A festa do Qatar

(Carlos Matos Gomes, in Facebook, 05/12/2022)

Em que estás a pensar? Estou a pensar na festa do Qatar.

O que mais me atrai nas transmissões dos jogos de futebol do campeonato do mundo são as imagens das bancadas. Tenho fobia às multidões e portanto não me aproximo, mas imagino as multidões e vejo a imagem do tsunami da Tailândia, a arrastar tudo à frente da massa de água.

Nos ecrãs da televisão as multidões têm rostos, corpos, voz. São caras pintalgadas, corpos mais ou menos despidos, ou fantasiados, gritam, saltam, choram, riem, insultam, agridem-se, dançam, cantam.

De onde vêm estes seres, para mim exóticos, que se juntaram num deserto onde outros seres, também vindos de fora, ergueram sobre as areias arranha-céus, estádios, centros comerciais, estradas e até retângulos de relva verde como a da Inglaterra, ou da Irlanda? São alienígenas? Que pensam os apoiantes do Senegal, ou dos Camarões, os coreanos e japoneses, os australianos, os brasileiros ou uruguaios do mundo que os cerca e até dos mundos de onde vêm? O que pensam da falta de água no Sahel, por exemplo, ou da falta de cerveja no Qatar? O que pensam das mulheres? O que pensa cada um da decisão de ir assistir a um espetáculo de circo nas quatro ou cinco gigantescas tendas que alguém decidiu construir no meio de um deserto onde nenhuma obra do génio humano existira?

E se não existe qualquer pensamento, como as reportagens dos enviados das televisões nos revelam através dos gritos tribais dos elementos das claques? Esta seria, em minha opinião, a perspetiva animadora da ida das multidões ao deserto do Qatar:

Estaríamos, como admito, perante mais um grande evento de alienação! E a alienação é a válvula de escape que permite aos seres humanos escaparem ao drama da consciência da morte.

O alienado é um animal feliz como um bovino num belo prado, em desenvolvimento para abate, mesmo que o matadouro esteja perto! E a Ucrânia está perto, e também a Síria, o Iraque, a Etiópia, o Afeganistão onde morrem seres humanos nas guerras, de fome, de sede, de doença.

No entanto as multidões continuarão a ir alegremente em peregrinação a santuários, a autódromos de corridas de automóveis, a jogos olímpicos, irão tomar banho ao rio Ganges e assistir a concertos de música e luzes, irão a feiras e a regatas. Nunca perguntarão: Quem me mandou ao Qatar? (porque alguém os mandou!), nem quem os mandou ir a Meca, a Roma, ao Rock in Rio…

Pensar na causa dos acontecimentos prejudica a ordem natural da sociedade. Diria o doutor Salazar, se ainda por cá andasse: Se soubessem o que dói pensar preferiam ir ao Qatar.

A romaria dos governantes do mundo vai ao Qatar para acalmar os seus rebanhos nas pastagens de residência, mais do que incentivar os seus artistas jogadores! E os portugueses não ficam atrás.


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2 pensamentos sobre “A festa do Qatar

  1. O futebol é um instrumento do governo. No Portugal recente só houve um momento em que o futebol foi relegado para segundo plano e foi no tempo dos governos provisórios. Curiosamente, também foi esse o tempo em que a natalidade aumentou, foi o tempo da esperança. Depois, foi o retorno em força do futebol, de Fátima e do fado, além de outros epifenómenos exóticos como os discos voadores, dos videntes, dos economistas que falham todas as previsões, dos vendedores do património nacional, da ilusão do enriquecimento rápido pelos esquemas em pirâmide, da promoção das velhas figuras do antigo regime, da subordinação às instâncias internacionais como a CEE, a União Europeia e a OTAN. Até o sonho olímpico do desporto como apaziguador universal dos conflitos armados está a ser esmagado a favor de uma apropriação como forma de confrontação internacional. É uma forma de exercício do poder político centrada no curto-prazo, destinada a camuflar outras necesidades mais prementes e, como tal, destinada, mais cedo ou mais tarde, ao mesmo fiasco que já se verificou em 1974/75.

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