A esquerda teve uma derrota, a direita tem um problema

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/01/2021)

Daniel Oliveira

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Que ninguém use a abstenção para explicar os resultados destas presidenciais. Tendo em conta a pandemia, a quantidade de pessoas confinadas sem acesso ao voto, as inevitáveis filas para garantir a segurança de todos, o facto de estarmos perante uma reeleição com vencedor certo, a participação eleitoral até foi extraordinária. Como foi explicado, o aumento da abstenção resulta da entrada de emigrantes nos cadernos eleitorais. Estamos em linha com votações anteriores. Não foi a abstenção que nos trouxe até aqui.

Antes de haver qualquer confusão, Marcelo Rebelo de Sousa venceu as eleições. Foi eleito à primeira volta, reforçou a sua votação e pescou em todo o lado. E a vitória retumbante não é nem do PSD, nem do PS, nem do CDS, nem da direita, nem do centro. É dele. Depois, mais de 88% dos eleitores votaram em candidatos comprometidos com o essencial dos valores constitucionais democráticos. Somos, se me permitem dizer assim, a esmagadora maioria do país. Isto deve ser dito de forma clara, antes que se institua que uma minoria diz o que o país sente.

André Ventura não conseguiu o seu objetivo: o segundo lugar. Demite-se outra vez, recandidata-se outra vez e está feito. Mas não podemos ignorar o que já nem é um elefante na sala. É uma manada de elefantes. Um candidato que, por oportunismo desbragado, recusa o essencial dos valores civilizacionais em que se baseia a nossa democracia e os alicerces do Estado de Direito, teve 12% dos votos. Só teve uma derrota formal porque o seu tom exige fanfarronice em período de campanha.

Não me parece sério, em noite eleitoral, fazer uma análise das razões do voto em André Ventura. Não participarei nesse exercício em que cada um pega nos seus descontentamento e os atribui aos eleitores de Ventura. E ele agradece. Seja a desigualdade, a gestão da pandemia, o politicamente correto ou a corrupção. Até ouvi, de jornalistas e de Rui Rio, um exercício canhestro sobre um Alentejo comunista que virou para a extrema-direita.

No Alentejo, os eleitores não são todos comunistas. Os comunistas já nem sequer são a maioria há muito tempo. Não há, em comparação com as anteriores presidenciais, qualquer desvio do padrão no voto comunista no Alentejo. Os resultados de Edgar Silva e de João Ferreira foram muito próximos no país (4%). E também em Beja (15%), Évora (11%) e Portalegre (7%). O mesmo acontece em Setúbal (9%). Se há transferência de eleitores comunistas de uma presidencial para outra isso só acontecerá marginalmente. Não basta olhar para uma região para definir os eleitores de cada partido. Devia-se prestar mais atenção aos eleitores de direita nestas regiões dominadas pela esquerda.

Não podemos, no dia seguinte às eleições e em cima do joelho, procurar as razões profundas para o que nos aconteceu, que segue uma tendência internacional. Mas podemos falar dos responsáveis por este resultado concreto. Pelas escolhas que fizeram nestas eleições e que contribuíram para acelerar um processo de radicalização do voto de direita. São, para resumir, as direções dos principais partidos políticos, demasiado embrenhados nas suas táticas de curto prazo para compreenderem o que têm pela frente.

É António Costa, que com o seu apoio oficioso a Marcelo Rebelo de Sousa colou o Presidente ao Governo e ofereceu uma autoestrada a Ventura, transformando-o no depositário do descontentamento de direita, obviamente reforçado neste tempo de pandemia descontrolada. Ao não ter promovido uma candidatura do seu espaço político, o PS descolou o centro do confronto para Ventura e não, como seria saudável, para o centro político. É evidente que Costa até ganha com isto. Primeiro, porque o PSD passou a ter de lidar com um problema bicudo. Depois, porque o BE e o PCP foram canibalizados pelo voto útil em Ana Gomes e isso deixou-os frágeis para este ciclo. Por fim, porque nasceu um inimigo que pode ir para o Governo com o PSD – um forte argumento para o voto útil no PS e para a chantagem contra uma crise política. Costa até ficou melhor, com os partidos à sua esquerda e à sua direita fragilizados. Bom para ele, uma tragédia para o país.

