(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/09/2019)
Vamos recapitular, porque de outro modo até custa acreditar que esta história aconteceu mesmo. Primeiro, temos o paiol principal do Exército guardado como nem um galinheiro se guarda contra as raposas, numas instalações de brincadeira e com um sistema de videovigilância que não funcionava, a par de um sistema de rondas que era uma total rebaldaria. E tudo isto com o conhecimento de todos os oficiais responsáveis na cadeia de comando, desde o quartel até ao mais alto gabinete — durante anos. De seguida, e tirando partido das condições existentes, um furriel de Tancos, funcionando como toupeira ou como miserável traidor, passa para fora e para bandidos de delito comum (tráfico de armas e de droga) a informação de que entrar ali dentro e roubar as armas era uma brincadeira de crianças. E assim foi feito, com o maior desplante e sem que, num assomo mínimo de vergonha, toda a hierarquia responsável, até ao chefe de Estado-Maior, se demitisse imediatamente ou fosse imediatamente demitida. Depois, temos uma guerra surda de competências (melhor dizendo, de competição) entre a Polícia Judiciária (PJ) e a Polícia Judiciária Militar (PJM) para saber qual deveria liderar a investigação — conflito resolvido a favor da primeira por decisão da PGR, aliás, a decisão que se impunha. Na sequência disso, ficámos a saber que os mais altos quadros da PJM, um coronel e dois majores, inconformados com o que julgaram ser uma afronta, trataram de mover as suas influências políticas, até ao Presidente da República, para reverterem aquela decisão. E é então que sucede o inimaginável: não conseguindo alcançar os seus fins por esta via, montam uma operação, a meias com a GNR do Algarve (mais dois coronéis e um tenente-coronel envolvidos) e um grupo de delinquentes conhecidos das autoridades, para encenar uma operação de recuperação das armas, após uma hipotética, exaustiva e brilhante investigação própria. Ou seja, negociaram com os bandidos a devolução em segredo das armas roubadas, em troca de esquecerem o roubo. Isto, imaginaram eles, eram dois tiros com uma só bala: lavavam a vergonha do roubo consentido e demonstravam a quem contestava a utilidade da existência de uma PJM a sua superioridade operacional sobre a sua prima civil. E tão contentes ficaram com o seu golpe de mestre que o seu principal artífice, o major Vasco Brazão, da PJM, teve mesmo o desplante de propor superiormente um louvor a todos os militares do Exército e da GNR envolvidos neste vergonhoso embuste. Pois que, como ele escreveu, radiante, ao seu superior hierárquico, “a PJ desta vez não nos passou a perna”. Com meia dúzia de oficiais superiores envolvidos, dá que pensar no estado a que chegou o Exército português.
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Mas a história não acabou aqui. Embora os verdadeiros factos estejam ainda por apurar em toda a sua extensão — o que só sucederá em julgamento — a mim, pelo menos, parece-me claro que, uma vez apanhados de calças na mão, os conjurados de Tancos trataram imediatamente de tentar envolver no seu ignóbil segredo, e ainda que a posteriori, toda a gente que conseguissem, desde o ministro da Defesa até ao Presidente da República. Sim, vivem a apregoar a sua valentia e a sua imediata e permanente disponibilidade para darem a vida pela pátria, ao menor chamamento — e daí o peso das medalhas de futuros feitos heroicos que carregam ao peito. Mas na hora de mostrarem de que era feita essa valentia e a honra militar, ou apenas a honra e valentia de cidadãos normais, na hora de assumirem as suas responsabilidades e responderem pelos seus actos, trataram logo de se encobrir atrás de outros que, com ou sem razão (adiante se verá), denunciaram através dos expedientes mais mesquinhos: relatórios não timbrados nem assinados que terão sido enviados, entregues em mão, mostrados ou só soprados a alguém importante; conversas com insinuações mal disfarçadas para os familiares ou amigos; mensagens dúbias o suficiente para logo lançar suspeitas sobre outrem. No meu tempo de escola primária, este tipo de gente era o mais desprezado de todos. Eram os tipos que quando eram apanhados pelo professor a fazer asneira, se escudavam atrás dos colegas: “O Arnaldinho viu tudo, o Zequinha até se riu do que eu estava a fazer.” Honra? Valentia?
