Tanto sábio para ser Bolsonaro

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/06/2019)

Daniel Oliveira

Há uns tempos, um tweet de Jair Bolsonaro ainda conseguiu causar incómodo. Escrevia o Presidente do Brasil: “O ministro da Educação estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina. A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer contas e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.” Nuno Crato diria mais ou menos a mesma coisa, mas em português.

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A indignação resultava da ideia que as ciências sociais são uma espécie de inutilidade, sem valor económico. Isto poderia levar a dois debates. Um: que o valor da formação superior se resume ao seu valor económico e produtivo. Outro: que existe engenharia sem filosofia, design sem artes plásticas, marketing sem sociologia e por aí adiante. Parece-me que, no estado da arte da reflexão pública, debater a segunda é mais consensual. Mas o que Bolsonaro escreveu de forma boçal, o Governo português prepara-se para fazer escondido atrás da frieza de um grupo de tecnocratas. E tudo começa por uma decisão do ministro Manuel Heitor: congelar o aumento de vagas no ensino superior público em Lisboa e Porto.

Impedir que as universidades de Lisboa e do Porto abram mais vagas não é a melhor forma de promover a descentralização. Até porque aumentará o número de alunos deslocados. Se isso não vier acompanhado por um enorme reforço de apoio social, será insustentável para as famílias. A única coisa que conseguirão, pelo menos junto da população que vive nas duas áreas metropolitanas e sua proximidade (cerca de metade do total da população nacional), é levar as pessoas a fazerem contas e a preferirem ir para as universidades privadas mais próximas.

Forçar à deslocação de mais estudantes sem aumentar muito significativamente a dotação orçamental para residências e deslocações, agrava um problema existente. O relatório Education at a Glance 2015 disse-nos que Portugal é o país da União Europeia em que os privados (sobretudo famílias) mais custos suportam – 45,7% do total da despesa. Acima do Reino Unido, que é, depois da Hungria, o terceiro pior. É preciso alargar para países não europeus, como os Estados Unidos ou o Japão, para encontrar percentagens superiores. As famílias não podem gastar nem mais um cêntimo com a formação superior dos seus filhos. As novas centralidades conseguem-se com investimento que torne as universidades fora de Lisboa e Porto atrativas e diferenciadas, não limitando o acesso às que já têm capacidade instalada. Até porque, dificultando o acesso às universidades do Porto e de Lisboa, a tendência será para uma estratificação que as torna de elite.

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Para que a medida não fosse cega, o Governo nomeou um grupo de trabalho. E em vez de uma decisão cega, veio uma decisão vesga. O grupo propôs que, nas universidades que servem metade do país, só fosse possível aumentar as vagas em cursos com média de entrada superior a 17. Ou seja, não permitir a entrada de mais candidatos a não ser nos cursos que só aceitam alunos extraordinários, porque a procura excede largamente a oferta. A lógica é deixar que seja o mercado a determinar as prioridades. Nem sequer é o mercado de trabalho, é o mercado universitário.

O que me choca não é que os cursos que exigem média de 17 possam aumentar o numero de vagas. Pelo contrário, acho absurdo que haja cursos onde só podem entrar alunos com esta média. Isto cria até distorções no perfil de estudantes e, mais tarde, no mercado de trabalho. Um aluno médio deve conseguir entrar na faculdade para, lá, continuar a ser provavelmente um aluno médio. Os excelentes também lá estarão para se destacarem na faculdade e no mundo de trabalho. E, como sabemos, nem isso é verdade. Alunos com médias de secundário de 15 ou 16 podem vir a ser os melhores estudantes na universidade ou os melhores profissionais. Qualquer curso que os dispensa à partida está a desperdiçar oportunidades. Mais: nem todos os licenciados numa área vão trabalhar nos lugares de topo dessa área. São precisos estudantes medianos para fazerem trabalhos de exigência mediana. Os melhores ou ficam nos lugares de topo ou muitas vezes imigram. Não querem ficar com os trabalhos medianos. Ter a oferta tão afunilada cria problemas no mercado de trabalho e às empresas.

Mas, acima de tudo, é absurdo qualquer medida que passe pela redução da oferta. Usando dados disponíveis entre 2014 e 2017, 34% dos portugueses entre os 25 e os 34 anos têm formação superior (entre os 55 e os 64 anos são 13,2%). A média na OCDE era de 44,5% (27,2% no grupo etário mais alto) e na União Europeia era de 42,3% (24,8% entre os mais velhos). Não temos licenciados a mais. Temos licenciados a menos. Não somos um país de doutores, somos um país com falta de doutores. Não faz sentido congelar a abertura de vagas em Lisboa e no Porto, o que temos é de ter mais gente a ir para todo o lado, incluindo para as restantes universidades, que têm de tornar-se mais atrativas. Talvez com algum tipo de especialização. Onde o fizeram tiveram bons resultados.

