Temos memória

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/07/2021)

O nascimento de qualquer democracia não exige apenas luta e coragem. Exige inteligência e até alguma capacidade de esquecer. Esta democracia teria soçobrado se andássemos à procura de todos os que colaboraram com o Estado Novo. Ela permitiu, como todos sabem, que muitos se convertessem à nova situação em 24 horas. E aceitou-os porque a paz é muitas vezes mais importante do que a justiça. Mas o que se espera é que, pelo menos, não se comportem com superioridade moral perante os construtores da democracia. E, acima de tudo, não passem o tempo a avivar a memória para os pecados dos outros enquanto fazem tudo para que os seus sejam esquecidos.

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Nunca quis, nem neste nem no debate sobre Marcelino da Mata, entrar nesta infantil troca de cromos, para saber se a esquerda cometeu mais crimes do que a direita. Tentei, num e noutro caso, olhar para as figuras com o distanciamento que o tempo já permite. E olhar para a disputa pela memória como uma disputa política do presente, que pouco ou nada tem a ver com a justiça. A história não julga, fixa o discurso dos vitoriosos do tempo em que foi escrita. Por isso está sempre a ser reescrita.

Mas não é preciso ter um estômago sensível para o sentir revirar ao ouvir José Miguel Júdice falar sobre Otelo Saraiva de Carvalho. Ouvi-lo agradecer a liberdade que nos deu, “ainda bem”, e criticar-lhe a deriva radical que desembocou nas FP25 é quase tão extraordinário como ouvi-lo falar de incoerência política em nome da sobrevivência e da visibilidade.

Não precisam de recorrer a qualquer literatura antifascista para saber o amor que Júdice tinha pela liberdade e como terá recebido o 25 de abril que, “ainda bem”, Otelo liderou. Basta este texto sobre a extrema-direita na Universidade de Coimbra, entre 1945 e 1974, escrito pelo insuspeito Riccardo Marchi (autor do panegirico ao Chega) para saberem de que lado da barricada esteve sempre José Miguel Júdice. Sim, algumas foram as vezes que se opôs ao regime… pela direita. Marchi prefere usar o termo “nacionalismo revolucionário”. Não há qualquer livro sobre a direita radical portuguesa antes do 25 de abril que não refira Júdice.

Isto não o impediu de insinuar cumplicidades de Otelo, militar de carreira, com o antigo regime. Seja vendendo aos jornalistas o discurso colonial, seja como graduado da Mocidade Portuguesa. E conseguiu fazer isto sem falar de si.

Depois do 25 de abril, Júdice terá de novo um papel relevante. Foi um dos fundadores do MDLP, criado por Spínola (sem que isso tenha impedido um dia de luto nacional por causa da morte do ex-presidente) e onde se juntaram muitos saudosistas do Estado Novo. Apesar de, numa entrevista a Maria João Avilez, garantir que nunca fez parte da direção do movimento, não é isso que dizem as fontes.

O MDLP foi responsável por vários atentados e a sua atividade prolonga-se para lá do 25 de novembro. Para além da destruição da sede do PCP em Braga e de muitos atentados, a rede de bombista de extrema-direita causou a morte a pelo menos dez inocentes. Entre elas o padre Max. Um julgamento no final dos anos 90 confirmou que a autoria deste assassinato foi do MDLP, apesar de não ter conseguido identificar os autores materiais. Quem quiser saber mais sobre a rede bombista pode ler o excelente livro do jornalista Miguel Carvalho, “Quando Portugal Ardeu”. Como aperitivo, fica aqui o vídeo de promoção. Pode Júdice dizer que o movimento foi infiltrado por gente mais violenta? Que as coisas se descontrolaram? Que não sabia? Que não tinha responsabilidades operacionais (o que é verdade)? Pode. Foi o que Otelo sempre disse.

Nada disto o impediu de referir o envolvimento de Otelo nas FP25 e a violações dos direitos humanos no período do PREC.