Agora, chegaram ao Presidente da República, tratado por um major (de quem ele é chefe hierárquico supremo) como “o papagaio-mor do reino”. Sobre isto, tenho ouvido várias teorias, todas elas de digestão incómoda. Uma pretende que não há fumo sem fogo e que, se o chefe da Casa Militar de Marcelo sabia (embora não tenha sido acusado de encobrimento por falta de provas), também Marcelo sabia; e se Marcelo sabia, Costa de certeza que foi também informado: ou seja, todos sabiam. A outra teoria é a da que Marcelo não sabia mas tentaram comprometê-lo a posteriori, numa manobra da mais suja estratégia de defesa. E há ainda uma terceira teoria que sustenta que a versão que quer envolver Marcelo surge agora pela mão de Costa. Eu, pessoalmente, não acredito que o Presidente soubesse da encenação antes de ela ter sido revelada publicamente, mas não tenho dúvidas de que terão tentado tudo à volta dele para o comprometerem antes de sair a acusação. E também não quero acreditar que António Costa alguma vez tenha colaborado na “operação papagaio-mor”. Mas há duas coisas importantes que importa reter, contra esta malfadada mania portuguesa de enfiar tudo no mesmo saco para que tudo acabe impune. Ou todos condenados na praça pública — o que aproveita aos desonestos e assassina os inocentes.
Ninguém, ninguém ainda, teve a dignidade mínima de dar um passo em frente e dizer: “Peço desculpa pelo que fiz”
Primeiro, perceber por que razão a escuta telefónica do major Brazão com a irmã, sobre o papagaio-mor, foi parar ao processo, uma vez que dele não constam diligências efectivas para tentar provar a sua veracidade. Seria uma boa coisa a apurar por um Conselho Superior do Ministério Público independente, o que não é o caso do nosso. E assim se percebe como Rui Rio tem razão nesta matéria e por que motivo o Sindicato do Ministério Público defende tão empenhadamente a natureza corporativa deste órgão, com a cobarde conivência de quase toda a gente na política.
A segunda constatação que importa reter é que mesmo que todas estas insinuações ou suposições — ou até acusações, no caso de Azeredo Lopes — sejam verdadeiras, mesmo que Costa ou Marcelo, ou ambos e mais alguns, soubessem do crime da encenação da devolução das armas, negociado entre as autoridades e um bando de meliantes, é preciso distinguir. Porque uma coisa era terem sabido antes de consumada a operação e terem-se mantido calados, com isso caucionando implicitamente aquilo que se preparava; e outra, bem diferente, é uma vez engendrada, levada a cabo e depois desmascarada a operação, os seus implicados terem-se então lançado num blitz de tentativas de informar e comprometer entidades a ela alheias e as quais teriam optado por deixar a justiça seguir o seu curso, sem interferir. Se foi isto que aconteceu, se Costa e Marcelo, um deles ou ambos, souberam a posteriori a verdade dos factos e optaram por ficar em silêncio, a razão desse silêncio parece-me óbvia: pouparem-se a si próprios e às Forças Armadas a um escavar ainda mais profundo do lamaçal em que o caso de Tancos fez mergulhar toda a instituição militar. Porque esta foi, não tenho dúvidas, uma das mais negras páginas da história do Exército e da GNR. E ninguém, ninguém ainda, teve a dignidade mínima de dar um passo em frente e dizer: “Peço desculpa pelo que fiz.”
PS: Três breves notas
1. Se se provar que Azeredo Lopes sabia previamente da encenação da PJM, é difícil acreditar que não tivesse informado disso António Costa. Só mesmo uma vaidade tão grande quanto a irresponsabilidade política poderia justificar essa falta de lealdade.
2. Contudo, a prova maior contra o ex-ministro (o SMS enviado a um deputado do PS, agradecendo-lhe os parabéns pela recuperação das armas) não consente a leitura generalizada que está a ser feita, na senda da do MP. Ao escrever “eu sabia… mas é claro que não sabia que ia ser hoje”, Azeredo Lopes estava a confessar que sabia que a devolução estava iminente — e era natural que o soubesse. Mas não estava a confessar que sabia como é que essa devolução tinha sido conseguida. Faz diferença.
