Acaso e necessidade

(Carlos Coutinho, in Facebook, 30/07/2021)

Quando há fome, não há pão mal feito. Ouvi este adágio centenas de vezes ao longo da vida e ainda não encontrei melhor resposta ao velho conflito dialético entre o acaso e a necessidade.

Trazendo o problema para um terreno mais ao meu alcance, imaginemos a questão presente dos Costas e das respetivas implicações nas nossas vidas. Se os gâmetas bem sucedidos de Orlando da Costa e de Maria Antónia Palla tivessem uma segunda edição, em vez de ter havido dois diferentes progenitores na banda feminina, ambos os nascituros eram da estirpe António e nenhum andava por aí com idiossincrasia ricardiana.

O acaso deu-nos o mal menor, como antes a necessidade nos havia fornecido o Orlando.

Ou, então, imaginemos Portugal antes da Batalha de S. Mamede. A mãe do nosso primeiro Afonso teria aberto um processo de fim imprevisível com um conde galego ao leme. E Portugal seria hoje outra coisa ou simplesmente não existiria sequer.

Confesso que não sei se, nisto, o acaso nos foi favorável, mas de uma coisa eu não tenho a menor dúvida: foi do acaso que nasceu Afonso Henriques.

Também aqui não sei como introduzir o problema da necessidade. Conheço apenas o essencial do que se seguiu – guerras sucessivas e morte a rodos, ao longo de toda a dinastia afonsina.

Afonso IV só não mandou apunhalar os netos porque lhe bastou a morte de Inês, quando esta, no dizer de Camões, estava “posta em sossego” à beira do Mondego. Depois, com o Conde Andeiro atirado pela janela, vemos D. João I e a sua Filipa a deixarem morrer dois filhos, um em Alfarrobeira e outro em Marrocos, apesar de estar nas suas mãos meter na ordem o Infante D. Henrique, o causador principal destas tragédias.

Que Portugal teríamos agora sem qualquer deles? E que dizer do Príncipe Perfeito e do seu sucessor D. Manuel I? Quantos portugueses morreram às suas mãos ou às suas ordens?

Volto a perguntar: que Portugal teríamos hoje sem qualquer deles?

E sem D. João IV, e sem D. José, e sem o Marquês, e sem os principais insurgentes republicanos, e sem Salazar? Só neste último caso tenho a certeza de que tudo estaria muito melhor.

Aqui, o acaso dá lugar à necessidade. Se o acaso ainda pôde dar-nos Otelo, já não impediu que o jovem major percebesse a necessidade e tudo fizesse para lhe corresponder, coisa que nem todos os filósofos compreendem, desde a Alta Antiguidade.

Embora voluntarista e mal preparado dos pontos de vista filosófico e político, tornou-se no único caso português de um militar que, sem derramamento de sangue, comandou um golpe de estado para pôr fim a um regime que dispunha de todos os poderes e não hesitava em matar.

E agora pergunto: quantos operadores de mudança, na História de Portugal e do mundo, conseguiram conduzir uma revolta vitoriosa impedindo ‘in extremis’ um banho de sangue?

E quanto vale este extraordinário feito?

E reafirmo: sempre que a mudança for necessária e inequivocamente para melhor, eu estarei, como sempre estive, do lado dos que ousam mudar e correm todos riscos para tanto. Até serei capaz de não perdoar sangue injusto ou desnecessário, mesmo que esteja no horizonte o sentido da civilização. Como nunca perdoarei a Otelo alguns dos seus atos posteriores ao 25 de Abril.

Coisa menor, entretanto, é ponderar a violência ou a criminalidade, se contraposta à necessidade e à genialidade da condução daquela revolta militar que abriu as portas a uma revolução intrinsecamente democrática de que ainda estamos a beneficiar largamente.

Aqui levanta-se a questão do papel do indivíduo na História, para a qual há respostas díspares, mesmo quando o sujeito é coletivo. Estou a lembrar-me daquele discurso de Lenine, quando, após mais de um ano de contenção verdadeiramente heróica, disse: “Temos de responder ao terror branco com o terror vermelho.”

Talvez Estaline, o seu sucessor, não tenha compreendido a totalidade do acaso e da necessidade contidos nesta afirmação, mas não sei se, então, haveria muitos revolucionários capazes de responder de uma forma não estalinista a uma situação única na História da Humanidade: quase todo o mundo e grande parte do povo russo ativos contra a Revolução Russa.

É só por isso que as sete décadas da existência da URSS coincidem e em grande parte determinam o caminho da civilização, no seu melhor e no seu pior. E o saldo é enormemente positivo.

Lembro-me de ouvir Álvaro Cunhal dizendo que foram cometidos crimes durante o período estalinista, mas não esqueço o rol de avanços e vantagens que ele também reconheceu na avaliação do trânsito de um século inteiro, tanto para os soviéticos como para o resto do mundo. E inquieta-me imaginar quanta violência justa e quanta violência injusta vão continuar a ocorrer, face à necessidade e aos acasos do porvir.


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Um pensamento sobre “Acaso e necessidade

  1. A defender ditaduras e terrorismo de estado e depois ficam muito ofendidos por a maior parte da população vos considerar fascistas de esquerda. Enfim.

    Já agora uma correção.

    Não era “grande parte: da população russa que era contra a ditadura comunista. Era a MAIOR PARTE mesmo.

    O partido bolchevique perdeu as eleições para os democratas de esquerda que tinha derrubado com as suas milicias.

    Só conseguiu 30% dos votos. Ou seja, 70% dos votantes eram contra a ditadura comumista.

    Então os comunistas usaram as suas milicias para dissolver pela força das armas a assembleia eleita democraticamente.

    O Trump quando invadiu o capitólio por não aceitar o resultado fas eleições apenas vos tentou imitar.

    Foi assim que criaram o fascismo de esquerda que assassinou milhões de pessoas.

    Terror que aliás começou antes da guerra civil com o Lenine a mandar enforcar reféns à boa maneira que depois seria imitada pela gestapo.

    Foi isto que levou à guerra civil que depois usam como desculpa para justificar o terror. Sendo que foram vocês os responsáveis quer pela guerra civil quer pelo terror.

    Quanto às conquistas sociais da ditadura comunista é outra treta.

    Essas conquistas já estavam a decorrer no mundo capitalista muito antes do golpe de estado leninista.

    Por exemplo, Bismarck criou a primeira experiência de eatado social.

    Essa via reformista foi depois aprofundada na Europa ocidental, principalmente nos países nórdicos, onde se conseguiu condições de vida para os trabalhadores muito melhores das vigentes na ditadura comumista – e sem ser preciso assassinar milhões de pessoas.

    O que foi positivo na história do socialismo foi a via reformista de um Kautsky, Attlee ou Olof Palme, não a herança sangrenta do Lenine que não passava de um hitlerzinho careca.

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