Treinadores de bancada no banco ou o programa incompleto da troika

(Luís Aguiar Conraria, in Expresso Diário, 24/02/2020)

Desde o Natal que planeio escrever este artigo. Tenho estado à espera que o Braga perca um jogo. Como está difícil, aproveito a derrota europeia com o Rangers por 3-2 na semana passada.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Foi em 23 de dezembro de 2019 que o Braga contratou Rúben Amorim como treinador da equipa principal de futebol masculino. Ou melhor, não contratou, mas contratou. Fez o mesmo que o Sporting já tinha feito quando contratou Silas. Contratou um homem que não cumpre os requisitos mínimos para ser treinador. Por isso, oficialmente, Rúben não é o treinador principal do Braga. Durante os jogos, nem se pode levantar do banco para dar instruções à equipa. Essa contratação gerou protestos, em especial por parte do sindicato dos treinadores.

Desde que Rúben foi contratado, o Braga ganhou duas vezes ao Porto, duas vezes ao Sporting e uma vez ao Benfica. Estava para aí em 6º lugar no campeonato e agora está em 3º e ganhou um título nacional, a Taça da Liga. Nada mal para um treinador sem qualificações para treinar uma equipa da 1ª liga.

Apesar deste notável currículo, que conta já com um título nacional — coisa que apenas uma pequena percentagem dos treinadores qualificados tem —, oficialmente Rúben não pode ser treinador principal, porque não fez todos os cursos necessários. Ora, isto é simplesmente ridículo.

Espero que Rúben Amorim e Silas sirvam de troika para os treinadores de futebol e que se acabe com o absurdo que é o Braga ter um treinador e fingir que tem outro

Sou professor, portanto ninguém me apanhará a dizer que a educação e formação não são importantes para o desenvolvimento pessoal e profissional. Mas, queiramos ou não, a formação deve ser uma escolha — e não uma obrigação legal. É perfeitamente aceitável que haja requisitos obrigatórios para se ser médico ou advogado. Dada a assimetria de informação entre quem presta o serviço e quem a ele recorre, seria demasiado arriscado assim não ser. Obviamente, se eu amanhã precisar de um médico numa cidade que não conheço, parto do princípio que os médicos que estiverem ao serviço numa clínica local cumprem os requisitos necessários, ou seja, estão certificados para exercerem a profissão e confiarei neles.

Na maioria das profissões, não é essa a regra. Dou aulas maioritariamente a alunos de Economia e de Gestão e as empresas quando querem economistas e gestores, regra geral, contratam pessoas com esta formação. Mas nada as obriga a isso. É, simplesmente, o mercado a funcionar. Se a formação dos treinadores tiver algum interesse, então, naturalmente, os clubes preferirão os treinadores com os graus adequados. Não são necessárias leis que o imponham. E, mesmo que a formação seja útil, haverá sempre exceções. Haverá sempre pessoas que chegam a cargos de gestão graças à capacidade demonstrada com a sua experiência. Se uma cadeia de supermercados se apercebe que um dos seus trabalhadores tem boas capacidades de organização e liderança e o quer promover a gestor de um supermercado e, mais tarde, até a cargos superiores de chefia, quem sou eu para dizer que não o pode fazer só porque não é licenciado em Economia ou Gestão?

Com os treinadores de futebol passa-se mais ou menos o mesmo. Não ponho minimamente em causa a utilidade da formação. Se daqui a um ano enfiar na cabeça que quero ser treinador, a primeira coisa que farei será inscrever-me num curso de treinadores. E, na verdade, o sucesso dos treinadores portugueses pelo mundo fora parece confirmar a utilidade da formação que recebem em Portugal. Mas, quando o Braga contratou o Rúben Amorim, os seus dirigentes já o conheciam perfeitamente, pois era treinador da equipa B. Quando o Sporting contratou Silas, as capacidades deste já eram de todos conhecidas: tinha sido o treinador principal do Belenenses durante duas épocas. Aliás, isto é tão surreal que, apesar de não cumprir os requisitos legais para ser treinador, houve um mês em que recebeu o prémio de melhor treinador da Liga. Situações semelhantes aconteceram também a Paulo Bento e a José Mourinho, que também começaram a carreira como treinadores principais sem cumprirem os requisitos mínimos.

Mas, mesmo que eu não tivesse razão e que, de facto, os cursos de treinador fossem absolutamente essenciais para se poder ser um bom profissional do banco, ainda assim os requisitos não fariam qualquer sentido. Por uma razão simples. Quem paga a Rúben Amorim é o Braga. Se o tipo for um péssimo treinador, será um problema do Braga e de mais ninguém. Na verdade, para as outras equipas até é bom, dado que assim terão menos dificuldades em somar pontos contra o Braga.

Percebo perfeitamente o sindicato dos treinadores. A lei da procura e da oferta explica na perfeição a criação de obstáculos no acesso a algumas profissões. Quanto menos pessoas qualificadas houver, maiores serão os salários das que já estão instaladas. É por isso que é tão difícil aceder a tantas profissões. Neste caso, com a formação obrigatória (que impedirá Rúben Amorim e Silas de serem oficialmente treinadores principais durante uns bons anos), não só adiam a concorrência dos treinadores novos, como multiplicam os empregos dos mais velhos, precisamente a darem formação.

Nada disto é novo. Também existe uma Ordem dos Economistas que se esforça por fazer o mesmo com economistas e gestores. De acordo com os primeiros estatutos da Ordem, só os inscritos nela é que, supostamente, podiam exercer a profissão. Felizmente, ninguém levava isto a sério e nenhuma empresa exigia a inscrição na Ordem dos Economistas para contratar quem quer que fosse.

Durante o programa de ajustamento, a troika, preocupada com a falta de concorrência que havia em Portugal, impôs que se liberalizasse o acesso a várias profissões. Foi dos pontos do memorando de entendimento em que mais ficou por concretizar. A Ordem dos Economistas foi das poucas que mudaram os estatutos, tornando facultativa a inscrição na ordem para exercer a profissão. Foi das poucas provavelmente porque também era das únicas que nunca tinha conseguido impor a sua agenda. (Mesmo assim, apesar de ser licenciado, mestre, doutor e agregado em Economia, além de professor de Economia, não me posso autodesignar como economista, dado que não estou inscrito na Ordem.)

Espero que Rúben Amorim e Silas sirvam de troika para os treinadores de futebol e que se acabe com o absurdo que é o Braga ter um treinador e fingir que tem outro.

Professor de Economia na Universidade do Minho