Todas as histórias para crianças começam por era uma vez, como todas as cartas de amor são ridículas, assim dizia o poeta num provável dia de enfado e de absinto.
Era uma vez um coelhinho elegante e bem parecido, pêlo claro, num país longínquo, muito verde e muito mar à volta, no tempo em que os animais falavam.
Começou cedo a dar nas vistas entre os coelhinhos da sua geração, pelo jeito que tinha para sobressair nos grupos que se organizavam para distribuir a erva dos prados.
É que havia sempre uma disputa grande pelos caules e pelas folhas mais tenras. Mas como os animais falavam, assim também escreviam e faziam as leis que lhes permitiam repartir o repasto. Claro que, já nessa época, existiam alguns que comiam mais que os outros ou que se permitiam abocar as verduras mais mimosas.
E tanto se notou o seu jeito de fala e maneiras, e tanto porfiou em desafio aos coelhos mais velhos do seu grupo, e tanto que prometeu em relvas e melhores águas para todos, que num ano de grande desastre nos prados, lhe foi entregue a condução do destino das luras, sendo-lhe confiada a cenoura-mor, aquela que todos os coelhos ambicionavam.
Os anos passaram e vieram orvalhos, tufões e chuvas inclementes que fustigaram os prados.
Ele tinha prometido a abundância e já havia fome. Ele tinha prometido o sol e só o negrume se avistava. Ele tinha prometido o frescor das fontes de água límpida e só havia água acastanhada a escorrer entre os penhascos argilosos dos montes. Mas pior: nesses tempos de agrura ele mudara as falas e dizia aos mais descontentes que assim teria que ser porque tinham abusado nos manjares durante anos e que agora teriam o sofrimento e a fome como futuro. E que nessa escassez, nessa penúria, deveriam ser os coelhos mais velhos e indefesos os mais atingidos pela parcimónia.
E que nada mais podia fazer, e que era austero, e que era justo e que repartia com equidade o mal dos tempos dando o melhor aos que mais se devotavam às terras e aos prados. Já não tinha a fala das promessas, já não tinha o pêlo luzidio e primaveril de tempos idos, mas ainda lhe quedava a auréola de austero e persistente.
Mas eis que começou a circular no reino que ele, anos antes de ter chegado à cenoura-mor, tinha usufruído de pastos verdejantes pela calada da noite, sem ninguém saber, e sem ao reino ter prestado contas. E perguntado sobre tal, sempre foi dizendo não ter lembrança nem registo.
Levantou-se o reino, os coelhos mais velhos, os opiniosos de serviço, os revoltados, os coelhos artífices das leis, exigindo investigação cabal e falas claras. E assim foi, dia após dia, durante uma semana, até que ele veio e falou ao reino.
Que não tinha abusado do pasto. Que se visse a sua cintura, lisura e parcimónia consabida. Que só tinha manjado uns pequenos caules, uns pequenos ramos à sobremesa, salsas já amareladas e de pequeno préstimo. Nada que fosse o manjar diário e suculento a que um coelho do seu nível tem direito. Nada de ilegal, nada de abusivo. E como tanto tempo já tinha passado sobre os factos, nem o reino podia já investigar da quantidade nem da qualidade do pasto abocanhado à sorrelfa.
E foi aplaudido pelos seus pares. E foi questionado pelos seus émulos e críticos.
Velho país das maravilhas caído em desgraça. E se lá não morava o coelho branco morava pelo menos o coelho louro na toca do coelho, bem como rainhas de copas variadas, além de que havia quem murmurasse que ele estava a ser secretamente atacado pela quadrilha da lagosta, para que lhe retirassem a cenoura-mor.
Como todas as fábulas tem uma moral, esta não vai fugir à regra e vai tê-la em dobro:
No mundo há riqueza suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para alimentar a ganância de cada um. (Gandhi)
Quando apontares o dedo, lembra-te que há três dedos virados para ti. (Provérbio inglês)
Tenho cá para mim que foi oficialmente aberta a caça ao Coelho.