3. Também tem sido interpretação generalizada que na sua exemplar conversa telefónica com a irmã sobre o papagaio-mor, Vasco Brazão falou à vontade porque depreendeu que, estando em prisão preventiva, já não estaria sob escuta. Conhecendo cada vez melhor a personalidade em questão, eu penso exactamente o contrário: ele queria mesmo que a sua chantagem-defensiva fosse escutada e pudesse ajudá-lo a livrar-se de sarilhos.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
«ninguém ainda, teve a dignidade mínima de dar um passo em frente e dizer: “Peço desculpa pelo que fiz»
Who? Ministro e Chefe do Exército, que demitindo-se oito dias depois de Tancos28J, talvez tivessem dado a outra conduta. Mais séria e capaz porventura.
[…]
Tancos menos sentido faz
quando, insidiosamente, se
liga o nome do PR ao crime cometido, levando um Marcelo
exasperado a garantir, em Nova
Iorque, que não é criminoso. A
expressão “Papagaio Mor do
Reino”, que indicaria Marcelo, também diz do estado das
nossas instituições. Porque seria Marcelo o papagaio e não
outro? Repare-se na perfídia: o
político mais relevante acusado
no processo é o ex-ministro da
Defesa Azeredo Lopes. Isto não
o torna em culpado — aqui, sim,
antes de o condenar, à Justiça o
que é da Justiça. Porém, continuando o raciocínio, sendo um
ex-ministro o mais alto visado
e excluindo-se o primeiro-ministro de qualquer intervenção
ou sequer conhecimento do
caso, por que motivo o mesmo
chegaria ao Presidente? Através do chefe da Casa Militar
poderia saber o que se passava
por essa via? Sim, em teoria.
Mas o primeiro-ministro também tem um assessor militar
com ligações privilegiadas ao
gabinete e ao ministro da Defesa. Seria, pois, tão provável
ou improvável Marcelo saber
como António Costa saber. Do
mesmo modo, o tal “Papagaio
Mor” poderia ser um ou outro
ou ainda nenhum deles.
E, no entanto, o que salta para
os jornais é que Marcelo saberia. E a questão é porquê? Por
que razão é envolvido? Parece-
-me impossível Marcelo saber
sem Costa saber (o contrário
não é necessariamente assim);
acho forçado o nome do Presidente aparecer; é estranho que
todos os líderes políticos viessem defender Marcelo, sendo
o primeiro-ministro o último e
só quando já parecia suspeito
não o fazer. Costa veio ainda
postular que o caso de Tancos
deve estar fora da campanha,
como se tal fosse em defesa de
Marcelo. Eis o que me faz desconfiar!
É natural que Tancos — como
outros temas polémicos da legislatura — entre na campanha.
Não para apurar responsáveis
criminais mas responsabilidade política. Ora, isso só afeta o
Governo, mais ninguém. Talvez o nome de Marcelo tivesse
sido ‘plantado’ justamente para
evitar a discussão do caso, dos
seus ‘comos’ e ‘porquês’, uma
vez que se sabia que o prazo da
acusação era este. Talvez toda
a manobra tenha acabado
Fonte: Expresso, 26.9.2019, p. 39.
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Nota. Embora discorde das hipóteses sobre as “dinâmicas” entre o Ministério da Defesa, de Azeredo e de Marcos Peretrello. António Costa no caso de Tancos, e noutros!, eis o excerto de um artigo a sério que explica “Quem envolveu Marcelo em Tancos?” assinado por Henrique Monteiro.
Correcção. Embora discorde das hipóteses sobre as “dinâmicas” entre o Ministério da Defesa, de Azeredo e de Marcos Peretrello, o António Costa [e o PR] no caso de Tancos, e noutros!, eis o excerto de um artigo a sério que explica “Quem envolveu Marcelo em Tancos?” assinado por Henrique Monteiro.
«Talvez toda a manobra tenha acabado POR CORRER MAL.», isto ainda vai a tempo!