Agora vejo ao longe

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/05/2022)

Miguel Sousa Tavares

Esta semana vim a Lisboa — uma semana bem escolhida, a semana dos jacarandás em flor. Já não vinha aqui há dois meses, desde que me mudei, de armas e bagagens, para o Sul-Sul, onde Portugal acaba. Não foi um impulso nem uma decisão covid. Foi um projecto de vida, longamente meditado e amadurecido, que passou por um ano de busca de um local onde plantar uma casa e depois por dois anos de construção da casa, imaginada, desenhada e acabada ao mais pequeno pormenor ao longo de incansáveis viagens e infinitas noites acordado — durante e apesar dos dois anos de covid e confinamentos e dificuldades de toda a ordem. Mas a casa fez-se e plantaram-se árvores, nasceu um jardim, um pequeno pinhal, uma vinha, terraços, fontes, um mar, um céu de estrelas e uma ilusão de eternidade ou de felicidade em frente e para sempre. Mas tudo tem um preço: nada disto teria sido possível sem as redes sociais. E é disto que eu vos quero dar testemunho, não dar exemplo: nada disto me teria sido possível se ao longo destes anos eu tivesse perdido um minuto que fosse nas redes sociais. Eu jamais estive no Facebook, no Twitter, no Instagram, no TikTok, no WhatsApp, no Não Sei Quê — um minuto que fosse. E sabem que mais? Não apenas tenho sobrevivido como tenho aproveitado para viver. Para aproveitar o tempo assim não desperdiçado para imaginar, sonhar, meditar, fazer, construir.

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Agora, lá onde vivo, acordo de manhã, tomo um duche num chuveiro que tem uma janela de onde vejo os melros, os rabilongos, as rolas e os coelhos, depois vou até à aldeia, onde compro os três jornais em papel que leio todos os dias (mais os três que leio online, porque, sim, a net eu uso como instrumento de trabalho), e sento-me a tomar o pequeno-almoço, conversando com os velhos da terra, avaliando de que lado vai soprar o vento e se é dia para ir à praia ou ao mercado do peixe, e em tudo isso eu posso perder tempo porque não tenho de postar fotografias a dizer onde estou nem de escrever posts ou de alimentar as minhas contas de correspondência com gente que não está ali a conversar comigo cara a cara. Assim fazendo, sei que estou vivo e não apenas a imaginar que estou a viver. Porém, é verdade que na sua instantânea sabedoria, na sua irreprimível ânsia de jamais chegarem atrasados ao lado certo de cada causa, os das redes sociais vêem tudo muito mais depressa e muito mais irremediavelmente do que eu, que me tomo de vagares, de dúvidas ou de memórias que tento esclarecer nos livros da estante, de pensamentos ao luar ou de perguntas estúpidas que faço a mim mesmo, sem “amigos” de Twitter para me socorrerem. E, por isso, perdoem-me se me ocorrem comentários porventura tão deslocados como os que abaixo se seguem.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 Durante anos fiz a Avenida de Ceuta duas ou três vezes ao dia e não me lembro de ter presenciado mais do que um acidente ou atropelamento. Mas agora que ao fim de longas obras entraram em vigor os novos radares panorâmicos controlando a velocidade máxima de 50 km/hora, assisti a dois acidentes em três dias. Pergunto-me se não terá sido a distração de circular a passo de caracol numa avenida com três faixas de rodagem e que durante o dia está completamente desimpedida que os causou. Agora, um deputado municipal do Livre — aliás, ‘o’ deputado do Livre — lembrou-se de propor, e os outros da oposição de aprovar, a velocidade máxima de 40 km/hora em toda a cidade de Lisboa. Vai acontecer uma de três coisas: ou ninguém cumpre e ninguém consegue fiscalizar, ou ninguém cumpre e a polícia vai dedicar-se a um massacre fiscal sobre todos, ou todos cumprem e o trânsito ficará caótico, as filas imensas e a poluição insuportável. Mas, de caminho, o mesmo deputado e os seus prestimosos apoian­tes aprovaram também a proibição de circulação na Avenida da Liberdade e ruas adjacentes aos domingos e feriados — sem estudos prévios, sem consultar ninguém, sem ponderar os interesses económicos atingidos, sem pensar se as pessoas queriam. Não há pior demagogia do que a destes impulsos pseudomodernos e politicamente correctos, e são sobretudo os partidos minúsculos que gostam de recorrer a eles para dar nas vistas: um só deputado decide sobre a vida prática de milhares ou milhões de pessoas, inchado no seu pequeno-grande poder. E os outros vão atrás, ou porque têm medo de não parecerem “modernos” ou porque a sua grande visão para a cidade é lixar a vida a quem ganhou as eleições. Podiam antes ocupar-se de causas consensuais, tais como proibir a atracagem de navios de cruzeiro, os grande poluidores do ar de Lisboa, enquanto não tivessem terminais de carga eléctricos, ou proibir a poluição visual dos guarda-sóis e cadeiras em cores berrantes dos patrocinadores nas esplanadas da cidade. Mas para isso era preciso coragem, atingir interesses organizados e concretos, não bastando a falsa coragem de atingir a população anónima e silenciosa. Ainda bem que já não vivo em Lisboa.

