SEE YA, JON

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 14/02/2015)

Jon percebeu, com os seus argumentistas, o manancial de asneira e patetice que cobre uma boa parte do que hoje chamamos, indiscriminadamente, liberalmente, jornalismo.

Clara Ferreira Alves

                     Clara Ferreira Alves

Não há nada mais irritante do que o advento nos noticiários do especialista da treta. O especialista da treta é um tipo ou uma senhora que se especializou numa coisa em que bastariam umas ideias gerais de não especialistas com os neurónios a funcionar e um complementozinho cultural do género meia dúzia de livros lidos, meia dúzia de filmes vistos, uma televisão decente, banda larga, dicionários. No preciso instante em que escrevo isto, a digna BBC tem uma especialista britânica de Jon Stewart a debitar inanidades sobre o desejo de Jon Stewart sair do “Daily Show” ao fim de 16 anos. “Yeah”, diz ela, “ele está cansado, sempre foram 16 anos a marcar o lugar.” Blá, blá, blá… Nem tínhamos reparado. Salvo erro, ele mesmo disse que estava desejoso de mudar de ares. A especialista debita o óbvio ululante. E foi graças a estes International Moments of Zen que Jon Stewart fez um programa de humor político em que troça de jornalistas e seus especialistas, acolitados ao parceiro ideal, o político eleito. Ou não eleito, embora os não eleitos, género Assad ou Sisi, género Ahmadinejad ou Chávez-Maduro, não se prestem tanto à piada. Jon percebeu, com os seus argumentistas, o manancial de asneira e patetice que cobre uma boa parte do que hoje chamamos, indiscriminadamente, liberalmente, jornalismo. Chamar a uma pessoa com um microfone e uma câmara na mão que se planta na passadeira vermelha dos festivais e dos prémios durante a award season (conceito tão zen como o momento internacional) e pergunta a um ator shakesperiano: “O que é que está a usar?, Saint-Laurent?, Dior Homme?”, é levar o epíteto de jornalista um bocadinho longe. Embora as cadeias de televisão não se importem de usar os seus jornalistas, incluindo os que são mesmo jornalistas, para este papel: “Desculpe, o seu vestido é Prada, certo?” Não admira que tantos jornalistas sérios queiram fazer jornalismo de guerra, sempre se livram de perguntar a uma atriz escanzelada: “Chanel, certo?” Antes a Síria e o Iraque.

O papel dos pivôs de telejornais ficou reduzido a perguntar a especialistas da treta a sua opinião da treta sobre o tema em que se especializaram. A televisão está recheada de patetas e de especialistas patetas de tudo e de nada, de terrorismo filipino, de islamismo belga, de panda chinês, de celebridade americana, das irmãs Kardashian e do spinoff que quer mudar de sexo e que foi atleta olímpico (as coisas que ocupam as nossas tecnológicas e educadas mentes), de dívida grega, de crescimento francês (um zero), da carreira de George Clooney, da carreira da femme Clooney, dos fatos de Varoufakis, desculpem, quase parece um Tom Ford igual ao do James Bond do Daniel Craig. E já que estamos numa de bonds, ele há especialistas de bonds, e de yields, e de short-selling, e de balance sheet, e de balance shit (o grego), e de cashflow statements, e de stress tests, e de acid tests, e de assets turnover, e de debt ratio, e o diabo. Todos os especialistas que falharam, basicamente. E com os quais Jon Stewart goza. E gozam o Stephen Colbert e o mais recente génio HBO, John Oliver. Os dois segmentos de “Daily Show” que jamais esquecerei são o IMZ (International Moments of Zen) em que uma loira burra da Fox News troca o nome do republicano Huckabee por Fuckabee e em que John Oliver e Jon Stewart, juntos e em força, troçam dos especialistas da realeza inglesa. “The minstrels”. Não vou ter saudades porque teremos sempre o adorável Oliver como outros têm Paris. Daí a banda larga, a Zon e a Meo não passam estas coisas e oferecem-nos canais de milhares de especializações ridículas que permitem aos especialistas ridículos ganhar a vida. O canal de caça, o canal de touros, o canal de brasileiros que acreditam em bruxas, o canal dos polícias, o canal dos policiais onde morrem pelo menos três mulheres por noite, barbaramente (uma palavra cara aos jornalistas) assassinadas.

E a vida real continua a fornecer brilhantes IMZ. Veja-se a cobertura das conversações entre a Alemanha e a Grécia. Esqueçam o holograma da Europa e do Eurogrupo, o que interessa é a Alemanha, porque isto tornou-se um jogo de futebol entre os falsos paralíticos gregos e o verdadeiro paralítico alemão (frase muitíssimo cruel, mas se vier da boca do Oliver tem graça). Há os que torcem pelo alemão: “Esmaga o grego, dá cabo dos esquerdalhos, mata-os, aponta à jugular, faz sangue.” E há os que torcem pelo grego: “Dá cabo dos nazis, aperta o pescoço da velha, dá um chuto no tio, parte-lhe os óculos.” Etc. Esqueçam a seriedade da situação grega, queremos infotainment. Uma vez, um especialista perguntou a Stewart se ele conhecia (crise grega a quanto obrigas) a Ágora de Atenas. “Eu?”, disse Stewart. “Sou um judeu americano, tipos como eu só conhecem Akron, Ohio.”

See Ya, Jon.

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2 pensamentos sobre “SEE YA, JON

  1. A Clara F. Alves devia ser reproduzida para alegria das nossas mentes atazanadas por cretinices de “entendidos” em tudo ! Longa vida CFA e que venham estes artigos que nos dão consolo e a certeza de que há “mentes brilhantes” a intervir !

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