Manchester e o Legionário

(Carlos Matos Gomes, in Facebook, 16/11/2022)

A anedota é velha: no salazarismo um rústico legionário apresentou-se a exame da 4ªclasse para obter um emprego. Bastava uma farsa de exame. Pergunta o professor: Quem descobriu o Brasil. Resposta: Salazar! Desânimo do professor: O doutor Salazar descobriu muitas coisas, mas não o Brasil. Mas vamos à pergunta seguinte: Quem escreveu Os Lusíadas? Resposta pronta: Salazar. Comentário entristecido, o doutor Salazar escreveu obras maravilhosas, mas não escreveu os Lusíadas. Mas vou fazer-lhe uma pergunta a que com certeza responderá bem: Quem foi o primeiro rei de Portugal? Resposta do legionário: Salazar! Comentário desalentado do professor: Infelizmente não foi. Eu terei que o reprovar. Resposta do legionário: Com que então comunistas! (e sai)

Hoje fala-se de Manchester e sai a resposta do legionário: Ronaldo! Eu sei pouco da vida do futebolista Ronaldo e ainda menos dos vários jogadores de futebol que ganham a vida em Manchester. Mas para mim nem Manchester é o Estado Novo do bronco legionário, nem o Ronaldo é o Salazar que descobriu Manchester, que criou Manchester. Por razões pessoais conheço Manchester antes do empresário de futebol Jorge Mendes lá ter chegado, antes do futebolista Ronaldo e dos seus colegas de profissão. Quando me falam de Manchester não grito Ronaldo, como o legionário gritava Salazar. Sou do contra.

Por acaso escrevo no Porto e gostava de partilhar o facto de Manchester ter uma fortíssima e antiga relação com Portugal, e com o norte do país, que não foi construída ao pontapé nem à cabeçada, nem num estádio com milionários de calções e penteados com rendas de bilros.

Manchester é um dos berços da Revolução Industrial inglesa e da indústria têxtil a partir do século XVII, curiosamente desenvolvida por colonos flamengos com ligações às feitorias portuguesas. As fábricas de algodão, que substituíram as de lanifícios, foram ali fundadas por volta de 1820, e servirão de modelo à indústria têxtil que se instalará em Portugal no vale do rio Ave, com centro em Guimarães, através de engenheiros e empresários ingleses. Manchester adquiriu o apelido de Cottonopolis, com a utilização das Spinning Jenny, as máquinas a vapor fabricadas em Manchester e que viriam para Portugal, para o Vale do Ave, Covilhã e Tomar e permitiram a industrialização da fiação e tecelagem de pano. Manchester desenvolveu-se como o centro de distribuição de algodão cru e fios da nascente indústria têxtil. Dali partiram para várias partes da Europa e da América os técnicos e os empresários da indústria têxtil, entre eles os que vieram para Portugal.

O rápido crescimento de Manchester levou Benjamin Disraeli, que seria um dos mais importantes primeiros-ministros da era vitoriana, a afirmar: “O que Manchester faz hoje, o resto do mundo faz amanhã.”

Manchester é muito mais do que dois estádios de futebol e do que futebolistas. Seria para mim uma agradável surpresa que alguém nas televisões transmitisse uma reportagem sobre Manchester, o radicalismo político que esteve sempre presente na história da cidade, a sua abertura à inovação tecnológica – um dos cientistas do átomo, John Dalton, foi investigador em Manchester.

Mas há a bola (o dinheiro da bola) que tudo cala… é claro. E até cala a violência étnica e religiosa do Catar. Dos futebolistas nacionais ou estrangeiros de Manchester nem uma palavra. Há os patrocínios. Pois claro. Mas Manchester é mais do que artistas de relvas e bola. Acreditem. E o senhor de óculos é John Dalton, cientista de Manchester e não joga à bola.

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2 pensamentos sobre “Manchester e o Legionário

  1. Muito oportuna esta intervenção de Carlos Matos Gomes. Há mais Manchester para o público conhecer que aquilo que a TV apresenta, centrada em episódios da vida desafogada de um jogador de futebol. Esse conhecimento, que CMG nos trouxe agora, é mais relevante para o domínio público e merece toda a divulgação.

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