Kaputt

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 10/04/2022)

(Começo por dar os meus rasgados elogios ao Carlos Matos Gomes. Pelas lúcidas análises que tem produzido sobre a guerra na Ucrânia e que aqui temos publicado. Ainda há quem consiga sair do Matrix em que está transformado o espaço da opinião pública e publicada. A turba quer calar as vozes que discordam da narrativa dominante. A fé inquisitorial quer queimar os heterodoxos. Bem haja, Carlos Matos Gomes.

Estátua de Sal, 09/04/2022)


Kaputt é uma palavra alemã que significa acabado, destroçado. Kaputt foi o título escolhido por Curzio Malaparte, o pseudónimo de um italiano filho de uma italiana e de um alemão, para uma das suas obras. Nela o jornalista escritor descreve a sua passagem pelos campos de batalha da II Guerra Mundial e transmite o estado geral de uma Europa em guerra e em ruínas materiais e de valores.

Porque julgo estarem os dirigentes europeus a chamar por uma terceira, interessei-me por revisitar essa memória escrita das atrocidades então cometidas.

Parece-me que os dirigentes europeus e uma parte significativa dos que aqui vivem esqueceram ou ignoram, ou desprezam esses horrores e estão esgazeados e eufóricos a promover a sua repetição. Entendo que devemos lembrar esse período em que a Europa também passava por uma crise de enormes proporções.

O livro Kaputt expressa, entre várias abordagens, uma forma de relatar um conflito. Como é apresentado um conflito aos leitores, aos espetadores, aos cidadãos?

Ao contrário da abordagem dos atuais repórteres, centrados na criação de emoções e engajados numa dada catequização, em Kaputt não encontramos uma descrição exaustiva dos acontecimentos bélicos, o que hoje um vulgar videojogo faz com mais realismo do que uma reportagem.

Mais do que dar a conhecer o campo de batalha, o cenário, Curzio Malaparte tem como principal propósito dar a conhecer o comportamento dos envolvidos direta ou indiretamente no conflito, políticos, militares, prisioneiros, as suas motivações, o que se encontra a montante das paisagens devastadas e dos rostos dos sofredores.

Em Kaputt o campo de batalha funcionava como um tabuleiro de xadrez onde as peças se movimentavam. Eram esses movimentos que interessavam a Malaparte perceber e transmitir e não o de provocar adesões a uma narrativa. Nas narrativas de hoje, nas televisões, o campo de batalha é apresentado como um gerador de reações descontextualizadas: Vítimas e carrascos. Bons e Maus.

Curzio Malaparte abre a obra contextualizando-a no espaço e no tempo. Em 1941, quando se iniciou a ofensiva alemã contra as tropas ucranianas, Malaparte foi enviado para a frente ucraniana como correspondente de guerra do jornal italiano Corriere della Sera. É neste ambiente que Curzio Malaparte vai iniciar a escrita de Il Volga nasce in Europa. Hoje os manipuladores falsificam a geografia: a Ucrânia é Europa, a Rússia não!

Nas palavras da escritora canadiana Margareth Atwood, Kaputt trás à superfície “manifestações de fanatismo ideológico, racismo e de ódio à vida. Valores distorcidos, mascarados de pureza espiritual nos seus aspetos mais íntimos e vergonhosos.”

Hoje a guerra está de novo na mesma região da Europa, com os seus atores praticando as mesmas atrocidades, numa disputa por espaço e poder económico e apresentando o fanatismo ideológico, o racismo como valores defensáveis, porque são os dos “nossos servos”, os do regime de Zelenski.

O que está a acontecer na Ucrânia já não é, se alguma vez foi, uma guerra entre russos e ucranianos, como pretendem os manipuladores de opiniões que nós, os clientes da sua informação, acreditemos, mas um confronto maior entre a Grande Rússia e a aliança EUA/NATO .

Infelizmente, em minha opinião, não existe hoje nenhum escritor ou jornalista ocidental que ouse sair das verdades oficiais: uma invasão da pacífica Ucrânia, súbita, sem causa nem razão da Rússia e a defesa tenaz de um regime democrático, de liberdade e respeito pelos direitos humanos chefiado pelo heroico Zelenski!

Não haverá um Curzio Malaparte que escreva um Kaputt desta guerra para expor as raízes do Mal.

Hoje Curzio Malaparte seria acusado hoje de comunista, agente da KGB e, no mínimo, de contaminado pelas ideias de Marx e Lenin. Seria nazi, putinista, ou comunista. Palavras vazias hoje usadas para desqualificar quem não defenda que a Ucrânia de Zelenski deve ser livre de servir de base nuclear contra a Rússia, de eliminar as minorias russas e de os seus oligarcas substituírem os oligarcas russos e fazerem os negócios com os oligarcas americanos.