Júdice soube, ao contrário de Otelo, rescrever a sua própria história. Não o fez como Adriano Moreira ou Lucas Pires, que deram o seu contributo político para a construção da democracia. No seu caso, depois de uma passagem pouco relevante pela política do PSD, dedicou-se mais aos negócios e os oscilantes apoios políticos que foi dando dentro do centrão responderam a essa necessidade de ir estando bem com todos os que mandavam. E podemos vê-lo, na televisão, a falar do passado como se tivesse estado onde não esteve, defendido o que não defendeu, sido quem não foi.

Também isso não o impediu de falar da “incoerência” de Otelo.

Assisto, sempre com espanto, à capacidade de Júdice se ir reinventando. O antigo sócio de um dos escritórios que mais participação foi tendo em tudo o que são negócios entre o Estado e o setor privado até consegue aparecer, por vezes, como moralizador da coisa pública. Não ligo muito. Prefiro discutir ideias. Mas no momento em que se insulta a memória de um homem que está a ser enterrado e não se pode defender é preciso exigir o mínimo de pudor.

Júdice tem a sua biografia política, que as suas circunstâncias pessoais e as circunstâncias históricas ajudarão a explicar. Não deixou de ter lugar na democracia por ela. Otelo teve a sua. A grande diferença entre os dois é que Otelo nos deu, naquele dia 25 de abril, a liberdade.


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9 pensamentos sobre “Temos memória

  1. Por acaso em muitas coisas acho o Judice o Otelo parecidos.

    Os dois são extremistas anti-democráticos com péssima memória para as fases da sua vida que não lhes interessa divulgar.

    Yap.

    O Otelo foi graduado da mocidade portuguesa. E não venham com coisas que era obrigatório. Porque a maior parte dos tugas passaram por aquilo como um frete. Muitos nem tinham dinheiro para as fardas, que o forreta do Salazar nem isso oferecia, e andavam simplesmente por ali a fazer horas antes de ir para casa. Mas para chegar a graduado era preciso demonstrar especial interesse.

    Do mesmo modo, em África foi responsável pela propaganda do regime colonial. E se não mostrasse interesse e fidelidade nunca lhe teriam entregue tão especializada missão.

    Ah. E dizem testemunhas que chorou no funeral do Salazar.

    Mas aí acabam as parecenças e tenho de reconhecer que embora inconstante e “muito esquecido”, em comparação com o Júdice o Otelo era um senhor, Ao passo que o Júdice é um verme, um parasita.

    Curiosamente neste blog, uma das centenas de vezes que fui insultado de fascista foi por atacar o Júdice, que é esse sim é de extrema direita.

    Se não estou em erro foi quando apoiei este governo na instalação temporária numa estância turistica dos imigrantes contaminados que viviam em contentores. O Júdice, eterno defensor dos ricos claro que era contra e dizia que vivemos em “ditadira” do PS.

    Acho que a cara estátua também já publicou um artigo deste fascista (este é mesmo, não sou esquerdista para andar a chamar fascista a toda a gente) e mafioso na estranha defesa partilhada da estátua/Judice em prol dos capitalistas mafiosos entalados nos recentes processos.

    Bem, ao menos o Júdice que tem uma casa de putas, perdão, um escritório de advogados de elite. É pago para isso.

  2. O que chateia nisto tudo é saber que Otelo Saraiva de Carvalho foi absolvido no na 3.ª Vara Criminal da Boa Hora, a 7 de Abril de 2001.

    Se foi absolvido, absolvido está!

    E o que sobra? Sobra que ele lutou para que pudéssemos ter liberdade para dizermos o que quiséssemos, todavia há aqueles não sabem usar esse magno Direito com responsabilidade e ainda se atiram quais animais famintos ao homem que tal concedeu.

    Esses, merecem realmente um Salazar que os empalasse com a PIDE, Guerras inúteis, repressão constante, fome, analfabetismo, ausência total de direitos de cidadania. Aí seriam felizes.

    Ganharam a liberdade de graça e ao invés de se instruírem volveram-se em autênticas alcoviteiras que falam sempre do que desconhecem com uma profundidade atroz.

    Pois é… terrorista quando? Ele foi absolvido pelo Tribunal, mas ainda assim insistem e insistem e insistem até à exaustão… Querem-se substituir aos Tribunais? Voltámos aos Tribunais de Pelourinho?

