(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 22/10/2019)
A julgar pelas declarações dos principais actores políticos, há hoje um acordo alargado em Portugal sobre a necessidade de aumentar os salários dos trabalhadores. É surpreendente, sem dúvida, mas há bons motivos para isso. Resta saber como se traduzirá na prática.
Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.
PCP e CGTP são conhecidos pela defesa do aumento dos salários. O contexto actual não é diferente. Ambos propõem que o salário mínimo aumente para 850 euros nos próximos quatro anos, que os salários da função pública aumentem acima da inflação e que a legislação laboral seja revista para valorizar a contratação colectiva (entre outras coisas), permitindo assim um crescimento mais significativo dos salários.
Mesmo que o nível de exigência não seja igual, o PCP e a CGTP não estão isolados no debate sobre a evolução salarial em Portugal. O PAN propôs um aumento do salário mínimo nacional de 50 euros por ano, o que significa atingir 800 euros no final da legislatura. O BE defende um aumento para 650 euros já em Janeiro e aumentos posteriores mínimos de pelo menos 5% ao ano, o que significa atingir um valor não inferior a 750 euros em 2023. O próprio PSD inseriu no seu programa a proposta de um valor de salário mínimo não inferior a 700 euros no final da legislatura.
O PS e o governo não se comprometeram com metas específicas, afirmando que se trata de matérias que devem ser acordadas na Concertação Social. Mas na sua primeira reunião com os parceiros sociais após as eleições de 6 de Outubro, António Costa fez questão de dizer que a política de rendimentos seria uma prioridade do novo governo. Incluem-se aqui os salários, as tabelas de IRS e os serviços públicos – tudo elementos que afectam o rendimento disponível das famílias.
Em resposta, António Saraiva, presidente da CIP, fez saber que uma subida do salário mínimo para 700 euros ao fim de quatro anos seria “perfeitamente razoável”, admitindo subidas maiores caso as condições o permitam.
Em qualquer dos casos, os valores referidos implicam aumentar o salário mínimo acima do crescimento nominal do PIB, dando continuidade à trajectória da anterior legislatura. Há várias razões para que assim seja. Primeiro, o salário mínimo em Portugal é ainda hoje o mais baixo entre os países da Europa ocidental, sendo 21% inferior ao da Grécia, 43% inferior ao de Espanha e 62% inferior ao da Alemanha. Segundo, a parte do trabalho no rendimento nacional (52,1%, de acordo com os dados da Comissão Europeia) é inferior ao da média da UE e ao da maioria dos seus Estados membros. Terceiro e mais relevante, de acordo com os dados da OIT, Portugal foi o 6º país do mundo onde o peso dos rendimentos do trabalho no PIB mais caiu entre 2004 e 2017. Os dados da Comissão Europeia apontam para uma ligeira melhoria da distribuição funcional do rendimento em Portugal em 2017 e 2018, ainda assim insuficiente para alterar o quadro aqui descrito.
Vários factores explicam aquela evolução, havendo dois a destacar: a forte redução do emprego entre 2008 e 2013 (menos 650 mil postos de trabalho) e o fraco crescimento dos salários, quando comparado com o aumento da produtividade. De acordo com um estudo publicado pelo Ministério das Finanças, da autoria dos economistas Alexandre Mergulhão e José Azevedo Pereira, entre 2010 e 2016 os aumentos salariais ficaram 65% abaixo da variação da produtividade.
Os dois factores referidos estão relacionados. Quando o desemprego é muito elevado, a capacidade negocial dos trabalhadores diminui. Quem procura emprego tende a aceitar mais facilmente propostas de trabalho em troco de salários reduzidos, independentemente da capacidade das empresas para pagar mais. Além disso, o trabalho precário tende a generalizar-se, implicando retribuições ainda mais baixas.
Em 2015, a opção pelo aumento mais rápido do salário mínimo visou responder a duas prioridades: evitar a estagnação dos salários mais baixos (dado o fraco poder negocial dos trabalhadores menos qualificados); e estimular por esta via a procura interna (dadas as restrições em fazê-lo por via do aumento despesa pública ou da redução dos impostos). Os dados disponíveis sugerem que ambos os objectivos foram alcançados, sem penalizar a criação de emprego nem a competitividade das exportações portuguesas.
Tendo presente o valor reduzido do salário mínimo em Portugal e a persistência de elevados níveis de desigualdade na distribuição de rendimentos, justifica-se a continuação de uma política de valorização dos salários por esta via.
Há, no entanto, alguns cuidados a ter neste processo. Por um lado, o aumento do salário mínimo é insuficiente para lidar com a desigualdade e as injustiças na distribuição dos rendimentos. Uma política de aumentos salariais justos e sustentáveis não dispensa um combate eficaz às várias formas de precariedade e ao reforço do papel da negociação colectiva nos diferentes sectores de actividade. Por outro lado, a redução do desemprego tenderá a reflectir-se num aumento das pressões salariais, o que pode tornar-se insustentável para alguns sectores mais expostos à concorrência internacional.
