(Nicolau Santos, Expresso, 23/05/2015)
No final dos anos oitenta, princípio dos noventa, quando o país crescia a taxas surpreendentes para os dias de hoje, os dinheiros comunitários afluíam, fazíamos a Expo e construíamos o CCB, José Saramago ganhava o Prémio Nobel da Literatura, o país vencia a corrida para organizar o Euro-2004, vários atletas nacionais brilhavam no mundo, pela primeira vez liderávamos a União Europeia por um semestre e convergíamos com a Europa em PIB per capita , Cavaco Silva, então primeiro-ministro, não hesitou em falar no “novo homem português”. Parecia, realmente, que tínhamos o futuro à nossa frente e que não mais se abateriam crises sobre a nossa economia.
Infelizmente, era exagerada a nossa euforia. O crescimento assente sobretudo na construção de grandes obras públicas e na especulação imobiliária deixou-nos muitas das excelentes infraestruturas que ainda hoje temos, mas não transformou as nossas empresas em grandes competidores internacionais, levando-as antes a preferirem ganhar mais-valias acentuadas no mercado interno, onde o poder de compra subia a olhos vistos e o crédito bancário existia a rodos. E a democratização e massificação da educação, com a proliferação de universidades privadas, não mostrava resultados imediatos relativamente ao grande atraso que tínhamos para com a Europa nesta matéria.
Com Passos Coelho não se falou de “homem novo”. Mas na prática o que o primeiro-ministro tem tentado fazer é criar um novo tipo de portugueses, mais dispostos a aceitar os riscos da iniciativa privada, menos dependentes da asa protetora do Estado, mais confiantes na aposta nos mercados externos, menos piegas, em suma. O sucesso do processo de ajustamento assentava aliás nessa genial invenção do economista italiano Alberto Alesina da “austeridade expansionista”, cujo cálice a Comissão Europeia bebeu até ao último trago e segundo a qual fortes cortes na despesa e no investimento público podem conduzir à melhoria quase imediata do consumo e do investimento privados pela confiança que os agentes económicos privados ganham, já que menos despesa pública hoje significa menos impostos no futuro.
Do que nós precisamos mesmo não é do novo homem português, mas do novo empresário português.
Os dados do nosso ajustamento não provam a teoria de Alesina. Não só não houve investimento privado nacional, como o investimento direto estrangeiro que veio foi para comprar empresas públicas em processo de privatização e não para criar novas empresas, empregos qualificados e contribuir para melhorar o perfil da economia portuguesa. E assim o rápido regresso ao crescimento só se está a dar passados três anos do início da crise, a recessão acumulada aproxima-se dos 8% contra os 4% estimados inicialmente, o desemprego mantém-se elevado e a emigração de mais de 300 mil jovens altamente qualificados compromete a renovação geracional e o futuro do país.
A pergunta, contudo, é: poderia ter sido diferente se outras tivessem sido as políticas aplicadas? Seguramente algumas diferenças haveria neste ajustamento, que foi muito para lá do necessário e aceitável, porque o Governo aproveitou o memorando de entendimento para cumprir a sua agenda ideológica de transformação do contrato social e foi muito além do que tinha sido assinado com a troika.
A verdadeira questão, contudo, é outra: Portugal sempre teve uma elite rentista, que quando se afirmou foi normalmente à custa e à sombra dos dinheiros públicos. E este é o nosso drama e o drama do país.
Em recente entrevista ao Expresso, Vítor Bento assinala precisamente o facto de as nossas elites serem rentistas. Silva Lopes, na última entrevista que concedeu ao Expresso, sublinhava que muitos dos empresários tiravam demasiados dividendos das empresas, colocavam-nos no estrangeiro em segurança e obrigavam essas mesmas empresas a financiar-se junto da banca, dando origem a uma crónica subcapitalização do tecido produtivo português.
Mas é Luciano Amaral, no seu livro “Rica Vida — Crise e Salvação em 10 Momentos da História de Portugal”, que faz o retrato mais impiedoso do país e da sua elite. Na verdade, quando em vários momentos da nossa História, houve dinheiro com fartura, originário das especiarias da Índia, ou do ouro do Brasil, ou das remessas de emigrantes (e mais recentemente dos fundos comunitários), delapidámos esse dinheiro ou em obras faustosas mas improdutivas (o Convento de Mafra, por exemplo), ou em ostentação externa (como a embaixada carregada de ouro, pedrarias preciosas e animais exóticos que D. Manuel I enviou ao Papa), ou de outras maneiras que não serviram para elevar a economia portuguesa a um patamar sustentável de crescimento. A contrapartida deste triste fado é que sempre que estivemos à beira ou chegámos mesmo à bancarrota (e de 200 em 200 anos a sina tem-se repetido), quando o rei morreu ou a corte fugiu, sempre apareceu algo inesperado que acabou por nos salvar enquanto país independente e aquele que na Europa tem fronteiras fixadas há mais tempo.
Uma coisa é certa: olhando para os exemplos históricos que Luciano Amaral vai elencando no seu livro, aquilo que não muda mesmo é a mentalidade das nossas elites. O “novo homem português” não era afinal o que Cavaco Silva anunciou e não será provavelmente aquele que Passos Coelho quer moldar. O nosso problema central não está pois tanto nos trabalhadores (quando passam a fronteira a sua produtividade aumenta logo exponencialmente), mas no enquadramento jurídico-económico e na mentalidade dominante entre o nosso empresariado. A boa notícia é que há hoje cada vez mais empresários e gestores com outra mentalidade. A conferência ‘Portugal em Exame’, que decorreu esta semana em Braga, mostrou alguns deles: António Murta, da Pathena e ‘pai’ do Enabler, que agora aposta em várias startups; Carlos Oliveira, cara da Mobicomp, que vendeu à Microsoft e que lidera a InvestBraga; Mário Ferreira, CEO da Douro Azul, que inventou o turismo fluvial no Douro e prepara a captação dos turistas chineses com um fato à medida; José Teixeira, presidente do Grupo DST, que casa a atividade empresarial com preocupações culturais e a contribuição dos trabalhadores para desafiarem a gestão; António Ferreira, presidente do Hospital do São João, que está a revolucionar a gestão hospitalar e a preparar os negócios da saúde no futuro. São nomes ainda pouco conhecidos do grande público. Mas são eles a esperança de virmos a ter no futuro um tecido empresarial muito melhor. Com uma ressalva: não nasceram com a crise. Para que não se pense que foi a crise que criou novos e melhores empresários.
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta, ‘Segredo’, in “Minha Senhora de Mim”, editado em abril de 1971 pela Dom Quixote e apreendido pela PIDE/DGS em 3 de junho desse ano. A proprietária da editora, Snu Abecassis, foi advertida de que a editora seria encerrada se voltasse a publicar qualquer obra da poetisa.