“A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida”: Sophia, a eterna

(Joana Beleza, in Expresso Diário, 06/11/2019)

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No princípio foi a maçã. Enorme e vermelha, pousada numa mesa junto à janela, aquela simples peça de fruta à luz do dia impressionou-a profundamente e ficaria marcada como a sua memória mais antiga. Mais tarde escreveria na sua Arte Poética III “não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria”. Era o “esplendor da presença das coisas” e por isso Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) acrescentou a esse texto escrito em 1964 que a poesia era uma perseguição do real, “um círculo traçado à roda duma coisa”. Assim, partindo dessa imagem, podemos dizer que a casa e o pátio, a árvore e o jardim, o mar e a areia, foram os grandes territórios cercados pela sua escrita. Sophia estendeu-se sobre eles como quem estende uma toalha lisa e perfumada sobre a mesa, dispondo com cuidado os objetos necessários para cumprir a refeição. E não é por acaso que nomeio o quotidiano para falar daquela que foi uma das maiores escritoras portuguesas de sempre.

Sophia foi poeta e ativista política, mas também foi mulher e mãe. Pela vida que levou, pelas opções que tomou, por aquilo que escreveu e tantas vezes declamou, Sophia mostrou e mostra a todas as mulheres portuguesas que elas podem ser o que quiserem. Dentro e fora de casa. Sophia levou ao colo filhos e flores, pão e peixes, mas também versos e deuses muito antigos, tratando (de) todos por igual.

“Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedras e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado (…)”, descreveu ela no Caminho da Manhã, um magnífico texto em prosa que é uma ode ao seu “amor pelas coisas visíveis”. Sophia tinha a capacidade de falar das pequenas coisas com elegância e eloquência, elevando-as a uma espécie de altar para serem contempladas. Sophia sabia que a vida não era simples, mas as coisas – e os versos – sim.

Depois foi o espaço. O interior e o exterior. Em “Sophia, na primeira pessoa”, o recente documentário realizado por Manuel Mozos, vê-se a poeta numa gravação antiga dizer que para ela é tão importante o interior de uma casa como o exterior, do jardim à rua, da rua ao fio do horizonte. “É esta a hora perfeita em que se cala / o confuso murmurar das gentes / e dentro de nós finalmente fala / a voz grave dos sonhos indolentes. // É esta a hora em que as rosas são as rosas / que floriram nos jardins persas / onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram. / É esta a hora das vozes misteriosas / que os meus desejos preferiram e chamaram. / É esta a hora das longas conversas / das folhas com as folhas unicamente. / É esta a hora em que o tempo é abolido / e nem sequer conheço a minha face.”

Sophia galgou pelo tempo sem parar. Provavelmente por ter nascido numa casa enorme, cheia de histórias do passado, sentiu-se tocada pela brisa da História e nunca parou de a procurar. Do Porto à Granja, de Lisboa a Lagos, de Portugal à Grécia, Sophia ligou todos os lugares uns aos outros e todos os tempos ao princípio dos tempos. “Fui de automóvel com a Agustina B. Luís até Brindisi, onde tomámos o barco. Passámos por Turim, Milão, Veneza, Pádua, Verona, Ravena, Rimini, Termoli. À volta passámos por Pompeia, Nápoles, Roma, Florença. Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido”, escreveu ela em maio de 1964 numa carta endereçada ao seu grande amigo Jorge de Sena. Muitos anos depois, a 14 de abril de 1978, num bilhete postal enviado a partir de Roma, escreveu também para ele: “Tem chovido sem parar há quinze dias, o que tem perturbado bastante o meu turismo. Mas olho e vejo sempre com fervor como na minha infância”. Esse olhar de criança, espantado, curioso e sedento, produziu uma obra incontornável na literatura nacional e internacional.

Sophia, que esta quarta-feira, 6 de novembro, faria 100 anos, foi uma poeta ímpar e é por isso que é importante assinalar o seu aniversário. Estes foram os primeiros 100 anos e esperemos que sejam os únicos em que tão pouco se falou sobre a obra dela. Um dos poucos poemas que sei de cabeça é este: “Meu signo é o da morte porém trago / uma balança interior uma aliança / da solidão com as coisas exteriores”.

É certo, estamos todos sozinhos, mas (como Sophia escreveu na Arte Poética III) “não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência”. Somos “herdeiros da liberdade e da dignidade do ser” e temos a poesia para nos salvar. Seria tão bom se os versos dela se espalhassem (ainda mais) por Portugal. De norte a sul, das paredes do Oceanário para todos os muros das escolas. Foi ela que o escreveu: “Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida”. A obra literária de Sophia é vida. Celebremos os 100 anos como se celebrássemos os mil, os cinco mil, a eternidade.



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