É Rui Rio, que abriu espaço a entendimentos futuros com o Chega, dando-lhe um novo estatuto junto do eleitorado de direita. É até o irrelevante Francisco Rodrigues dos Santos (que ontem voltou a revelar essa irrelevância em todo o seu esplendor), que por insegurança interna não impulsionou uma candidatura de alguém como Adolfo Mesquita Nunes, que, como se percebe com os 3% de um candidato pouco interessante como Tiago Mayan, poderia ter corporizado outro tipo de oposição de direita a Marcelo Rebelo de Sousa.

É o BE e o PCP, que não perceberam que este era o momento de contribuírem para uma candidatura independente à esquerda do PS (não seria Ana Gomes), já que o PS não foi a jogo. Preferiram medir-se pela enésima vez, numa guerrilha (em vez de complementaridade) que ainda dará cabo dos dois. Mas deixo a esquerda para outro texto.

Temos pela frente anos sombrios. Tudo o que esta pandemia e a crise social e económica trarão fará crescer o descontentamento e o monstro do ódio. A inexistência de uma direita minimamente competente na oposição ajudará mais um pouco. O resto falo-á a incapacidade da esquerda em se unir quando tem mesmo de o fazer e o calculismo autocentrado do primeiro-ministro. Das razões profundas, falaremos nos próximos tempos. Destas, mais evidentes, podemos falar já. Aprenda-se qualquer coisa.

Olhando para os resultados eleitorais, a derrota da esquerda é estrondosa. Ana Gomes, João Ferreira, Marisa Matias e Vitorino Silva – os quatro candidatos que se assumem de esquerda – tiveram, juntos, 24%. O resto foi para candidatos de direita. Isto responsabiliza a esquerda, a começar pelo Partido Socialista. Mas se ficarmos por aqui, não percebemos o cenário político que nasceu hoje.

Grande parte do eleitorado socialista (e do resto da esquerda) não se transferiu para a direita. Votou num Presidente visto como próximo do Governo, seguindo a indicação do primeiro-ministro. O PS ficou na mesma. PCP e BE tiveram duras derrotas, mas aqueles para onde grande parte do voto foi (Marcelo e Ana Gomes) não têm plataformas partidárias. Podem ou não recuperar esse voto, mas não houve uma mudança no quadro partidário à esquerda. Já a direita ganhou um novo ator de que ficou refém. Sinceramente, não compreendo porque sorriem. Mesmo depois deste domingo, continuam em negação?


2 pensamentos sobre “A esquerda teve uma derrota, a direita tem um problema

  1. Nota. Como normalmente acontece, quase tudo sai ao lado. Existe também uma sondagem com um universo razoável de 4000 inquiridos que foi exibida pela RTP 1, ontem ao fim da noite, e que para legislativas atribui 35% ao PS, 23% ao PSD, 9% ao Chega, 8% ao BE, 7% à IL*, 6% ao PCP e dois ao PAN e ao CDS. No caso da/s Esquerda/s e da IL, tendo em conta estes números, parte importante do que escreve o Daniel está errado.

    Asterisco. Sete, leram bem. Sobre a pandemia do Covid-19 continuas a lamber os tomates do António Costa, está visto.

  2. Bem.

    Posso sorrir da estupidez de esquerdistas como o Oliveira, que são os principais causadores da subida do Ventura com os seus incitamentos ao apedrejamento da policia etc, depois chorarem muito que o Ventura está a subir.

    A única dúvida é se é só estupidez ou é de propósito ?

    É que com uma direita radical a esquerda radical já pode justificar o seu radicalismo.

    Até aqui os cartazes do MRPP a exigir a pena de morte ou os esbirros da estátua a oferecerem porrada aos membros das caixas de comentários que não alinhem pela linha do partido pareciam um bocado despropositados.

    Agora já têm uma desculpa. Ah é por causa do Ventura e tal…

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