Um país mediaticamente sequestrado pelos pequenos dramas de umas dezenas de proprietários que afinal nem o são

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/05/2021)

Daniel Oliveira

Os “proprietários” nem são donos de um centímetro que seja do parque de campismo em que quiseram barrar a entrada. São das casas, para onde os migrantes não iam. Se o empreendimento falir terão de tirar as suas cabanas de um espaço licenciado como parque de campismo em plena Rede Natura 2000. Sem o argumento do direito à propriedade, sobrava dizer que não queriam ter migrantes saudáveis como vizinhos numa terra que não é sua. E isto mobilizou partidos e telejornais durante uma semana. Cabrita foi incompetente, mas é estranho que um país inteiro, no meio de uma brutal crise económica e social, se tenha concentrado durante uma semana em pequenos dramas de veraneantes. Diz tudo sobre a desigualdade de acesso ao espaço mediático.


Às vezes acontecem fenómenos destes: pessoas com capacidade para chegar a quem dá acesso ao espaço público conseguem que os seus problemas ganhem um destaque mediático e uma centralidade política desproporcionados. É o caso dos “proprietários” (já lá vou) do Zmar.

Este ano foi especialmente trágico para milhões de portugueses. Em nome da nossa saúde pública, centenas de milhares terão perdido o emprego e estão em situações económicas dramáticas. Milhares de pequenos empresários estão a perder todos os seus investimentos. Há senhorios que não recebem rendas e inquilinos que terão de sair das casas onde vivem. O país prepara-se para uma hecatombe económica e social. E, durante uma semana, umas poucas dezenas de pessoas conseguiram que a nação se concentrasse na vizinhança indesejada para as suas casas de férias. É surreal.

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Num esforço de moderação, que foi sempre encontrando resistência na minha estupefação, ainda achei que conseguia perceber o problema daquelas pessoas. Mas, para ser sincero, à medida que foi ficando claro aquilo a que realmente se opunham, percebi que não conseguia. Os imigrantes não iam para as suas casas (a dada altura isto ficou esclarecido) e eles nem sequer vivem ali. São casas de férias dentro de uma cerca sanitária. Os imigrantes foram para as casas vizinhas, como os próprios utentes do Zmar já foram alojados em unidades hoteleiras próximas quando, em 2016, houve um incêndio no empreendimento. No meio de tantos dramas vividos neste país durante este ano trágico, os “problemas” dos “proprietários” das cabanas de verão da Zmar não me interessam para nada. Sobretudo em comparação com o problema que se vive em Odemira e as condições aviltantes em que estão os imigrantes.

Claro que Eduardo Cabrita, sempre incompetente, tratou disto com os pés. A requisição foi mal feita e deveria ter deixado logo claro o espaço que ia ser usado. As suas intervenções foram sempre tardias e quando vieram mais valia que tivesse ficado calado. Cabrita não devia ser ministro há muito tempo, mas este caso, ao contrário da morte de um imigrante no Aeroporto de Lisboa seguida de nove meses de silêncio, não tem a dignidade para uma demissão. É um problema ao nível do condomínio. Preocupa os próprios. Seja como for, a providência cautelar, que ao ser aceite não dá nem tira razão a ninguém, não terá qualquer efeito prático. Porque o recurso demorará dois ou três meses a ser apreciado e porque já se encontraram soluções mais próximas do local de trabalho dos imigrantes.

Os “proprietários” do Zmar conseguiram esta desmesurada atenção porque, neste país classista, quem tem acesso à elite tem direito à atenção. Foi assim sempre que as escolas reabriram e o debate se centrou imediatamente nos colégios, volta a ser assim agora. Conhecimentos nas redações e contacto direto com o bastonário da Ordem dos Advogados (que por sua vez lhes deu acesso ao Presidente da República) fizeram que um drama irrelevante vivido por umas poucas dezenas de donos das cabanas de verão se transformasse num drama acompanhado pelo país inteiro que, parece-me, tem coisas bem mais importantes com que se preocupar.

A coisa atingiu tal dramatismo que a entrada da GNR no espaço do Zmar foi tratada como o prenúncio de uma ditadura. Apesar da falta de tato na forma como se fez a instalação dos imigrantes, às 4 da manhã e com um aparato disparatado, não me recordo de alguém ter ouvido os milhares de moradores do Bairro da Jamaica quando houve um cerco policial acompanhado por circo mediático para fechar três cafés. Nem me lembro de ter ouvido do Chega, do CDS, da IL ou mesmo do PSD a palavra “ditadura”. Quando a polícia entra em bairros pobres, muitas vezes usando a força, está a impor a lei; quando impõe a lei num “resort”, não usando a força, é ditadura.