Isto chama a atenção para a necessidade de considerar o salário mínimo no quadro mais geral da política de rendimentos – que inclui as relações laborais, os impostos e os serviços públicos. Alerta também para a importância das restrições externas que se colocam à economia portuguesa, que devem ser tidas em devida conta.
O consenso actual sobre as políticas de aumento dos salários é muito positivo. Sê-lo-á ainda mais se as soluções encontradas forem justas, eficazes e sustentáveis.
Economista e professor do ISCTE
Tudo isto é muito estranho.
É a primeira vez que vejo um consenso destes em aumentar significativamente o salário mínimo.
Regra geral a direita e os empresários choram baba e ranho que qualquer aumento vai destruir completa e imediatamente todo o país e arredores, ou concordam apenas em aumentos ridículos.
Passa-se algo d muito estranho que nos está a escapar.
Telegrama.
Entrega isto ao Pedrinho, pá, que o tipo anda desorientado.
Assinado: RFC, Eu.
https://expresso.pt/economia/2019-10-24-700-de-salario-minimo-e-muito-ou-pouco–Patroes-pegam-se-nas-redes-sociais
Caro RFC, continuo desorientado.
Os patrões pegam-se sobre a melhor maneira de aumentar os salários.
Normalmente o consenso é sobre NÃO aumentar. A não ser os salários dos gestores, que são duplicados de X em X anos.
Caro Pedro: vou telegramar para o RFC, uns minutos.
Quero isso rápido que até agora não esclareceu nada.
Caro Pedro: afinal ele foi de fim-de-semana, o finório!
[… bem pensado, as usual, vou também!]
Com a condicionante de o aumento ter que se adaptar à crise que aí vem, o que me leva a crer que é propaganda até voltar a “não haver dinheiro”. Vindo de quem vem, o pobre desconfia.
«As hipóteses serão várias, mas
pessoalmente inclino-me para
uma: a do receio de António Costa
(tão hábil quanto pouco
predisposto ao exercício da
autocrítica) ser apanhado de novo
pelas surpresas funestas com que
foi confrontado o Governo
anterior, desde os incêndios a
Tancos, passando por outros
episódios mais correntes. Costa
decidiu armar, por isso, um
dispositivo capaz de prevenir
todos os riscos e situações
inesperadas, uma espécie de
infalível ecrã protector contra as
ameaças exteriores, semelhantes
àqueles que vemos nos filmes de
ficção científica.», destaco.
Nota. Ora bem, prosa do Vicente Jorge Silva.
Um Governo com 19 ministros e 50 (cinquenta,
tão por extenso como o número) secretários de Estado
não podia deixar de suscitar perplexidade e,
como é tradição em Portugal, o
apetite pela piada fácil e a
maledicência, agora amplificadas
através das redes sociais. 19
ministros já parecem de mais,
pelo menos de um ponto de vista
de concentração organizativa e
eficácia operacional, mas 50
secretários de Estado — por vezes
até com funções aparentemente
sobrepostas ou conflituais —
sugerem uma pequena multidão
em que é fácil confundir as
identidades e os papéis atribuídos
a cada um. Como explicar, então,
tal enigma ou originalidade
histórica, sendo este o Governo
mais numeroso desde 1976?
As hipóteses serão várias, mas
pessoalmente inclino-me para
uma: a do receio de António Costa
(tão hábil quanto pouco
predisposto ao exercício da
autocrítica) ser apanhado de novo
pelas surpresas funestas com que
foi confrontado o Governo
anterior, desde os incêndios a
Tancos, passando por outros
episódios mais correntes. Costa
decidiu armar, por isso, um
dispositivo capaz de prevenir
todos os riscos e situações
inesperadas, uma espécie de
infalível ecrã protector contra as
ameaças exteriores, semelhantes
àqueles que vemos nos filmes de
ficção científica.
O problema é que, como
acontece precisamente em certos
filmes com excesso de
protagonistas, actores
secundários e figurantes, o
realizador — António Costa, neste
caso — arrisca-se a perder o
controlo da superprodução e
mergulhar num precipício
criativo. Ou seja: pensando que a
quantidade e diversidade de
agentes políticos nos mais
diferentes cargos e com as mais
variadas competências evitará o
perigo de acidentes como aqueles
que marcaram os últimos quatro
anos, Costa expõe-se a ser
ultrapassado pela máquina que
agora criou na produção de outros
acidentes eventualmente
incontroláveis. E o Governo pode
reduzir-se a uma espécie de
secretariado-geral perdido no seu
labirinto de funções múltiplas e
concorrentes.
[…]
Fonte: P., 27.10.2019, p. 32.