Mas o mais interessante é o efeito automático desta proposta. Tirando Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nova, nenhum curso de ciências sociais poderá aumentar a oferta em Lisboa e no Porto. Os cursos que podem aumentar a sua oferta são Engenharia Física Tecnológica, Engenharia Aeroespacial e Matemática Aplicada e Computação, do Instituto Superior Técnico (Universidade de Lisboa), Engenharia e Gestão Industrial e Bioengenharia, na Universidade do Porto, ou Multimédia, no Instituto Politécnico do Porto. O grande argumento é que não se pode desaproveitar capacidade instalada em Lisboa e Porto nestas áreas. Parece-me sábio. Não consigo é perceber porque se pode desaproveitar a capacidade instalada noutras áreas. Os especialistas do grupo respondem: porque estas são áreas que têm muita procura (pensei que isso era bom para que fossem estudar para outros lugares) e, aqui está a chave desta decisão, um maior potencial estratégico. Como dizia Bolsonaro, “o objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte” num “ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”. A tecnocracia faz o mesmo que os boçais que nos incomodam sem precisar de passar vergonhas.

Manda a intuição que se baseia no preconceito que andamos a formar demasiada gente em cursos inúteis e o que precisamos é de mais engenheiros. Assim como antes achávamos que cursos a sério eram os de Direito e Medicina. Não tenho como seguir o mercado, até porque ele é bastante volátil e estas certezas são rapidamente desmentidas pela realidade. E porque acredito que, com o atraso que temos, só aumentando a oferta em tudo estaremos preparados para o futuro. Mas posso comparar-nos com o resto da Europa, onde se incluem alguns dos países mais competitivos do mundo e que é o mercado em que estamos integrados.

Segundo os números do Eurostat, e seguindo a tipificação de cursos constante nas suas estatísticas, 5,3% dos nossos estudantes andam em cursos de educação (na Europa são 9%), 9,4% em artes e humanidades (11% na UE), 30,4% em ciências sociais, jornalismo, gestão, direito e administração (34,1% na UE), 7,8% em ciências naturais, matemática, informática e tecnologias da comunicação (11% na UE), 21,3% em engenharia, transformação e construção (14,8% na UE), 18,2% em saúde e apoio social (13,7% na UE), 5,8% em serviços (3,7% na UE) e 1,9% na agricultura, florestas, pescas e veterinária (1,7% na UE).

Olhando para estes números, é difícil pôr todas as fichas numa aposta centrada quase exclusivamente nas engenharias e na indústria, quando se percebe que é aí que a nossa oferta é muito maior do que é habitual na Europa, ignorando a falta que temos nas ciências naturais e informática mas também, e ao contrário do que se pensa, nas ciências sociais. E não se pensa porque se olha para as ciências sociais como Bolsonaro, não percebendo que elas estão a montante de imensas atividades científicas e profissionais.

A proposta de travar a oferta universitária nas duas áreas metropolitanas onde vive metade da população é um erro. Porque se o Estado não aumentar significativamente a despesa pública em residências e deslocações fará com que as famílias portuguesas, que são as que mais suportam as despesas na formação superior dos seus jovens em toda a Europa (quase metade), sejam ainda sobrecarregadas. Ou optem pela oferta privada, por, com a deslocação compulsiva, sair mais barata. E porque continuamos bastante abaixo da UE e da OCDE em percentagem de licenciados, estamos longe da necessidade de congelar oferta seja onde for. O que temos é de melhorar e diversificar a oferta fora das áreas metropolitanas, para as tornar mais atrativas. Estamos a 20 à hora e longe do destino com um histérico que quer poupar na gasolina a mandar-nos travar por causa do risco de despiste.

A proposta feita pelo grupo de trabalho nomeado pelo Governo tornou vesgo o que era cego. Ao só permitir o aumento da oferta em cursos com média de entrada de 17 valores, consegue o efeito automático de deixar de fora as ciências sociais. Levam à prática a tese de Jair Bolsonaro: desinvestir nas ciências sociais, tratando-as como inúteis para o desenvolvimento económico. Num país que tem uma percentagem de licenciados em ciências sociais, humanas e económicas inferior aos seus parceiros europeus.

Os números mostram, aliás, que os cursos mais beneficiados são de áreas em que a percentagem de estudantes é largamente superior aos restantes países europeus, não beneficiando significativamente as áreas tecnológicas onde somos deficitários. Em vez de definir uma estratégia, o grupo tomou as médias de entrada, determinadas pela relação entre a oferta e a procura, como necessidades do país. Para quê escolher um grupo de especialistas se o que têm a propor é tão cego como o que quiseram corrigir? Se é para decidir com base no preconceito, um Bolsonaro chegava.


2 pensamentos sobre “Tanto sábio para ser Bolsonaro

  1. “Os melhores ou ficam nos lugares de topo ou muitas vezes imigram.” Imigram? Só pode ser gralha.
    Colocar no mesmo plano a REDUÇÃO do financiamento de cursos na área das ciências sociais, proposto pelo Bolsonaro, e o NÃO AUMENTO DE VAGAS em Lisboa e Porto para cursos com média de entrada superior a 17 parece-me um bocado forçado. No Brasil querem cortar, em Portugal não propuseram corte.

    Parece-me forçado.

  2. Não precisavam de um grupo de especialistas para “legitimar” o objectivo de reduzir custos com a Escola Pública e escancarar as portas às universidades privadas a quem foi estendida uma passadeira vermelha para Lisboa e Porto.

    Esta chamada descentralização, tão impositiva e feita à pressa, é um enorme chapéu, a que eu chamaria quarto escuro, onde vai caber tudo o que tem estado escondido debaixo do tapete, nomeadamente, o recurso à iniciativa privada por parte dos órgãos de poder locais.

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