“Allen v. Farrow”: o criador, as criaturas e os linchadores

(Daniel Oliveira,in Expresso Diário, 18/03/2021)

Daniel Oliveira

De suspeitas de abusos sexuais trata a Justiça, não a HBO. Mas o alvo já é a obra de Woody Allen. Vimos isto com Polanski e Kazan. Polanski pagará ou não pelos seus crimes, Allen continuará a defender o seu nome, Kazan terá vivido com os seus fantasmas. Eu não tenho de pagar por eles, ficando sujeito a uma lista de obras que não posso ver, ler ou ouvir. Sinto o vento do moralismo pelas costas. Nenhum poeta maldito resistiria uma manifestação de ativistas munidos de um manual literário de boas-maneiras.


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Ainda só vi três episódios de “Allen v. Farrow”. O meu tempo é escasso e não sei se vou continuar. Se aquilo fosse jornalismo, teria muito para dizer. Não cumpriria os mínimos. Tem uma tese, uma acusação e testemunhas para sustentar essa tese e essa acusação. Alguns testemunhos até são poderosos. Mas recorre frequentemente à manipulação emocional e visual. E não ouve – ou desacredita quando refere – qualquer testemunho que se entreponha entre a tese e os factos. Sem qualquer opinião sobre este tema, detesto ser manipulado de forma tão grosseira.

Para quem veja a série, vale a pena temperar com a leitura este texto do The Guardian, que trata o documentário como trabalho de Relações Públicas e ativismo. Ou outro, de Moses Farrow, um dos filhos adotivos de Mia Farrow. Para se perceber como um outro documentário, de sentido inverso, poderia ser feito. Um dos problemas de quem não gosta do bom jornalismo é que ele lida com a contradição e a dúvida, que excita a inteligência e o espírito crítico, mas estraga uma história escorreita. Sendo um documentário, há maior liberdade na tomada de partido. Mas estando perante uma gravíssima acusação de abuso sexual de menores, restam-me todas as dúvidas éticas sobre este exercício de condenação televisionada.

Não tenho qualquer convicção sobre a inocência ou culpa de Woody Allen. Sou do tempo em que estas coisas se entregavam à Justiça e aos instrumentos de recurso e confronto, não à HBO. Nesta matéria, não há #MeToo, com tribunais plenários e pena de suspensão imediata da vida pública a partir de acusações de alguém, que me faça recuar. Porque sei de muitos linchamentos feitos na História em nome dos melhores valores.

Mas o debate que se instalou já tem como alvo a obra de Woody Allen. Já vimos isto com Roman Polanski. A tentativa de banir coletivamente uma obra é um ato de prepotência sobre os outros, que a querem fruir. A relação com a arte não é coletivamente determinada, não é democrática. A que conta, é antes de tudo entre o indivíduo e a obra.

Sobre a última obra de Polanski, o que tenho a dizer é que achei “J’accuse” um trabalho competente. Ele queria que o víssemos como um Dreyfus injustiçado? É indiferente. Assim como foi indiferente se Elia Kazan procurava o perdão por ter sido um delator durante o macarthismo quando realizou “Há Lodo no Cais” (“On the Waterfront”). Continua a ser uma das mais extraordinárias obras primas do cinema, na minha humilde opinião. Como ser humano, Kazan merece-me desprezo e até tive dúvidas quando lhe deram o Óscar de carreira, tendo em conta que a sua se salvou destruindo a de outros. Mas, felizmente aquele filme sobreviveu ao desprezo que ele me merece. E combaterei sem hesitação quem me queira impedir de o ver. Polanski pagará ou não pelos seus crimes, Allen continuará a defender justa ou injustamente o seu nome, Kazan terá vivido com os seus fantasmas e culpas. Eu não tenho de pagar nada por eles, ficando sujeito a uma lista de obras que não posso ver, ler ou ouvir.

Woody Allen até podia ser um serial killer. Nenhuma obra de arte é beliscada pela conduta moral, cívica, política, criminal ou pessoal do seu autor. Vale por si ou não vale. Podemos ter sobressaltos morais com uma obra, o que até a pode tornar mais estimulante. Mas ela não perde nada pelos pecados do autor. A obra tem uma vida própria, uma moral própria, pecados que são só dela e que só por eles deve responder.

O documentário entrega-se, aliás, a um exercício especialmente perverso, que parece querer justificar um movimento censório: encontrar nos filmes uma tentativa de naturalizar o abuso de menores. Indo ao seu fascínio doentio, nunca visto em homens de meia idade, por raparigas de 17 ou 18 anos. A perversidade deste exercício é a de passar a obra, e não apenas o autor, para o banco dos réus. Uma perversidade que levaria à saída das bancas de “Lolita” ou do maravilhoso texto de Luiz Pacheco – “A Comunidade”. Sendo que Pacheco manteve mesmo uma relação amorosa com uma menor e é também disso que fala no texto.