Acreditei que relendo Kaputt poderia compreender o intencional caos que foi promovido no Leste europeu, apesar de o mundo ser outro. Análises e diatribes proliferam nas redes sociais, alimentadas pela volumosa e desproporcional cobertura dos jornais e Tvs, que ampliam e distorcem os fatos de acordo com a verdade oficial. Sabemos que a primeira-dama Olena Zelenska ofereceu um chá a Ursula Van Den Leyen após esta ter visitado os massacres de Bucha., mas não sabemos quem provocou o massacre de Bucha, nem se ele ocorreu, nem em que circunstâncias.

A cobertura dos jornalistas de hoje, funcionários das máquinas de produção ideológica, tornou-se cansativamente alarmista, provinciana e tendenciosa. Tudo são «Breaking News». Em Portugal recebemos formatação da CNN de Queluz e da Sky News de Paço de Arcos. Os novos Curzio Malaparte indígenas são o Milhazes e o Rogeiro, o Portas, uns e umas doutorados/as avulso!

A informação é naturalmente tendenciosa, dentro do padrão estabelecido desde a guerra fria que dividiu o planeta numa parte ocidental, cristã e democrática, agora com a cooptação da Ucrânia e numa parte oriental, formada por países comunistas, ateus e ditatoriais, onde se encontra a Rússia, e China. Bons e Maus.

Em Kaputt há o desfile de um verdadeiro museu de horrores, mas Curzio Malaparte não só testemunhou os escombros e os destroços, “com nuvens de moscas gordas e preguiçosas, de asas douradas, zunindo sobre cadáveres e ruínas”, ele seguiu os tanques através da Polônia, Romênia, Finlândia, Alemanha, a antiga Iugoslávia, Rússia e Ucrânia e assistiu às execuções. Estas não lhe foram apresentadas com os mortos já prontos a serem fotografados.

Quando Malaparte se encontrava na Ucrânia assistiu a uma execução de prisioneiros pelos soldados alemães. Descreveu-a: «Quando os Judeus começaram a rarear, começaram a enforcar os camponeses. Penduravam-nos pelo pescoço ou pelos pés nos ramos das árvores, nas pracetas das aldeias, em redor do pedestal vazio onde, alguns dias antes, se elevava a estátua de gesso de Lenine ou de Estaline, penduravam-nos ao lado dos corpos dos judeus desbotados pela chuva, os quais oscilavam no céu negro há dias e dias, perto dos cães dos judeus pendurados no mesmo ramo dos donos. — Ah, cães judeus! Die judischen Hunde! — diziam, ao passar, os soldados alemães.» (p.255)

«Em seguida voltou-se para o grupo da direita, o dos aprovados, olhando para os camaradas com ar trocista, voltou a contá-los rapidamente, disse “trinta e um”, fez sinal com a mão ao pelotão de SS que esperava ao fundo do pátio e depois ordenou: — Meia volta, em frente, marche! — Os prisioneiros deram meia volta e puseram-se em marcha batendo com os pés na lama: quando ficaram de face voltada para o muro de vedação do pátio, o Feldwebel ordenou: — Halt! — E, voltando-se para os SS, mandou: Fogo!»

A atmosfera carregada de atrocidades, sangue e morte acompanha passo a passo o leitor. Diferente do que ocorre hoje nas ruas das cidades ucranianas invadidas pelos russos, onde os dirigentes ucranianos, após as retiradas, servem os massacres já prontos a serem filmados aos jornalistas amigos.

Curzio Malaparte transitou entre as tropas germânicas e russas, cobriu batalhas, frequentou salões burgueses onde oficiais nazis, diplomatas e altos funcionários se embebedavam juntos com colaboracionistas, na comemoração das suas vitórias. Passou por cidades e vilas arrasadas, presenciou a fome, o terror e a degradação da população. O seu biógrafo definiu-o como um “anarquista de direita, ou anarco-fascista”. Podia ser qualquer coisa, menos um homem de esquerda, mas deixou a lição da dúvida sobre as realidades montadas na guerra e não se resignou a ser um mero propagandista de uma das partes.

Esta guerra não terá como memória o seu Kaputt. Talvez um videojogo com a vitória garantida do vendedor da consola.