    • Caro Paulo Sousa.

      Otelo não foi absolvido de todos os crimes relacionados com as FP, foi AMNISTIADO pelo Mário Soares.

      O que é um “bocadinho” diferente.

      Entretanto ele disse coisas como esta;

      “Precisamos de um homem honesto como Salazar”
      Otelo DN 21 Abril 2011

      “Se soubesse como o país ia ficar não fazia a revolução”
      Otelo Destak 13 Abril 2011

      Por isso pense um bocadinho antes de chamar fascista a toda a gente, porque também está a chamar fascista ao Otelo.

  3. Por mim os escritórios de advogados deixavam de existir, não só em Portugal como nos restantes países. Só servem para proteger que tem o rabo preso, destrói a vida de milhões, bota discurso moralista por dá cá aquela palha e pode pagar os mega processos que só servem para os ilibar. Se os juizes são funcionários públicos e os polícias também, porque raio existem estes parasitas? Era aumentar o número de advogados funcionários públicos, treiná-los em questões específicas e sortear um para cada processo. Garantir proteção policial para os casos mais bicudos e um limite razoável (e humanamente possível) de número de páginas dos processos e de tempo para decidir. Os recursos também teriam de ser reduzidos e simplificados. Não seria uma justiça sumária mas seria uma justiça mais prática. Ah, e muitos “casos” (de gente maluca, que se ofende por tudo e por nada) nem passariam da porta da entrada (esse pessoal que “get a life” de vez), para não termos o sistema judicial pejado de casos da treta que se resolviam facilmente com um berro e/ou pares de estalos.

    Dito isto, o Júdice é um escroque.

    • Caro Bruce.

      Essas casas de putas, perdão, escritórios de advogados das elites especializam-se em fazer os corruptos ganhar os casos na secretaria.

      As leis são feitas por politicos corruptos e escritas pelos mesmos escritórios de advogados que defendem os corruptos. De maneira a deixar uma enorme quantidade de buracos que as permitam contornar – a quem tem acesso aos bons escritórios de advogados claro.

      A coisa funciona como uma casta jurídico-plutocrata.

      A ultima agora é tentarem dar o Salgado como ininputável.

      Tadinho, não se lembra mesmo nada dos milhares de milhões de euros que roubou.

      Até tremo de medo de ver a estátua a debitar febrilmente uma cabazada de artigos a expressar extrema preocupação com o estado de saúde de tal vitima selvatimanente perseguida pelos fascistas dos policias e dos tribunais.

      Que o Salgado é uma pessoa doente, um idoso triste injustamente perseguido.

      Provavelmente a sua doença deve-se até à sua profunda desilusão para com a humanidade. Ele que é um homem tão bom, de tão boa famigliia, e que todos os domingos vai à missa comer hóstias, sera alvo de tamanha ingratidão. Ora essa.

      O Salgado deve rebolar no seu tapete persa, pago com o dinheiro que nos roubou, a rir destes artigos.

      Afinal por alguma razão nunca foram revelados os nomes dos jornalistas comprados por ele que se sabem estarem na wikileaks.

    • Caro Gertrudes.

      O 25 de Abril não foi feito pelo Otelo.

      Foi feito pelo MFA.

      O Otelo teve uma função importante, mas se ele não existisse outro qualquer teria sido nomeado para o seu lugar, que oficias não faltavam no movimento dos capitães.

      E a maior parte do MFA que fez a revolução depois teve de prender o Otelo quando ele nos tentou tirar a liberdade e tentou impor uma ditadura de cor diferente da ditadura anterior.

  4. Far-me-á sempre uma certa confusão a tendência crónica para procurar desculpar coisas que a direita faz mal opondo-lhe coisas que a esquerda faz mal e vice-versa. A ponderação entre o que se fez de bem e o que se fez de mal deve, parece-me, ser feita com a objetividade do juiz, ou as conclusões a que chegarmos jamais serão dignas de ser lidas, quanto mais de delas se ouvir falar.
    Com todas as limitações que temas destes acabam por impor a quem sobre eles escreve, refleti um pouco em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/otelo-o-espinho-que-nem-morte-arrancou.html , que o convido a visitar.

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