Claro que a conduta política ou moral de determinado autor pode determinar a sua obra. As ideias abjetas de Céline não estão apenas na sua vida, estão na sua obra. A obra de Leni Riefenstahl é em grande parte propaganda nazi. Nada nos impede de ter uma opinião política ou moral sobre as suas obras. Mas é sobre a obra, independente de quem seja o seu autor. E mesmo o julgamento moral das obras deve ser cuidadoso. A liberdade artística é única porque lhe conferimos a amplitude que nos permite questionar tudo. É nela que ultrapassamos todos os limites. É com ela que, coletivamente, fazemos perguntas a que ainda não podemos responder. Isso acontece graças à exposição, umas vezes autobiográficas outras não, das angústias pessoais dos autores. Por vezes monstruosas.

Como me recordou um amigo, não é por acaso que Polanski volta permanentemente ao confinamento no espaço, a que está condenado há anos: em “O Deus da Carnificina” ou “The Ghost Writer”, por exemplo. Mas isso é a relação do criador com a criatura. Para nós, interessa a criatura. E mal seria que a puníssemos pelos pecados do criador. Podemos julgá-la, mas isso não leva ao seu silenciamento. Levará, quando muito, à revolta, ao sofrimento perante a obra, a um confronto individual com o que temos pela frente. Nunca à censura. Mesmo os apelos para notas introdutórias, com avisos morais, me deixam arrepiado. Um livro ou um filme podem precisar de contexto para serem compreendidos, o que não costuma ser bom sinal. Não precisam, quando se dirigem a adultos, de “parental advisory”.

Tenho pouca paciência para a conversa sobre a “cancel culture”. Entrámos naquela fase em que se mistura tudo e usa-se a expressão “cancelamento” para deslegitimar qualquer crítica a uma obra de arte, a um político, a um texto de opinião. Estes debates transformaram-se numa charada de vitimizações mútuas. Os que aplaudiram a prisão de Pablo Hasél sentem-se asfixiados pelo cancelamento viral, os que exigem liberdade para Pablo Hasél hesitam em ser intransigentes com a liberdade artística de suspeitos de abusos sexuais. Não há nada de novo nisto. Nem à esquerda, nem à direita. O inferno é a palavra do outro.

Para mim, o princípio em relação à produção artística é relativamente simples: todos temos direito a ler, ouvir e ver o que entendemos; todos temos o direito a criticar violentamente o que lemos, ouvimos e vemos (apesar de não gostar dessa estética e dessa ética, até temos o direito de queimar livros, se forem nossos); todos temos o direito a não ler, a não ouvir e a não ver o que não queremos e pelas razões que quisermos; ninguém tem o direito a tentar, de alguma forma, impedir que outros leiam, oiçam e vejam o que querem. Os limites são os que existem na lei e muito poucos se aplicam à arte. A única coisa ilegítima na arte é cometer um crime para a produzir.

Apesar de não cair na esparrela da conversa do “cancelamento”, que tenta misturar todos os debates para anular a critica contrária, sinto os ventos do moralismo pelas costas. E sei que se os puritanos fossem bem sucedidos, nada sobreviveria. Nenhum poeta maldito resistiria a uma manifestação de ativistas munidos de um manual literário de boas-maneiras.

Interessa-me tanto o caso de Dylan Farrow como qualquer outro caso de abuso sexual de menores, de alienação parental (que o documentário tenta negar que exista, sequer) ou seja o que for que esteja em causa. Muito, pelo drama concreto e pela lei. Nada, do ponto de vista artístico e cultural. Nada do que tenha ou não acontecido naquele sótão tem alguma coisa a ver com “Annie Hall”, “Manhattan”, “Zelig”, “Rosa Púrpura do Cairo”, “Manhattan” ou “Ana e as Suas Irmãs”. Para quem julgue que desculpo Allen por algum fascínio artístico, gosto de muitos filmes dele, mas nenhum está nos meus vinte preferidos. Até acho que, a dada altura, encontrou uma fórmula e durante algum tempo viveu disso. Nisso, a sua obra merece um julgamento moral severo. No resto, é ele o julgado. Nos tribunais, que é onde os países onde vigora o Estado de Direito fazem os julgamentos.

9 pensamentos sobre ““Allen v. Farrow”: o criador, as criaturas e os linchadores

  1. Luiz Pacheco manteve mesmo uma relação amorosa com uma menor só que ele também era menor mas disso parece que ninguém fala porque vivemos numa sociedade nem machista nem feminista, antes vivemos numa sociedade moralista onde todos são pecadores e ninguém se safa. Tudo isto por causa da Propriedade Privada que alimenta o capitalismo, penso eu de que.

