O que vamos dizer aos nossos filhos?

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 21/08/2018)

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No dia 6 de agosto, com repercussões em todo o mundo, foi conhecido um importante estudo sobre alterações climáticas, dado à estampa pela prestigiada Academia das Ciências dos EUA, com o título “Trajetórias do Sistema Terra no Antropocénico”. Antes de ir ao essencial, gostaria de frisar a qualidade científica dos seus 16 coautores. Destacaria dois, que tenho o prazer de conhecer pessoalmente, o coordenador, Will Steffen, que persegue uma carreira brilhante na Austrália e na Suécia, e Hans Joachim Schellnhuber, talvez o mais influente cientista europeu, diretor do Instituto de Clima em Potsdam. Os cientistas do Sistema-Terra fazem hoje o trabalho que até ao século XVIII pertencia aos filósofos: pensar o mundo como um todo dinâmico. Contrariando a ciência tradicional, servida às fatias, em especialidades não comunicantes, os cientistas da Terra usam todos os meios poderosos hoje disponíveis, desde os supercomputadores aos modelos de circulação geral da atmosfera, analisando com rigor quantidades antes inimagináveis de dados do nosso planeta, tanto em tempo real como em séries históricas que podem recuar milhares e mesmo milhões de anos.

A tese central deste estudo é a de que o futuro próximo contém uma ameaça cada vez mais real, que pode comprometer a habitabilidade da Terra nos próximos séculos e milénios. Devido ao aumento descontrolado das emissões de gases de estufa, lançados para a atmosfera pelo nosso modelo de civilização, corremos o risco de que, mesmo que as metas do Acordo de Paris sejam alcançadas, a temperatura média da Terra aumente muito para além dos 2º C em relação ao período pré-industrial (cerca de 1850).

O planeta pode entrar numa rota desastrosa para a humanidade e a biosfera, que os autores designam como “Terra-Estufa” (Hothouse Earth). A novidade do estudo é tomar em consideração com mais rigor as chamadas “retroações (feedbacks) positivas”: são efeitos desencadeados pelas alterações climáticas, que, por sua vez, aumentam a intensidade das próprias alterações climáticas. Por exemplo, quando o gelo flutuante do Árctico se derrete, diminui dramaticamente o efeito de albedo (a radiação e o calor refletidos para o espaço exterior), aumentando o calor que é absorvido pelos mares… O mesmo acontece com o recuo das florestas, com o derretimento do permafrost, e muitos outros efeitos das alterações climáticas, que as agravam depois, podendo tombar-se num perigoso “efeito de cascata”…

Este relatório funda-se no conhecimento, mas destina-se a iluminar a ação. Confesso que, depois de tantos anos nas lutas pelo ambiente, sinto uma náusea misturada com revolta. Desde pelo menos 1988 que já sabíamos o suficiente para começar uma transição energética, que nos poderia ter livrado deste pesadelo que vamos deixar como herança aos nossos filhos e netos. Perdi a paciência para negociações em que se faz promessas baratas, traídas por vantagens medíocres.

As alterações climáticas não são “uma falha de mercado”, mas um crime contra a humanidade, cometido ao longo de décadas por grandes companhias e por sistemas políticos corruptos. Gente de carne e osso, que comprometeu o futuro da humanidade por 3000 anos, em troca de 30 anos de cupidez e ganância.

Não estou seguro de que evitaremos a catástrofe, mas espero que os responsáveis – sejam os despudorados, como Trump, ou os cínicos, como os que autorizaram o furo de Aljezur – não escapem sem castigo.

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