas proeminente figura da diplomacia americana. Lamentavelmente, nenhum dos conselhos dele está a ser seguido hoje na gestão da crise ucraniana. Em vez de apelar ao diálogo e à resolução pacífica do conflito o Ocidente lança achas para a fogueira, exige aos seus povos sacrifícios e incita a Ucrânia a imolar-se numa guerra perdida à partida em que os vendedores de armamento dos EUA e da UE esfregam as mãos de contentes pois serão os únicos vencedores. Se acaso ainda cá ficar alguém para contar a história…

Estátua de Sal, 28/02/2022)


A discussão pública sobre a Ucrânia tem tudo a ver com confronto. Mas sabemos para onde vamos? Na minha vida, vi quatro guerras começarem com grande entusiasmo e apoio público, mas em todas elas não sabíamos como iam terminar e em três delas retirámo-nos unilateralmente. O teste da política é como elas terminam, não como começam.

Com demasiada frequência, a questão ucraniana é apresentada como um confronto: se a Ucrânia se junta ao Leste ou ao Ocidente. Mas para que a Ucrânia sobreviva e prospere, não deve ser o posto avançado de nenhum dos lados contra o outro – deve funcionar como uma ponte entre eles.

A Rússia deve aceitar que tentar forçar a Ucrânia a um estatuto de satélite e, assim, mover as fronteiras da Rússia novamente, condenaria Moscovo a repetir a sua história de ciclos auto-realizáveis ​​de pressões recíprocas com a Europa e os Estados Unidos.

O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro. A história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus. A religião russa espalhou-se a partir daí. A Ucrânia faz parte da Rússia há séculos, e as suas histórias estavam entrelaçadas antes disso. Algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando com a Batalha de Poltava em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro – o meio da Rússia de projetar poder no Mediterrâneo – é baseada no arrendamento a longo prazo de Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos como Aleksandr Solzhenitsyn e Joseph Brodsky insistiam que a Ucrânia era parte integrante da história russa e, de facto, da Rússia.

A União Europeia deve reconhecer que a sua lentidão burocrática e a subordinação do elemento estratégico à política interna na negociação da relação da Ucrânia com a Europa contribuíram para transformar uma negociação em crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades.

Os ucranianos são o elemento decisivo. Eles vivem num país com uma história complexa e uma composição poliglota. A parte ocidental foi incorporada na União Soviética em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os despojos. A Crimeia, cuja população é 60% russa, tornou-se parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Khrushchev, ucraniano de nascimento, a concedeu como parte da celebração dos 300 anos de um acordo russo com os cossacos. O oeste é em grande parte católico; o leste em grande parte ortodoxo russo. O oeste fala ucraniano; o leste fala principalmente russo. Qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra – como tem sido o padrão – levaria eventualmente à guerra civil ou ao rompimento. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto Leste-Oeste arruinaria por décadas qualquer perspectiva de trazer a Rússia e o Ocidente – especialmente Rússia e Europa – para um sistema de cooperação internacional.

A Ucrânia é independente há apenas 23 anos; anteriormente estava sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século XIV. Não surpreendentemente, os seus líderes não aprenderam a arte do compromisso, muito menos a perspectiva histórica. A política da Ucrânia pós-independência demonstra claramente que a raiz do problema está nos esforços dos políticos ucranianos para impor sua vontade às partes recalcitrantes do país, primeiro por uma facção, depois pela outra. Essa é a essência do conflito entre Viktor Yanukovych e sua principal rival política, Yulia Tymoshenko. Eles representam as duas alas da Ucrânia e não estão dispostos a dividir o poder. Uma política sábia dos EUA em relação à Ucrânia buscaria uma maneira de as duas partes do país cooperarem entre si. Devemos buscar a reconciliação, não a dominação de uma facção.

A Rússia e o Ocidente, e muito menos as várias facções na Ucrânia, não agiram de acordo com esse princípio. Cada um piorou a situação. A Rússia não conseguiria impor uma solução militar sem se isolar num momento em que muitas das suas fronteiras já são precárias. Para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é um álibi para a ausência de uma política.

Putin deve perceber que, quaisquer que sejam as suas queixas, uma política de imposições militares produziria outra Guerra Fria. De sua parte, os Estados Unidos precisam evitar tratar a Rússia como uma aberração ao ser pacientemente ensinada sobre as regras de conduta estabelecidas por Washington. Putin é um estratega sério – nas premissas da história russa. Compreender os valores e a psicologia dos EUA não é o seu ponto forte. A compreensão da história e da psicologia russas também não foi um ponto forte dos formuladores das políticas dos EUA.

Líderes de todos os lados devem voltar a examinar os resultados, não competir em postura. Aqui está minha noção de um resultado compatível com os valores e interesses de segurança de todos os lados:

1. A Ucrânia deve ter o direito de escolher livremente suas associações económicas e políticas, inclusive com a Europa.

2. A Ucrânia não deve aderir à NATO, posição que assumi há sete anos, quando surgiu pela última vez.

3. A Ucrânia deve ser livre para criar qualquer governo compatível com a vontade expressa de seu povo. Os sábios líderes ucranianos optariam então por uma política de reconciliação entre as várias partes do seu país. Internacionalmente, devem seguir uma postura comparável à da Finlândia. Essa nação não deixa dúvidas sobre sua feroz independência e coopera com o Ocidente na maioria dos campos, mas evita cuidadosamente a hostilidade institucional em relação à Rússia.

4. É incompatível com as regras da ordem mundial existente a Rússia anexar a Crimeia. Mas deve ser possível colocar o relacionamento da Crimeia com a Ucrânia numa base menos tensa. Para esse fim, a Rússia reconheceria a soberania da Ucrânia sobre a Crimeia. A Ucrânia deve reforçar a autonomia da Crimeia nas eleições realizadas na presença de observadores internacionais. O processo incluiria a remoção de quaisquer ambiguidades sobre o estatuto da Frota do Mar Negro em Sebastopol.

Estes são princípios, não prescrições. As pessoas familiarizadas com a região saberão que nem todos serão palatáveis ​​para todas as partes. O teste não é a satisfação absoluta, mas a insatisfação equilibrada. Se alguma solução baseada nesses ou em elementos comparáveis ​​não for alcançada, a tendência para o confronto acelerará. A hora para isso chegará em breve.


Original aqui


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4 pensamentos sobre “Para resolver a crise na Ucrânia, comecem pelo fim

  1. Uma opinião respeitável de Kissinger, Mas uma péssima introdução do Estátua de Sal, que replica a cartilha simplista do ódio ao Ocidente, dando expressão a uma corrente de opinião intelectualmente desarmada, quando não objetivamente cúmplice, relativamente a regimes políticos ditatoriais como o de Putin.

  2. Pois. Mas o dinossaurico kissinger ainda é do tempo em que os eua podiam almejar «[…] trazer a Rússia e o Ocidente – especialmente Rússia e Europa – para um sistema de cooperação internacional.». Desde que o ocidente se apercebeu que uma «rússia capitalista implicava a existência de capitalistas russos» (*) mudou rapidamente para uma estratégia de “contenção”, isolamento e expulsão da europa, tentando transfomar a potência euro-asiática num mero potentado asiático.

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