Desconfinei

(Amadeu Homem, in Facebook, 16/03/2021)

Hoje o sol chamou-me e eu não resisti. Peguei na máscara, meti debaixo do sovaco a bolsa das compras e saí. O meu primeiro alvo levou-me a percorrer a Rua Marechal Saldanha, mesmo aqui ao lado do meu retiro de estudante, desta abençoada Travessa do Sequeiro. Por esta vez não encontrei a revoada de pombos a debicar pedaços de pão velho, que uma alma caridosa, moradora de um anónimo andar, solta para as aves e que acabam por me cair em cima. Não levo a mal e rio-me interiormente. Em pleno coração de Lisboa, só no Bairro da Bica um incauto passeante pode levar com uma saraivada de pedaços de pão, caindo em perfeito estado de generosidade no meio da rua, para que os pombos se alimentem.

O meu alvo de sempre ou quase sempre era o Miradouro de Santa Catarina, com a sua estátua do Adamastor. Azar o meu: estava fechado. Mas havia uns bancos exteriores de mármore, batidos generosamente pelo sol, que se ofereciam ao comprazimento. Escolhi um deles e por ali estive três quartos de hora, com o Cristo Rei ao longe, com a Ponte ao longe e com o sulco de “ferry boats” em demanda dessa outra Banda que eu faço questão de conhecer a palmo, quando o vírus amainar. Isto no caso desse bruto não me “limpar o sebo”…

A seguir retrocedi, alcancei o Calhariz, procurei uma Farmácia, comprei por lá um frasco de gotas para a minha rinite alérgica e avancei para o Largo de Camões. Passei à beirinha do “meu” Cinema Ideal, carrancudamente fechado; verifiquei que a “Manteigaria” já estava aberta – Deus seja louvado! -, paguei e abichei dois pastéis de nata (quero lá eu bem saber da silhueta!) que comi com voracidade, um a seguir ao outro.

Segui no sentido do Chiado e dei-me conta que a Igreja de Nossa Senhora da Encarnação estava aberta. Ainda estava por visitar. Disse para os meus botões: – É já! É mesmo hoje!

Na entrada estava sentado um galfarro jovem, que me apareceu em fingimento de mendigo. Ignorei-o e entrei.

A Igreja é um espaço amplo, com altas abóbadas de berço e duas zonas laterais com altares temáticos. Na teia, existiam quatro crentes, três homens e uma mulher, de idades problemáticas por se encontrarem todos de máscara.

Visitei, um por um , todos os altares e parei durante mais tempo diante da imagem da Rainha Santa Isabel, que foi desde sempre uma espécie de manipanso deste incréu. Depois verifiquei que do lado direito existia um pequeno corredor. Sou piolho de costura. Onde vislumbro uma porta, entro. Meti-me por lá. Era um corredor sem nada de valioso, descontando umas inscrições pias e uma homenagem ao Padre Abel Varzim, cofundador da Liga Operária Católica e resistente ao Estado Novo.

Este corredor lateral por onde a minha curiosidade me tinha levado, era decorado, no teto encurvado e anão, por uma frustre tentativa de imitação das pinturas da Capela Sistina, ou seja, um completo e irrefragável desastre estético! Mas houve um mostruário, com literatura sacra, que mereceu a minha especialíssima atenção. É que nele se encontrava um título que rezava assim: ” Santo Inácio de Loiola – Autobiografia”. Uma autobiografia do fundador da Ordem católica mais pedagógica e mais elitista? Interessa-me! Quero mesmo ler isto! Tenho de ler!

Regressei ao corpo principal do templo e vislumbrei um rapaz de sapatos de ténis e barbas, de costas voltadas para mim, mas que deveria ter algumas responsabilidades cultuais, pois se movimentava à vontade junto ao sacrário.

– Pst! Pst! Ora faça favor!

O jovem veio ter comigo, com uma expressão um tanto assarapantada. Eu disse-lhe: – Quero comprar a Autobiografia de Santo Inácio de Loiola.

O “sapatilhas”, muito correto, replicou: – Faça o favor de me seguir.

Levou-me então a um escritório onde se encontravam vários livros em cima de uma mesa. Selecionou o livro que eu pretendia e eu indaguei: – Quanto devo pagar?

E ele, o “sapatilhas”: – Nove euros.

Paguei com uma nota de dez e explicitei: – Não quero troco. O euro em demasia é para os pobres.

Depois disto tudo, passei pelo Minipreço e pude concluir o dia com a compra de vulgaridades de boca, mas também com duas garrafas de vinho, uma “Terras do Pó” (Casa Ermelinda Freitas) e outra ” Sossego” (Alentejano, Vinho Tinto, Touriga Nacional, Aragonez, Syrah, 2019). Também merquei um ” Raposeira – Reserva – Meio Seco”, mas dessa nem falo, porque acabei de o ingurgitar, enquanto isto redigia. Ou seja, deu a alma ao Criador!

Perguntarão: – E bebeu-o todo?

– Claro que bebi! Uma mixuroquice de 75 centilitros… Por quem me tomam?

4 pensamentos sobre “Desconfinei

  1. E eu não descortinei o propósito do exercício. O autor quiz partilhar connosco que :a) entrou numa igreja. b) que comprou um livro por 9 euros. c) que deu 1 euro de esmola. d) que comeu 2 pasteis de nata e que, finalmente, comprou 2 garrafas de vinho e uma de espumante, coisa que descreve com alguma minucia. Dada a importancia da ocasião era de esperar alguma largesse, senão uma garrafa de Mouchão pelo menos o tinto reserva da Herdade do Peso. Quanto ao espumante a Raposeira oferece o Super Reserva ou o Blanc des Blancs, obviamente Brut, por um preço acessível. Portanto o autor não descreve ter feito, ou sentido, no seu desconfinamento nada para além do corriqueiro, daí a pergunta:Qual o propósito do exercício?

  2. Desconfinar para o comum dos mortais é isto mesmo. Dou os parabéns a quem tem vidas cheias de lugares e afazeres que não estes. Eu por exemplo há pouco combinei com uma amiga que mora em São João do Estoril ir até lá ver a belíssima Baía de Cascais. Não é glamoroso mas virei de lá com a alma lavada e a constatação que a pandemia não é mais forte do que a beleza das coisas.

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