Os juízes, a “sedução mútua” e o sofrimento da vítima

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 23/09/2018)

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O crime de violação sofreu várias alterações ao longo do tempo. A última das quais, em 2015, cria dois tipos de violação, um “mais grave” e outro “mitigado”. No primeiro caso estão as situações em que é usada “violência, ameaça grave ou colocação da vítima em incapacidade de resistir”; no segundo aquelas em que é constrangida ao ato “por qualquer outro meio”. A pessoa é violada nos dois casos – penetrada contra a sua vontade — mas no segundo, por estar em causa “apenas” não haver consentimento, o legislador achou que podia cortar a pena quase para metade: no tipo 1 é de três a 10 anos, no tipo 2 de um a seis anos.

Esta alteração ao CP, pretendendo ser moderna e de acordo com a Convenção de Istambul, mantém o espírito de antanho – aquele para o qual violação “a sério” é quando a vítima leva pancada de criar bicho, lhe apontam uma faca ou lhe metem droga na bebida.

Dentro desta perspetiva de apoucamento de tudo o que não inclua a tal violência do tipo 1, é digno de nota, e até contraditório com a atual redação do crime de violação, que o que se lhe segue no CP, o Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistência, tenha, quando há penetração, uma pena de dois a 10 anos – ou seja, com o limite máximo igual ao da violação “mais grave”.

Daí que seja simultaneamente expectável e surpreendente encontrar na nota que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses exarou em resposta às críticas ao acórdão que ficou conhecido como “da sedução mútua” e do qual é cossignatário o seu presidente, Manuel Soares, a seguinte frase: “Não é verdade que tivesse havido violação, que no sentido técnico-jurídico constitui um tipo de crime diferente, punível com pena mais grave.”

Que a acusação e condenação em causa foram por abuso sexual de pessoa incapaz de resistência foi dito em todas as notícias, pelo que não se percebe que está a ASJP a desmentir. Nem por que afirma que o crime de violação tem pena mais grave; como vimos, o “tipo 2” tem-na até bem mais baixa.

Mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação “olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência”. Dirá que foi violado, porque se sentirá violado.

Por outro lado, mesmo um juiz muito viciado em juridiquês, se penetrado contra sua vontade, quando embriagado, não diz ao descrever a situação “olha, fui abusado sexualmente quando estava incapaz de resistência”. Dirá que foi violado, porque se sentirá violado. O nome dado ao crime no CP não altera a natureza do ato.

Mas a nota da ASJP não fica por aqui. Afirma: “Não é verdade que o tribunal tivesse considerado que o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ocorreu num ambiente de sedução mútua; essa qualificação refere-se ao contexto que antecedeu a prática dos crimes e que foi dada como relevante para a determinação da pena.”

Perdoem os meritíssimos; acham mesmo que a crítica a essa parte do acórdão se deve a crer-se que nele se diz ter havido sedução mútua enquanto a vítima estava a ser violada – desculpem insistir no termo -, inconsciente, na casa de banho da discoteca, pelos dois homens? Por favor. Toda a gente entendeu que a ideia é que houve “sedução mútua” antes das violações. E que isso atenua a culpa dos violadores.

O que quem criticou a decisão não percebe, e o comunicado não explica, quiçá por inexplicável, é, primeiro, onde foram os juízes buscar essa factualidade, porque não está vertida no acórdão – a não ser que baste dizer que a jovem esteve “a dançar na pista”, ou que estava de shorts ou que bebeu; segundo, em que medida, mesmo a ter existido “sedução mútua” (e com os dois, porque os dois a violaram), poderia tal contribuir para atenuar a pena de um crime que ocorre quando a vítima, como um dos agressores disse numa escuta, “está toda desmaiada”.

A ASJP, na sua fúria corporativa, termina acusando quem se indigna de “agravar ainda mais o sofrimento da vítima”. É bonito. Pena não terem uma linha – uma que seja – para citar do acórdão sobre esse sofrimento.

Esta forma de a ASJP fazer de conta que quem critica o acórdão não percebe de Direito, de português ou de mero bom senso – nem conhece o histórico da legislação e dos tribunais portugueses em matéria de crimes sexuais contra mulheres e violência de género — serve apenas para justificar o que se segue: a acusação de que houve “tratamento sensacionalista” e que as críticas derivam disso, de “agendas políticas ou sociais” e das “expectativas de associações militantes de causas”. Esta afirmação, que visa colocar os tribunais num lugar de neutralidade, serenidade e rigor de que os comuns mortais estão vedados, seria só patética se não evidenciasse a ingénua perversidade dos que só veem agendas nos outros – quando as críticas visam precisamente ajudar os magistrados a identificar e consciencializar a agenda subliminar que resulta numa justiça discriminatória e machista.

Já era dose. Mas a ASJP, na sua fúria corporativa, termina acusando quem se indigna de “agravar ainda mais o sofrimento da vítima”. É bonito. Pena não terem uma linha – uma que seja – para citar do acórdão sobre esse sofrimento.

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