Uma frivolidade perigosa

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 13/08/2022)

Hoje, o peso de um mundo comum cada vez mais caótico rouba-nos a tranquilidade. É quando a nossa segurança pessoal parece esmagada por sombrias expectativas, erguendo-se como provável futuro coletivo, que mais necessitamos de um santuário onde possamos recuperar o equilíbrio e habitar na singularidade dos nossos corpos. Partilho com os leitores o bem que recebi de alguns dias de deambulação pelas praias que vão da foz do rio Ave, em Vila do Conde (onde é possível visitar a Casa-Museu José Régio), até à multitude de praias que da Póvoa de Varzim se estendem para Norte. Já em 1876, no seu delicioso livro, As Praias de Portugal-Guia do Banhista, Ramalho Ortigão dedicava uma particular atenção à vida balnear desta cidade. Segundo ele, em agosto e setembro, a Póvoa transformava-se numa enorme e cosmopolita “estalagem” onde se “albergam os romeiros” de todos as origens e estratos, incluindo o “poderoso comendador brasileiro, de camisa de bretanha anilada como um retalho de céu pregado no peito com um brilhante”. Nos dias que por lá passei, as brumas só se dissipavam pela tarde, conferindo uma proteção contra o calor excessivo e a maldição dos incêndios rurais, oferecendo ainda o benefício da maresia e do iodo, e o prazer de um banho de mar em águas energéticas, e menos frias do que muitas vezes os viajantes do Sul imaginam.

O mundo mais vasto, todavia, não deixa de nos impor o seu império. A guerra na Ucrânia prolonga-se. A perspetiva não é a de negociações, mas a de uma contraofensiva ucraniana no Sul, com o apoio das novas armas fornecidas pelos EUA e países da OTAN. Como se isto não bastasse, as relações entre Washington e Pequim estão na sua pior fase de sempre, após a visita da Speaker da Câmara dos Representantes à Formosa, colocando em causa os compromissos assumidos pela própria política externa norte-americana desde a década de 70. É frequente nos EUA, administrações em perda de apoio eleitoral atiçarem conflitos externos para inverter as sondagens, mas arriscar uma guerra com a China para não perder a maioria na Câmara dos Representantes ultrapassa todos os limites da imprudência.

No seu já clássico estudo sobre as causas da I Guerra Mundial, o historiador Christopher Clark designava como “sonâmbulos” aqueles políticos comuns (não havia nenhum “monstro” do tipo de Hitler ou Estaline) que entre 28 de junho e 3 de agosto de 1914, por atos e omissões, conduziram ao longo calvário da Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945). No caso vertente dos nossos dirigentes eleitos, também eles gente mediana, empurrada pela invasão russa da Ucrânia para a tarefa de serem codecisores em vitais matérias bélicas, o problema parece-me residir mais na frivolidade intelectual do que no sonambulismo. Putin apostou numa cartada militar que não lhe correu bem. Mas isso não significa que tenha sido derrotado, ou que seja razoável apostar numa estratégia de “derrotar a Rússia”, como é o mantra ocidental. A Rússia é um gigante bélico nuclear. Esta guerra trava-se ainda na Ucrânia, mas desde que o envolvimento da OTAN subiu para os níveis colossais atuais, passou a envolver quase diretamente as maiores potências militares do planeta.

Como sair daqui? Ou as armas se calarão com tréguas, onde todos perdem alguma coisa, mantendo, todavia, a face para uma solução negociada mais duradoura. Ou se continua a arriscar, degrau a degrau, mergulhar numa tempestade de destruição que – depois de arrasar a Ucrânia – terá o planeta como limite.