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9 pensamentos sobre “Kaputt

  1. „Infelizmente, em minha opinião, não existe hoje nenhum escritor ou jornalista ocidental que ouse sair das verdades oficiais: (…)“
    Existe, existe, CMG!
    É uma ninharia extravagante este meu comentário, porque no essencial estou profundamente de acordo com o autor.
    O que temos pela frente é a total monopolização (cativação/capturação) da comunicação social, televisões, rádio, imprensa, internet, redes sociais, pelos interesses económicos e políticos dominantes. Qualquer jornalista ou escritor que tenha uma opinião diferente ou apenas divirja da opinião oficial instalada é ignorado, banido, excomungado, insultado, pelos zelosos missionários do catecismo oficial dominante. A sensação que fica é da sua não-existência. Não é verdade, foram banidos.
    Qualquer ideia para ser entendida precisa de forma, um framing, um quadro que a torna inteligível. As televisões com as suas imagens em movimento, contendo muitos elementos imperceptíveis e manipuladores, às quais se deve acrescentar o discurso oral „orientador“, são o medium por excelência para cativar as consciências.
    Muitos dos comentários „estranhos“ feitos neste blog revelam esse estado de aprisionamento mental, da incapacidade de pensar fora da matrix que foi activamente imposta à passividade mental dos seus autores. O tema daria pano para mangas, fico por aqui.

  2. Com a devida vénia ao blogue A bem da Nação:

    “Todos os argumentos históricos que poderiam ter assistido a Putin em relação à Ucrânia, ruíram ao som dos estrondos provocados pelas bombas lançadas sobre civis, nomeadamente sobre creches, escolas, hospitais e prédios de habitação.
    A Nação Russa tem que agradecer a Putin este «lindo serviço» de transformação de alguns créditos em pesadíssimos débitos que, estes sim, serão o novo timbre histórico russo. Só um povo apavorado não reage contra tão grave prejuízo que um tirano lhe causa e só maciças lavagens cerebrais justificam tal tipo de acções por militares que se comportam como bandidos.
    Curiosamente, Wilhelm Joachim von Ribbentrop faria anos hoje, 10 de Abril (nasceu em 1883) mas a longevidade parou-o em Outubro de 1946 quando uma forca o encontrou em Nuremberga.
    Bem sei que a História não se repete necessariamente mas a lógica aristotélica sugere que causas semelhantes provocam efeitos parecidos. Eis por que daqui sugiro a Sergei Labrov que vá tomando cautelas e caldos de galinha. E se, em desespero, o seu patrão e amigo carregar no botão da morte geral, nem o coro do Bolshoi terá ocasião para abrir vagas para os naipes de barítonos ou de baixos.
    Talvez se aproxime a hora de Königsberg retornar ao que hoje mais semelhante existe com a Liga Hanseática, a União Europeia.
    Aqui, no terminal ferroviário oposto ao de Vladivistok, temos um ditado que diz «quem tudo quer, tudo perde».
    E, como tudo pode a qualquer momento mudar por completo, este texto vai datado.
    Enquanto houver datas, 10 de Abril de 2022”

    (publicado no blogue A bem da Nação)

    • Uma pivot de uma estação de televisão no noticiário das 20h lê o teletexto:
      ” Putin deu ordens expressas aos militares para atirarem sobre civis, sejam eles mulheres ou crianças”…

      Mas não era esta a mesma comunicação social, que muitos se queixavam há quatro meses atrás durante a Campanha para as Legislativas ??? Mudou alguma coisa ???

      Na I guerra mundial perguntaram a John Reed o que pensava ele das partes beligerantes e das suas causas. Respondeu : PROFITS !!!!

  3. Aos detractores de Carlos Matos Gomes:
    Ainda bem e sorte de quem tem um pensamento lúcido ter um escritor como Carlos Matos Gomes. Tudo o que escreve é fruto da sabedoria e experiência que a vida de militar lhe ensinou. É no dia a dia da vida que se faz luz na mente das pessoas.
    Carlos Matos Gomes não tinha necessidade de tomar partido por este ou aquele acontecimento. Certamente passou uma vida de contrariedades porque quando se está ao leme seja do que for causa inveja e ódio nas mentes mais retrógradas. Para que precisava de meter a foice em seara alheia.
    Precisar… precisa. E isso só acontece aos que tem a liberdade de pensamento. Denunciar a mentira que se apregoa. E em tempo de guerra a primeira vítima é a verdade.
    Há aqueles que não tem coluna vertebral. Dobram-se a qualquer caso. Andam ao sabor das ondas. Nem rochas são para deter as ondas. São areia que se sujeita a ser espezinhada pelas ondas do mar.
    Pessoas assim abundam nas redes sociais. São como o dito religioso: “vagueiam pelo mundo para perdição das almas”.

  4. Sr. Manuel Pacheco
    Infelizmente hoje pensar pela nossa cabeça e ter pensamento critico, logo somos criminosos ,ou entao somos comunistas, que para eles é a mesma coisa.
    Eu já só sigo este blog porque só aqui podemos ler artigos de pessoas que sabem do que estão a falar e têm coragem para o fazer. Aqui ainda não há o “lápis azul”do antigamente.
    Maria Alves

  5. Faz muito bem Manuel Pacheco em falar dos que mostram não ter coluna vertebral, postos à prova por esta guerra criminosa. Boa parte dessa gente premeia com a mais indigna das complacências o imperialismo de putin e a sua guerra de agressão.

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