Dos incêndios à tempestade Leslie – Maniqueísmo, ressentimento e outras raivas

(Carlos Esperança, 14/10/2018)

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Agostinho era um intelectual maniqueísta, nascido em meados do séc. IV que faleceu aos 75 anos, no século seguinte. Converteu-se ao cristianismo, foi bispo de Hipona e tornou-se seu santo doutor, quando ainda não se criavam santos com a facilidade com que as operárias das Caldas reproduzem recordações da cerâmica local, para turistas.

O maniqueísmo não deixou de impregnar o pensamento e inquinar a reflexão na nossa cultura. Permaneceu no ‘santo doutor’ e continua a determinar a culpa, outra herança da cultura judaico-cristã.

Quando a Proteção Civil fez advertências vigorosas quanto ao perigo da passagem da tempestade Leslie não se imaginaria o grau de eficiência que pouparia vidas humanas.

A ausência de mortes perante o fenómeno anómalo e violento é uma surpresa, por entre danos materiais elevados. Numerosas telhas do telhado da minha casa emigraram com a força do vento e, de um edifício próximo, outras vieram para me deixar a pintura do carro, onde caíram, com pior aspeto do que o chapéu de um pobre.

Calculo a frustração dos que cultivam a mórbida recordação da tragédia de Pedrógão e o gozo com que atribuíriam ao Governo a responsabilidade, os mesmos que calaram as mortes de uma procissão na Madeira pela queda de um carvalho do adro da igreja que esmagou os crentes e levou a que fossem arguidos, não a paróquia, mas uma vereadora e um funcionário da Câmara do Funchal (!).

Os incêndios são culpa do Governo; as quedas de árvores, quando em recintos pios, das autarquias; os tufões e outras catástrofes naturais, quando não há vítimas, são milagres.

Há pessoas que, se tivessem um pingo de pudor, já teriam felicitado os responsáveis da Proteção Civil, pala eficácia, vigor dos avisos e oportunas medidas de proteção.

Ah, mas o maniqueísmo tem em conta quem apoia o Governo e, nestas circunstâncias, o silêncio virtuoso é a marca genética de quem prefere a tragédia ao êxito das instituições que não comanda.

Na Figueira da Foz e em Coimbra parece existir um campo de batalha de onde saíram os corpos, mas não houve vítimas humanas, apesar dos esforços para as inventarem.

6 pensamentos sobre “Dos incêndios à tempestade Leslie – Maniqueísmo, ressentimento e outras raivas

  1. «Calculo a frustração dos que cultivam a mórbida recordação da tragédia de Pedrógão e o gozo com que atribuíriam ao Governo a responsabilidade, os mesmos que calaram as mortes de uma procissão na Madeira pela queda de um carvalho do adro da igreja que esmagou os crentes e levou a que fossem arguidos, não a paróquia, mas uma vereadora e um funcionário da Câmara do Funchal (!).», e?

    Nota. O teu problema, dear Charles, é que a maioria das vezes não pescas nada dos assuntos!
    (ou seja, isso de fazeres por parecer um mata-frades é uma capa)

  2. Está enganado…morreu uma pessoa. Um caso, não serve de desculpa para o vergonhoso comportamento da ANPCivil no ano passado. Seja como for, a culpa NÃO foi totalmente dela…, mas dos corruptos que fomentam as condições para as tragédias.

  3. Concordo com Carlos Esperança. Veja-se como o Público reagiu no domingo, sem pingo de vergonha, atribuindo uma seta para baixo a Mourato Nunes, diretor-geral da Proteção Civil. Botabaixistas impenitentes dizem: «Alertas em 13 distritos do país, estradas fechadas, ventos fortes e ondulação. O furacão Leslie pôs o país em sobressalto e as autoridades públicas em estado de prontidão. Lamentável, no entanto, que a Protecção Civil continue sem se adequar
    o tempo em que vivemos e não saiba comunicar com as pessoas nos momentos essenciais. Os SMS são só para os fogos, o recurso às redes sociais é uma miragem. É admissível em pleno séc. XXI?»

  4. Sou residente em Coimbra e presenciei e sofri danos materiais. Estava alertado como muita gente da tempestade que se aproximava. Confesso também que eu e muita gente que me confessou , jamais imaginou a força destrutiva da mesma tempestade e que foi totalmente negligenciada pelas autoridades.
    Recebi este alerta como tantos outros que nada significavam. A população não foi avisada da real força destrutiva desta tempestade e julgo que só por acaso não houve vítimas.

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