Professor universitário


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10 pensamentos sobre “Uma frivolidade perigosa

  1. Vou lendo aqui e ali, com muito moderado interesse, as opiniões do Viriato Soromenho Marques. Mais uma vez, abdicando deliberadamente de uma compreensão dos elementos conflituantes que estão presentes em cada sociedade e que constituem o seu elemento estruturante (ou nem sequer deles suspeitando, o que é mais grave vindo de quem domestica espíritos nos bancos da escola), acaba sempre com umas conclusões um bocadinho pífias, como aquela de uma guerra que começou em 1914 pela mera ocorrência de políticos sonâmbulos, para só terminar em 1945 (abrangendo por conseguinte e nesse período as duas guerras mundiais do século XX) sem no entanto se referir nunca à crise estrutural do sistema capitalista, que foi de facto o combustível essencial desses enfrentamentos. De permeio e mostrando a sua fidelidade ao “establishement”, lá junta convenientemente Hitler e Estaline no mesmo saco. É também desta cumplicidade objectiva com os interesses dominantes, ainda que disfarçada de “preocupação cidadã”, que se tecem as muitas malhas do fascismo que infelizmente e enquanto o sistema que o alimenta não for expurgado da face da terra, lá nos vem assombrar aqui e ali. É para esse peditório que este texto constitui uma dádiva.

    • Disse muita coisa e muito bem.

      Acrescento apenas, na linha do enunciado, que aquela contraofensiva Ucraniana no sul do país mencionada pelo autor do artigo é pura propaganda (irrealizável e inconcretizável desde há dois meses para cá) irrealista e que não serve nenhum propósito – aliás, até serve é para camuflar as inúmeras perdas de pessoal e material no seio das forças ucranianas, e ainda um reforço, após um mês de recobro, na intensidade da ofensiva russa, precisamente no sul do país.

      Por outro lado, aquela dicotomia negociações-desastre posta em evidência no final do artigo é uma narrativa um pouco exagerada para assustar ingénuos ou crentes que ainda acham que a) a Rússia está muito preocupada com negociações neste ponto dos eventos e b) que vai haver algum desastre nuclear certo num futuro próximo – se ignorarmos aquelas parvoeiras daqueles ataques e bombardeamentos tresloucados à central nuclear de Zaporizhzhia, e que os russos têm denunciado veementemente e repetidamente nos últimos dias/semana.

      A haver desastre, uma coisa é certa: não foram os russos que alguma vez o quiseram.

      Para já, e tendo em conta que (havendo ali problema) o Zelesnky pode ter a certeza que leva com um míssil nas trombas, não se prevê qualquer desastre a não ser que haja uma ameaça existencial à Rússia – a chave da sua doutrina nuclear.

      Mas o que vale agora é espalhar o alarmismo a todo o custo de maneira a camuflar a estupidez que medra na cabeça dos nossos (des)governantes, assim como o facto de não terem nenhuma visão estratégica para impedir os eventos que eles causaram em primeiro lugar (incluindo-se o iminente desastre económico que não recebe metade da atenção do nuclear), mas que será sempre atribuído na totalidade ao malvado Putin e ao reavivar duma Rússia czaristo-imperial.

    • Tentei publicar uma resposta ao teu comentário e ao texto do Soromenho, mas não deu. Vamos ver se consigo desta vez… Terá sido problema da plataforma?

    • Esta semana circula nos canais ligados às análises militares, páginas do jornal profissional dos fuzileiros USAmericanos: Marine Corps Gazette.
      FONTE: https://www.moonofalabama.org/2022/08/varoius-points-on-ukraine-and-media.html#more

      Deixo um aperitivo (tradução automática):
      «Ele retrata realisticamente o movimento russo inicial em direção a Kiev como uma finta. Essa também é minha opinião (do autor do blog MoonOfAlabama). A finta, com muito poucas tropas para realmente ocupar Kiev, tinha um propósito político e militar.

      Politicamente, pressionou o governo ucraniano a concordar rapidamente com as condições russas para um cessar-fogo. Isso quase funcionou quando as negociações entre a Rússia e a Ucrânia no final de março na Turquia tiveram resultados promissores. As negociações foram então sabotadas pela intervenção de Boris Johnson em Kiev, onde ele, falando em nome de Joe Biden, exigiu a continuação da guerra que Zelensky prontamente forneceu.