3 A vida política portuguesa está tão interessante que há dias o principal diário do país fazia manchete com a descida do IVA nos produtos de “higiene menstrual”. Aliás, uma proposta de outro partido de um só deputado, o PAN, pôs a questão menstrual no centro do debate do Orçamento no Parlamento. Em nome “das mulheres e outras pessoas com útero” (é assim que se deve dizer agora), a deputada Surreal queria introduzir uma licença de menstruação laboral, copiando o que terá visto em Espanha. A questão acirrou os ânimos de umas deputadas contra as outras, fazendo estalar a guerra entre o “feminismo bacoco” e o “retrocesso civilizacional”. Senti-me um saloio de visita à capital.

Não há pior demagogia do que a destes impulsos pseudomodernos e politicamente correctos

4 Entretanto, nas suas intermináveis, doutíssimas e chatérrimas alegações a favor da regionalização, a dupla Valente de Oliveira/Miguel Cadilhe veio, entre outros, questionar o argumento de que a coisa engrossaria ainda mais o já desmesurado número de funcionários do Estado. Não, dizem eles, pois que com a transferência de competências do Estado central para as regiões muitos funcionários de Lisboa mudar-se-iam alegremente para a província. Dias depois, ficou a saber-se que o programa de incentivos que o Governo lançou há dois anos — aproveitando as apregoadas novas tendências de trabalho à distância e a apetência pela vida no campo — havia atraído exactamente dez entre 733.495 funcionários públicos dispostos a trocarem o centro pela periferia. Também já se tentaram mudar serviços em bloco — o Infarmed ou o Tribunal Constitucional — e a revolta dos funcionários matou à nascença as iniciativas. Ou se muda radicalmente o estatuto dos funcionários públicos, arriscando uma guerra civil ou não adianta estar com teorias que a realidade não sustenta.

5 Dos jornais cito as conclusões de dois estudos, daqueles que, verdade se diga, nunca se percebe bem com que rigor são feitos, mas que produzem sempre conclusões muito citáveis: “Um terço dos alunos apresenta sinais de sofrimento psicológico; mais de metade dos professores sente-se triste e irritada.” Ao que parece, concluindo, uns e outros não se suportam. Assim vai a nossa escola.

6 Seria sem dúvida interessante — e importante — perceber as diferenças que separam os dois candidatos à liderança do PSD. Mas parece que tal nos é vedado pela sobrecarga da agenda do candidato Luís Montenegro. Seria muito curioso conhecer a agenda do candidato para saber que coisas tão importantes e inadiáveis o impedem de ter uma hora disponível para debater com o seu adversário.

7 Depois de sucessivas ameaças à Rússia, Biden foi à Ásia ameaçar a China com outra guerra. Por onde passa, o homem é uma bomba nuclear em movimento. Observadores bondosos trataram logo de classificar as suas declarações como “gafe” — mais uma. Mas logo no dia seguinte, em Davos, o secretário-geral da NATO, Stoltenberg, pegou na “gafe” e avisou os países ocidentais para se restringirem no comércio com a China, pois estava ali o próximo inimigo. Estarei enganado ou qualquer coisa no nome NATO remete para o Atlântico Norte?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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4 pensamentos sobre “Agora vejo ao longe

