(Carlos Coutinho, in Facebook, 22/08/2021)

Por causa do feitio picuinhas que o meu pai tinha no uso das palavras, acabei por cair no mesmo vício. Com uma agravante – eu colecionava-as num caderno escolar, com o respetivo significado local, se era um acrescento à semântica vulgar.
É o caso dos fanicos, por exemplo, que esta manhã me fez consultar dicionários e enciclopédias. E porquê? Porque um fulano que eu já não via há anos estava no café com a filha a quem, a certa altura, disse:
– Parece que a doidivanas da Etelvina anda ao fanico. Lembras-te dela? Era nossa vizinha.
– Que horror, pai!
Com a minha pesquisa fiquei a saber depois que este étimo mal afamado é de “origem obscura” e que “andar ao fanico” tanto pode significar “fazer biscates” como “prostituir-se”. No caso da Etelvina, não cheguei a apurar qual é o significado aplicado, mas desconfio. Fiquei, entretanto, a saber que “ficar em fanicos” tanto pode ser “ficar em pedacinhos” como “arrasado”.
Lembro-me de, na minha infância, ser frequente ouvir dizer que algo “ficou em fanicos”, ou que alguém “pôs a coisa em fanicos”, sei lá… Mas o que era habitual, na boca de qualquer pessoa condoída, era diagnosticar: “Deu-lhe o fanico” Ou seja, a pessoa em causa desmaiou.
Até na tropa, quando eu andava por Nampula, um capitão que estava no Café Portugal, na mesa ao lado da minha, gabou-se para o parceiro:
– Ao chegarmos à base, os turras já se tinham pirado. Não deu tempo para pormos tudo a arder, porque eles estavam de certeza a montar-nos emboscadas, mas fizemos em fanicos o que pudesse vir a ser aproveitado por eles.”
Guardei também outras frases dos nossos rambos e desta não me lembro de alguma vez me ter servido. Apareceu-me há pouco, ao revolver papéis antigos, e vejo agora que me deu mesmo jeito, para compor este apontamento.
Ligo a televisão e percebo que sou muito mais resiliente ao impacte de certas notícias. Não me dá o fanico, por exemplo, ao ver o que se passa, nem em Castro Marim, nem no resto do planeta, com vastíssimos incêndios imparáveis há mais de um mês, por meio mundo fora – lá longe, na Califórnia e na Sibéria, e, aqui bem perto, na Espanha, na França, na Itália, na Argélia, na Grécia e na Turquia, onde a morte não se contenta com o fogo, visto que também investe em chuvas catastróficas, como acaba de fazer na Alemanha, Dinamarca e Países Baixos.
E, desgraçadamente, está a fazer no Haiti, onde a depressão tropical “Grace” já acrescentou um número ainda indeterminado de mortos e feridos aos mais de 2 200 mil cadáveres deixados entre os escombros pelo terramoto da semana passada.
Já que não me dá um compreensível fanico, ao perceber tudo isto, ao menos digam-me por favor, srs. teólogos, a que deuses devo apresentar o meu veemente protesto.