O passado é para contar?

(José Gameiro, in Expresso, 06/08/2021)

José Gameiro

Começou com uma acusação. Genérica, mas que tinha o objetivo de me pôr em sentido. “A culpa é vossa, que passam a vida a aconselhar que os casais devem dizer tudo um ao outro. Olhe, eu lixei-me com essa história.” Apesar de não ter enfiado o barrete, decidi não responder e deixar seguir a conversa. “Não sou nenhum santo, mas não fiz nada do que ela me acusa, a minha vida está um inferno, já não sei o que lhe devo dizer. Sabe como é, andei muitos anos no engate, conheci mulheres lindas, fiz sexo quando quis, mas não me prendia.

Um dia conheci-a. Por acaso, como quase sempre, mas tive aquela sensação de que ia ser diferente. Sabe como é?” Já estava farto de saber como é, continuei calado. “Fomos para a cama, pouco tempo depois de nos conhecermos, e aconteceu-me uma coisa que nunca me tinha acontecido. Falhei. E não me faltava vontade, mas não consegui. Com medo de ficar mal visto, inventei a desculpa de que andava a fazer uma medicação, porque me tinha lesionado no ginásio. Mais tarde — as mulheres são muito mais vivas que nós — disse-me que tinha percebido que era treta.”

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Afundei-me mais no sofá, pronto a ouvir mais desgraças do macho lusitano, mas, como vão ver, o homem foi capaz de aprender com a ‘nega’. “Na altura falei com um amigo, que me ajudou. Disse-me para não me preocupar, que eu não estava num campeonato e que a falha devia ter um significado positivo. Tinha razão, porque estou com ela há sete anos. Parece que pode acontecer quando sentimos, inconscientemente, que é uma pessoa que vai ser importante na nossa vida.” Nunca tinha ouvido esta teoria, mas como foi inconsciente não me pude pronunciar. “A nossa história foi continuando e teve aquela fase de descoberta um do outro. Sabe como é? ‘Temos de contar tudo do nosso passado.’ Eu ainda resisti, mas ela dizia-me que o verdadeiro amor era dizer tudo um ao outro. Hoje percebo que não tinha nenhuma experiência disso a que chamam o amor, mas como gostava e gosto muito dela abri-me todo. Nunca me fez uma crítica, nunca me disse que era um colecionador de mulheres, até se ria das histórias mais picantes…”

Perguntei, com uma falsa ingenuidade: “E a sua mulher também lhe contou tudo?” “Acho que sim, mas não devia ter muito para contar, até eu aparecer a vida amorosa dela foi parca.” Tive de conter o meu pensamento masculino para não fazer nenhum comentário sobre as versões femininas das suas vidas afetivo-eróticas. Afinal, é suposto que o psiquiatra não tenha género… “Tudo se complicou quando mudei de trabalho e passei a ter de estar algumas noites fora de casa. Acredite que para mim nada mudou, gosto do que faço, mas estou sempre desejoso de voltar. Só agora percebi que ela torceu o nariz quando a proposta me foi apresentada, ‘vais-te cansar’, ‘vê bem se é o melhor para ti’… Mas os euros devem ter falado mais alto, sabe como são as mulheres, mais um trapo, mais um jantar num bom restaurante, daqueles em que se come mal e pouco mas estão na moda e podem contar às amigas.”

O homem insistia em falar comigo de homem para homem, não sabia que estava a bater à porta errada, nisto dos casais sou muito mais feminino do que masculino. “Começou a fazer-me a vida negra: ‘Com quem estiveste?’, ‘Aquela tua amiguinha com quem dormias antes de mim foi ter contigo?’, ‘Pensas que não sei que um homem uma vez engatatão será sempre um bardino?’, ‘Chegas a casa sempre muito cansado e dás-me negas’… Até passou a ser brejeira. ‘Deves vir com os saquinhos vazios.’ Um inferno. Mas ainda não lhe contei tudo, até tenho vergonha.”

Pensei: será que vou ouvir alguma coisa sobre as “boas práticas do ciúme” que ainda não tenha ouvido? Confesso que fiquei entusiasmado. “Obrigou-me a ter sempre a câmara do telemóvel ligada e a permitir que ela saiba sempre a minha localização. Não aguento, é a minha dignidade que está em causa. O que é que eu faço?” Pensei em recomendar-lhe aquelas empresas que vendem imagens falsas para pôr no telemóvel e também mudam a localização para onde quisermos, mas não era suposto… Acho que não gostou da minha resposta: “Olhe, aguente, que é serviço, e para a próxima não conte tudo.”


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