A trupe e as tropas

(António Guerreiro, in Público, 20/08/2021)

As imagens, difundidas pelo canal de televisão Al Jazeera e depois reproduzidas em todos os media ocidentais, dos talibãs a ocupar o palácio presidencial são inquietantes. A mais inquietante de todas é a dos guerrilheiros, armados, dispostos à volta da secretária de trabalho na sala do presidente, para serem filmados em grupo. Essas imagens, ainda antes de serem inquietantes, são terríveis e dolorosas por aquilo que contam de uma triste e inútil história de guerra e violência, e por aquilo que prenunciam. É, aliás, deste ponto de vista imediato de reportagem que elas têm sido “lidas”. Mas, para além do seu sentido imediato de reportagem – justo e inevitável – elas têm uma densidade iconológica que reside noutro estrato. E é esse estrato que é inquietante.

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Uso a palavra “inquietante” pensando no uso que dela faz o cineasta e escritor alemão Alexander Kluge (cujo segundo volume da sua monumental Crónica dos Sentimentos acabou de ser editada por BCF Editores, tradução de João Barrento, enquanto decorre na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação Serralves, a exposição Alexander Kluge, a Utopia do Cinema). Evidentemente, no original alemão a palavra é outra e até evoca um importante conceito freudiano: Unheimlichkeit. Sendo, porém, intraduzível (pelo menos, nas línguas latinas; em inglês, a palavra uncanny tornou-se a tradução fixada), o tradutor francês recorreu a um neologismo que teve a aprovação entusiástica de Kluge: inquiétance. Em português, o neologismo também funcionaria bem: “inquietância”. Kluge usa-a para falar da “inquietância do tempo”, isto é, do desconforto e estranha familiaridade que as imagens, as narrativas e os arquivos do passado provocam em nós, fazendo-nos cair para fora da realidade e trazendo o passado doloroso ou mesmo traumático para o nosso tempo contemporâneo. Mostrando-nos assim a infernal dialéctica que são os fluxos e refluxos da história. Toda a obra de Kluge (literária e cinematográfica) é uma grandiosa elaboração da sua concepção da história baseada na ideia de que estamos sempre imersos em universos paralelos.

As imagens dos talibãs na sala presidencial, em Cabul, têm esse poder de “inquietância do tempo” porque estão carregadas de anacronia. Se não fossem as armas, não conseguiríamos dizer a que tempo pertencem. Aqueles homens, nos seus gestos, nas suas manifestações vitoriosas, na sua indumentária e aspecto físico, remetem para uma outra história que está fora do nosso tempo. E isso é acentuado por um quadro, atrás deles, que decora uma parede da sala: podemos facilmente perceber que o quadro representa uma cena histórica, faz lembrar o kitsch neo-clássico. Ora, os ocupantes da sala presidencial parecem ter saltado do quadro, onde tinham estado congelados, e adquirido vida no mundo pragmático que, de certo modo, imita algumas convenções da representação épica. Aos nossos olhos, ocidentais, viciados noutras simbolizações e representações, toda esta coreografia faz lembrar mais uma trupe do que uma tropa. A nossa iconografia militarista (e, através do cinema e da televisão, é a americana que se impõe imediatamente) não utiliza as mesmas estratégias visuais. Errado seria transpormos para aqui o nosso treino estético: não se trata de uma estetização, a não ser que consideremos que a política é sempre estética, no seu princípio. De resto, quem assim se oferece em imagens reais que imitam e confinam com representações pictóricas é religiosamente iconófobo e ideologicamente iconoclasta. A iconoclastia dos outros tem sempre óptimas potencialidades iconófilas, para nós.

Estas imagens que nos fazem sentir a inquietância do tempo podiam entrar em montagens dos curtos filmes de Alexander Kluge, podiam ser a matéria das suas micro-narrativas que condensam romances como Guerra e Paz. Ou podiam talvez entrar um livro da memória visual da guerra, que Brecht publicou em 1955, intitulado Kriegsfibel, ou seja, Abecedário da Guerra. Um livro que foi, para Brecht, o que os desastres da guerra foram para Goya.

É isto a inquietância do tempo com que fomos agora mais uma vez confrontados pelas imagens dos talibãs no palácio presidencial, em Cabul: a desordem do mundo atravessa o tempo e regressa sempre da mesma maneira. De repente, nós, educados na religião do progresso e do secularismo, somos assediados por um fundo arcaico que sobrevive como uma energia sempre pronta a reactivar-se.



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5 pensamentos sobre “A trupe e as tropas

  1. As imagens. As eternas imagens. Nada mais superficial e com tanta profundidade de toque (touch/Berührung). Nada mais volátil e com tanta força manipulativa. Goebbels e o cinema. América e Hollywood. Diz-me quem são os donos das imagens e dir-te-ei o que fazem de ti. Fonte de inquietude, de Unheimlichkeit.
    Mesmo assim: Perturbadora não é a imagem dos taliban – as roupas e as barbas, caramba! – à volta de uma mesa no palácio presidencial. Perturbador é saber – vale mais que imagens – o americano dono do aeroporto de Cabul. A espumar de raiva mas “quedinho”, bonito menino. Se não é Nossa Senhora a segurá-lo pela coleira, então só podem ser os sussurros discretos do russo sisudo e do chinês taoista. A força das imagens está dentro de nós.

  2. Anacronia? Poupe-nos. A fotografia ilustra a consecução (parcial) dos objectivos militares dos USA em relação a adversários que sabem não poder vencer por razões políticas internas e externas: o de os fazer regredir à Idade da Pedra. Não tiveram sucesso no caso do Vietnam, estão a consegui-lo agora no Afeganistão em relação a antigos aliados, então românticos heróis da CNN e de Hollywood, depois transformados em inimigos. Para o meu limitado alemão, fico-me pelo zeitgeist…

  3. Portanto, uns barbudos anacrónicos e de turbante, vindos da idade das trevas ou dum universo paralelo ou saídos dum quadro neo-clássico, não se sabe bem, fazem debandar o mais sofisticado exército do mundo com toda a sua tecnologia bélica e o seu progresso e secularismo. É o que mostram principalmente as imagens e não se percebe como tal valor icónico escapou ao António Guerreiro – ou estava distraído a ler os editoriais do director do Público ou a progressista e secular língua alemã não tem vocabulário para explicar uma coisa destas.

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