  2. Tem montes de piada a última frase da “tese” na crónica! O autor consegue desmentir
    que Portugal é um Estado de Direito pois, ele e outros comentadeiros já julgaram e pa-
    rece terem condenado o melhor Primeiro Ministro que serviu o país após o 25 de Abril,
    sem vestígio de qualquer prova de um acto de corrupção!!!

    • Se a memória me não falha, esse melhor Primeiro Ministro que serviu o país após o 25 de Abril foi julgado antes de mais pelo portugueses numas eleições.

  3. Parece que o Dani teve um ataque de honestidade e reconhece que o feminismo radical se tornou no novo puritanismo com caçadas às bruxas e tudo.

    E que está a causar estragos sociais e culrurais.

    Só falta reconhecer o resto, a apropriação do.movimento antifascista e antiracista por radicais fascistas de esquerda e racistas contra os brancos que praticam a caça ás bruxas contra as culturas ocidentais.

    Aqui é mais dificil porque o Dani faz parte desses radicais.

    Vejamos alguns exemplos da cultura de cancelamento que o Dani finge que não vê.

    – Nos USA querem cancelar milhares de livros e filmes. Como A cabana do pai Tomás, As aventuras de Tom Sawyer, E tudo o vento levou, os filmes de John Wayne e a série do Tarzan.

    Dentre os infantis quetem também cancelar o Mogli e o elefante Dumbo.

    Dos filmes para adolescentes, o Greese, do John Travolta é também considerado perigosamente “supremacista branco” – por não ter personagens negros.

    Os ultimos a ser incluidos na lista negra de filmes a cancelar pelos racistas anti-brancos são.os das séries clássicas de ficção cientifica Alien e Predador. Porque segundo os “investigadores académicos” os aliens são escuros demais e os preddores têm na cabeça tentáculos que parecem rastas, logo são filmes supremacistas brancos!!!

    -Em Portugal está apenas a começar mas promete. Querem cancelar as obras do padre António Vieira e de Eça de Queiróz.

    Há uns tempos comprei o livro Tintin no Congo e fui olhado com desdém pelo empregado da loja, um rapaz branco de rastas, que me perguntou se sabia que é um livro racista. Achei graça o vendedor estar a tentar desmotivar a clientela a comprar livros da loja onde trabalha…

    E claro, a bandeira, o hino nacional, o monumento dos descobrimentos etc, por serem imperialistas e racistas.

    Isto é apenas o começo. Porque se querem cancelar o Eça por ser imperialista, imaginem o que pensam do Camões.

    E se querem destruir o monumento dos descobrimentos é só questão de tempo até chegarem à torre de Belém e aos mosteiro dos Jerónimos, simbolos do império muito mais fortes.

    Basicamente toda a cultura nos paises ocidentais está em vias de cancelamento enquanto o Dani faz de conta que não percebe.

  4. Gostava homenagear aqui Benny Hill.

    Um dos maiores humoristas de sempre e uma das primeiras vitimas de cancelamento da esquerda totalitária identitária que começou a sua campanha de cancelamento e empobrecimento cultural já nos anos 80.

    Os censores da esquerta neofascista querem cancelar o Eça de Queirós por ser “racista”.

    Benny Hill foi cancelado por ser “machista”.

    A perseguição censória da esquerda neofascista que quer calar toda a gente levou à depressão e rápida deterioração da saúde e morte precoce deste grande artista.

    Não te esquecemos Benny Hill.

    https://www.google.com/search?q=benny+hill&prmd=vin&sxsrf=ALeKk00XdU5TpGf7ZnL2oLoq4Z3UPrqH0A:1616275173710&source=lnms&tbm=vid&sa=X&ved=2ahUKEwiW9Nmc5r_vAhXeA2MBHcbdAf0Q_AUoAXoECBUQAQ&biw=412&bih=772#

      • Cara estátua.

        Por mim já devias ter feito isso há um ano, quando o gajo começou todos os dias a ameaçar-me de agressão e a mandar-me levar no cu. Enquanto tu fingias que não vias ou até o justificavas.

        Engraçado que assim que eu lhe respondi à letra reagiste logo numas horas a pôr ordem na casa.

        Sabes perfeitamente que a mim o teu aviso é tanga porque apenas reagi ao fim de um ano ás provocaçoes diárias do fascista de esquerda e PEDI-TE AUTORIZAÇÃO primeiro.

        Várias vezes, durante meses, até autorizares. Lembras-te? Falaste na autodefesa em tribunal…

        Por mim é exatamente isto o que pretendia.

        Se me querem “enfrentar” que o façam com argumentos e não com indultos e ameaças seguidas de fuga sem nunca conseguirem contrapor nada do que afirmo.

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