Mas já que conseguiram tanta atenção, que se dedique a atenção toda a um empreendimento que é um símbolo do chico-espertismo nacional. Os autointitulados “proprietários” não são proprietários. São das suas casas, como são os donos de roulottes que estão num parque de campismo. Porque é isso mesmo que aquele espaço é: um parque de campismo. Foi para isso que foi licenciado. Naquele terreno não é permitida nem construção, nem loteamento. As pessoas que vimos na televisão não são donas de um centímetro que seja daquele terreno (que lhes é apenas cedido). E, no entanto, sentiram-se no direito de tentar barrar a entrada. E invocar o direito de propriedade (na providência cautelar não o fizeram, claro) que não é para aqui chamado. A sua propriedade é das casas, que neste caso são um bem móvel, e ninguém entrou nelas. Se querem perceber melhor como andámos a chamar proprietários a quem nunca o foi, aconselho a leitura deste artigo do “Público”. A preocupação dos proprietários é que se o empreendimento falir – é à beira disso que vive há dez anos, com várias insolvências – terão de tirar de lá as suas cabanas. Sofro mais com o drama dos donos de barracas quando as têm demolidas, confesso.

Aquele parque de campismo, construído em plena Rede Natura 2000 e cheio de peripécias onde se cruza quase tudo o que está errado neste país, não deveria existir com aquela dimensão e natureza. E os donos das cabanas sabem-no. A esperteza é conhecida, mas aqui teve dimensões maiores do que o habitual (talvez pelas pessoas envolvidas no negócio): consegue-se um licenciamento para parque de campismo e depois aquilo vai mudando de natureza com o silêncio cúmplice de todos. Mas há coisa que dificilmente acontecerá: aqueles que vieram a público gritar pelo seu direito à propriedade serem proprietários daquela terra. Fomos enganados, porque a única coisa que podiam dizer era demasiado desagradável: que não queriam ter migrantes saudáveis como vizinhos numa terra que não é sua. E isto mobilizou três partidos políticos e as aberturas de todos os telejornais.

Nada tenho contra estes cidadãos. É possível que até conheça alguns. E muito menos tenho alguma coisa contra a legítima vontade de serem donos de uma casa de férias, que partilho. Quem conseguiu pô-los sob os holofotes serão as mesmas pessoas que os convenceram que são proprietários de mais do que casas que até podem vir a ser deslocadas para outro lado qualquer. E um bastonário que confunde a sua função com a de presidente de uma associação de proprietários (funções que estranhamente pode acumular). E partidos de nicho que estão a competir pelo mesmo eleitorado – o PSD limitou-se, como de costume, a ir atrás. O meu problema não é que eles digam de sua justiça. É que um país inteiro, com problemas gravíssimos com que lidar, entre os quais a situação de milhares de imigrantes em Odemira que se prolonga há anos porque a todos beneficiou, se tenha concentrado durante uma semana nos pequenos dramas destes veraneantes. Diz tudo sobre a desigualdade de acesso ao espaço mediático.


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3 pensamentos sobre “Um país mediaticamente sequestrado pelos pequenos dramas de umas dezenas de proprietários que afinal nem o são

  1. Grande texto – 100% correto.

    É o que eu sempre disse – aquele empreendimento turístico nem devia existir, é produto de corrupção.

    Está construido numa reserva natural, a aprovação da construção foi duvidosa e depressa brutalizou os limites do licenciamento e “foi mais além da troika” evoluindo para uma coisa que é mais do que o parque de campismo que foi licenciado.

    Está falido, com enormes dividas ao estado que já é praticamente dono daquilo e os imigrantes foram alojados em casas vazias e não “dos proprietários”.

    Os “proprietários” só são donos das próprias casas, não do terreno todo – e as suas casas não foram ocupadas.

    É um caso tipico de “nojo dos pobrezinhos” que os “proprietários” não querem ter como vizinhos.

    Nem que seja durante uns dias.

    Quem mete nojo aqui são “os proprietários” que não são proprietários das casas em que imigrantes foram instalados.

  2. A cereja no topo do bolo aconteceu ontem, imediatamente antes do jornal das 20:00 da RTP1 no tempo de antena de uma Associação de Proprietários, a deixar um alerta, que os coitados estão a ser roubados, etc. etc. etc.

    Vale a pena tentar rever este tempo de antena, dado o fortíssimo impacte que certamente terá naquela camada demográfica . Aterrorizante

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