A revolução puritana

(António Guerreiro, in Público, 11/11/2021)

António Guerreiro

Percorrendo a edição online de vários jornais estrangeiros, encontrei num único dia, na passada segunda-feira, estes títulos (cito, traduzindo-os):

1. “Na Bélgica, o movimento #balancetonbar ganha amplitude” (#balancetonbar é um hashtag que apela ao boicote dos bares onde mulheres foram violadas depois de terem ingerido drogas clandestinamente misturadas nas bebidas; este hashtag é o eco de um outro surgido há algum tempo em França que denunciava a “porcaria” dos homens: #balancetonporc).

2. “Os predadores da Academia. Quando o abuso do homem é de cátedra” (trata-se aqui das investidas sexuais dos professores, nas universidades italianas, aproveitando-se das prerrogativas hierárquicas do lugar que ocupam).

3. “Padres pedófilos. A Igreja francesa obrigada a vender os seus imóveis para ressarcir as vítimas”.

4. “Violências sexuais: oito mulheres acusam PPDA” (PPDA é Patrick Poivre d’Arvor, famoso ex-jornalista da TF1, que foi durante muito tempo o rosto do principal jornal televisivo desta estação estatal; as acusações já vêm de trás, mas agora algumas mulheres deram a cara, não ficaram escondidas no anonimato).

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Se Freud ressuscitasse, haveria de repetir, mas agora com dados empíricos, fornecidos diariamente pelos jornais e sem precisar de grandes incursões antropológicas na ordem simbólica que determina as leis do totem e do tabu, que “a sociedade repousa sobre um crime”. Ou melhor, sobre a violência e o abuso sexuais cometidos por quem, de algum modo, ocupa posições de poder. Evocando Freud, recordemos ainda que ele, entre 1895 e 1897, formulou uma “teoria da sedução”, com a qual tentava explicar a histeria — essa neurose então considerada tipicamente feminina — que tinha diagnosticado em algumas das suas doentes. Segundo essa teoria, a histeria seria o regresso traumático do episódio de sedução exercida efectivamente por um adulto sobre a criança. Dada a quantidade de histéricas que conheceu no seu consultório, Freud, com a sua teoria da sedução, lançava sobre a alta sociedade vienense do seu tempo, muito burguesa e muito puritana, uma suspeita terrível: a de que muitos adultos seduziam sexualmente, em família, as suas crianças. As famílias vienenses puderam suspirar de alívio quando Freud reviu a sua tese, submetendo-se à acusação de ceder ao pundonor social, e passou à teoria do fantasma: a neurose histérica não era originada por um abuso sexual real, efectivo, mas por um fantasma da sedução engendrado pela criança. O que antes era imputado aos adultos, passa a ser entendido por conta da fantasia infantil de um perverso polimorfo.

Olhemos de frente a grande revolução que está a acontecer diante de nós: práticas sexuais criminosas, exercidas não com um “parceiro”, mas sobre uma vítima, estão a ser denunciadas, umas atrás das outras, e os seus “actores” submetidos ao opróbrio público, o mais terrível do nosso tempo. Mas devemos também ter a lucidez de ver que há efeitos colaterais, uma consequência que não devia ser inevitável, um preço colectivo que não devia ser cobrado na mesma factura que os criminosos do sexo têm de pagar quando são denunciados e sentenciados.

E esse preço é o do neo-puritanismo higienista que, de resto, já não é possível discernir se é uma causa ou uma consequência. E quanto mais se quer extirpar e justamente penalizar a violência sexual, mais o sexo se torna uma obsessão maléfica, uma coisa porca que merece ser denunciada por um hashtag como este: #balancetonporc. Estamos a assistir a uma verdadeira pornificação da vida. Entre o #balancetonporc e a infame “liberdade de importunar”, reivindicada por 100 mulheres, com Catherine Deneuve à cabeça, num artigo publicado no jornal francês Le Monde, não parece haver espaço habitável.

A extensão do território do moralismo e do neo-puritanismo não pára de crescer e toda a “parte maldita” (em suma, a heterogeneidade do sexo, a sua irredutível negatividade) é denegada ou sublimada no legalismo moral. Podemos ainda hoje ler um livro como Madame Edwarda, de Georges Bataille, sem sentirmos não o abalo provocado por uma experiência dos limites, mas o pobre estremecimento da auto-censura que nos está a ser inoculada? Podemos hoje evocar as regras de Deleuze e Guattari — os autores do Anti-Édipo — para “uma vida não-fascista”, quando essas regras, outrora empunhadas como armas contra os micro-fascismos, são proscritas pela revolução conservadora em curso?



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Um pensamento sobre “A revolução puritana

  1. Eu costumo dizer que este é um artigo digno da Estatua de Sal. Superficial, confundindo temas, destilando um ódio doentio à direita e claro, espetando algures com a palavra “fascismo”. Será que ninguém vê o óbvio? Este senhor sofre de uma doença do foro mental, que é projetar todas as suas frustrações pessoais e todos os males do mundo nesse conceito abstrato que é a direita/conservadorismo/capitalismo. E depois como as frustrações continuam e abundam, vai produzindo textos intermináveis, que estes blogues servem como um “manjar dos deuses” aos seus correligionários!

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