      Militarmente, a finta teve resultados quase perfeitos. Cerca de 100.000 soldados ucranianos foram fixados em torno de Kiev, enquanto as tropas russas da Crimeia se moveram quase sem oposição para conectar a ilha através de uma ponte terrestre ao Donbas e à Rússia e também conquistaram um grande ponto de apoio em Kherson, no lado oeste do Dnieper.

      A finta apressada teve um alto preço na forma de baixas russas (1351 segundo o Ministério da Defesa Russo), mas ajudou a estabelecer situações de frente no leste e no sul que permitiram a destruição em massa das forças ucranianas com um mínimo de baixas do lado russo.

      Quando a finta em direção a Kiev não foi mais útil, as forças russas voltaram às suas posições iniciais sem muita luta. Os ucranianos alegaram que isso era uma vitória, mas não tiveram quase nada a ver com a retirada bem planejada e executada.»

      E ainda esta parte (que estou a copiar do artigo no SouthFront cujo link está no artigo do MoonOfAlabama):
      «Marinus enfatizou como esses ataques russos no norte e no sul da Ucrânia evitaram bombardeios pesados de áreas civis, o que contradiz diretamente a propaganda da mídia ocidental sobre ataques russos a áreas civis.»

      Nenhuma destas palavras passará na “imprensa “livre” mainstream do Ocidente. Nenhum superficial ouvirá/lerá isto. Sejam Soromenhos que se apresentam como “professor universitário” no seu jornal mainstream, ou sejam pessoas comuns numa conversa de café, vão continuar a saber o mesmo: NADA. Para eles há apenas a propaganda do “Ucranianos derrotaram Russos em Kiev”, dos “bombardeamentos indiscriminados dos criminosos de guerra Russos”, e até exercícios de cambalhotas a tentar explicar como a Amnistia Internacional é que é “putinista”, e como os crimes de guerra Ucranianos são tácticas “exemplares”.

      Ou seja, só saberão o que a superficialidade lhes permite saber, o pensamento único, as manchetes que Kiev e Washington querem que maioria veja: Putin mau. Zelensky bom. Rússia invasora. NATO defensiva. Azov democratas. Separatistas ditadores. Nazis não existem, são só propaganda do Kremlin. A guerra tem de continuar até ao último Ucraniano porque estão quase a ganhar e nos defendem a todos. Até vem aí uma contraofensiva! Está quase! Etc.

      Não Soromenho, o problema não é a frivolidade. Até porque não há futilidade nenhuma neste conflito. Há sim questões existenciais, tanto para o povo Russo, como para os Ucranianos que só estão vivos no Donbass e Crimeia graças à intervenção Russa. O problema, o realmente perigoso, é a superficialidade e a extrema ignorância que a ela vem atrelada.

      E é ainda pior quando essa ignorância é partilhada pela esmagadora maioria, cada vez mais autoritária, que critica ferozmente (Bruno Amaral Carvalho), censura (RT, Sputnik), persegue (Edward Snowden), processa (Alina Lipp), prende (Julien Assange), e mata (Shireen Abu Akleh) os que se informam e tentam informar os outros.
      Foi nisto que o Ocidente se tornou. É a este regime que chamam “democracia liberal”. Querem-no impor em todo o Mundo, e querem esmagar todos os países e povos que resistirem. Provocam até às linhas vermelhas, planeiam guerras proxy, e até arriscam a 3ª (e última) Guerra Mundial. Isto não é frívolo. É existencial.

      Este é o momento em que se decide o futuro da humanidade. Como vamos viver em cada país. Como será a convivência entre países. E se vamos sobreviver a esta mudança da ordem mundial, ou todos perecer num Inverno nuclear. Se sobrevivermos, vamos ter vários países fortes sem bases militares no estrangeiro, ou vamos ser (ainda mais) vassalos de um império que tem 800 bases em todo o planeta, e cujos políticos corrompidos pelos oligarcas do Complexo Militar Industrial provocam guerras só para manter a hegemonia do império?

  2. Sim: já são vários séculos a roubar/saquear riquezas de povos autóctones.
    A guerra por procuração Russia – Ucrânia é mais do mesmo.
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    DEVOLUÇÃO DE RIQUEZAS ROUBADAS:
    1- em vez de ameaças de estrangulamento económico (a quem não está interessado em vender as suas riquezas a multinacionais ocidentais);
    2- em vez de andarem a usar riqueza roubada para investir em novos saques (ex: mandarem armas e dinheiro para os mercenários de Zelensky)…
    devolvam é riquezas roubadas!!!
    SIM:
    – existem muitos muitos povos autóctones que reivindicam a liberdade de explorar as suas riquezas naturais através de empresas autóctones… e que foram impedidos de ter essa liberdade devido às SABOTAGENS SOCIOLÓGICAS PROMOVIDAS PELO CIDADÃO DE ROMA EUROPEU: sim, durante décadas o cidadão de Roma europeu fabricou, focos de tensão (Iraque, Líbia, etc etc), situações de caos (guerras, revoluções, golpes, manipulação de campanhas eleitorais) em várias regiões do planeta… para que… exactamente, inevitavelmente, fatalmente, exista o mesmo resultado final: no caos… a exploração de riquezas deve ficar na posse de multinacionais Ocidentais.
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    Os boys da ‘guerra por procuração’ (vulgo mercenários de Zelensky) ao serviço do cidadão de Roma europeu:
    –> para além de usarem milícias neonazis para silenciar aqueles que defendem negociações de paz…
    –> também bombardeiam os seus próprios soldados: eliminação de testemunhas de crimes de guerra cometidos por Kiev.
    -> mais, bombardeiam uma central nuclear controlada pelos russos: procurando provocar uma reação translocada dos russos: que seria condenada mundialmente.
    -> e mais, usam civis como escudos humanos [até a normalmente anti-russa Amnistia Internacional não teve outra alternativa senão reconhecer isto].
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    Toda a gente sabe:
    -> OS BOYS E GIRLS DO CIDADANISMO DE ROMA EUROPEU ESTÃO A INVESTIR NO SAQUE DA RUSSIA: um território imenso com apenas 140 milhões de habitantes.
    —>>> armas da NATO para a Ucrânia e sansões económicas à Russia: o cidadão de Roma Ocidental espera, assim, colocar a Russia ao nível do tempo de Ieltsin: um caos… e multinacionais ocidentais a fazer compras no caos.
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    Um foco de tensão criado pelos gurus da NATO em conluio com os mercenários de Zelensky:
    – a ameaça de, via Ucrânia, estrangular a economia russa, leia-se: cortar o acesso da Russia ao oceano Atlântico.
    [nota: depressa inventaram um pretexto para bloquear o transporte doméstico de mercadorias Russia Kaliningrado]
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    Separatismo Identitário (separatismo-50-50), sim, óbvio:
    –>> na origem da nacionalidade esteve o Ideal de Liberdade Identitário:
    – «ter o seu espaço, prosperar ao seu ritmo».
    —>>> NÃO, não foi o cidadanismo de Roma (imbuído de um ódio tiques-dos-impérios): ódio à existência de povos autóctones dotados da liberdade de ter o seu espaço e prosperar ao seu ritmo (terem as suas empresas autóctones, etc).
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    —>>> Os Identitários reivindicam o Ideal de Liberdade que esteve na origem da nacionalidade.
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    SEPARATISMO 50-50:
    – os globalization-lovers, UE-lovers, etc, que fiquem na sua (possuem imensos territórios ao seu jeito)… respeitem os Direitos dos outros… e vice-versa.

  3. pois é … os terroyankees querem, à viva força, a CRIMEIA e a FORMOSA para lá colocarem bases militares estratégicas, senhor_professor_doutor @vsm …

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