  1. MST é o estereótipo daquele conservador óbvio, mas que fica todo ofendido quando alguém o evidencia. São artigos como este que reforçam a necessidade de ler tudo o que sai dali com um grão de sal. Ou um punhado em certas alturas.
    Especulo, mas não me surpreendia se MST fosse daqueles que reclama e denigre uma plataforma como o Youtube, por exemplo, (onde o muito mau e o muito bom convivem num equilíbrio regulado por algoritmos), mas depois têm TVs ligadas 24h/dia pela TVI pela casa toda.
    A sociedade atual está muito para lá da capacidade de análise do senhor. Ficou enamorado pelas aldeias alentejanas dos tempos em que ia para as herdades dos primos caçar tordos e acha que a vida nesses desterros é toda assim. Ignora a glorificação da ignorância que ainda acontece no interior português, a qual está a ser cultivada e recolhida pelos trágicos Venturas deste país. Quero ver o que vai escrever quando a Junta de Freguesia onde construiu o palacete que refere no artigo eleger o fascista de armário lá do sítio pelo Chega nas próximas autárquicas…
    Pronto, tudo o que apareceu depois de 1984 é mau, tudo o que existia antes é perfeito. Certamente achará estranho porque muitos “preferem” viver que nem sardinhas em lata nos bairros lisboetas quando claramente podiam ir morar para aldeias no interior para ler jornais em papel, pois aparentemente há qualquer coisa em ter uma folha de celulose a borrar os dedos de tinta que retira legitimidade em ler a mesmíssima notícia no ecrã do telemóvel ou tablet. Deus criou as árvores para que MST não tenha de olhar para um ecrã mais de 10 minutos por dia…
    Mas vá, como a NATO e Biden já andavam a borrar as cuecas ainda MST não era nascido, é legitimo para ele criticar o que se passa por aqueles lados de forma objetiva. Ao menos isso.
    MST seria dos melhores jornalistas do mundo se conseguisse colocar a nostalgia dos Verões de criança no monte alentejano dos parentes e aceitasse que o mundo não pode parar de evoluir apenas porque o deixa incomodado.

  2. Bem,para ver ao longe estamos a passar de uma sociedade material onde tudo é facilmente acessível com a globalização para uma sociedade menos materialista que corre o risco de fazer os jovens voltarem à dura realidade.

    Para ver ao longe é fascinante ver como as democracias são incapazes de fazer um diagnóstico honesto:
    – o perigo interno – Davos e wokism – é muito maior do que o perigo externo – regimes autoritários
    – a transição energética e o esgotamento dos recursos naturais (cada vez mais difícil, e portanto caro, de extrair) fazem mais pela inflação do que a desglobalização
    – as actuais energias renováveis são insuficientes e ineficientes e não serão capazes de produzir um crescimento verde, e não se sabe se serão encontradas energias melhores
    – a circularidade produz necessariamente perdas em cada ciclo e, portanto, não leva a nenhum crescimento.

    Para ver ao longe
    é compreensível que os intelectuais da Bloomberg estejam preocupados com a perspectiva da desglobalização, porque derreterá os lucros das multinacionais e causará a ruína das finanças internacionais…

    Mas, para a Humanidade, esta é uma excelente notícia, porque esquematicamente,excepto para os ocidentais que sempre viveram sobre o sobreconsumo, desperdício, criação de falsas necessidades, uma overdose de tudo ao ponto da repugnância.
    – desglobalização = fim da exploração dos trabalhadores asiáticos;
    – desglobalização = fim da sociedade materialista do sobreconsumo e do desperdício;
    – desglobalização = redução da poluição através da paragem do transporte internacional;
    – desglobalização = deslocalização dos centros de produção (agricultura, pecuária, indústria, etc.) e regresso do pleno emprego em cada país;
    – desglobalização = fim da normalização dos modos de consumo, pensamento e cultura: cada país recuperará a sua própria identidade, a sua história, as suas tradições, o seu folclore, etc;
    – globalização = fim do domínio dos lobbies financeiros e da lógica do produtivismo… e regresso a uma sociedade mais humana, mais justa e mais equitativa.

    Não devemos ter medo das crises actuais, da desglobalização e do colapso do mundo ocidental… É uma oportunidade para reconstruir um novo mundo mais justo, mais humano, mais respeitoso da Terra, mais harmonioso, mais espiritual!

    A caixa de Pandora está aberta e muitos desastres têm vindo a sair dela há alguns anos, mas não devemos esquecer que no fundo da caixa está a Esperança… A esperança de uma nova e feliz humanidade que, se assim o desejarmos, poderemos construir juntos sobre as cinzas do actual mundo moribundo…

    Para ver ao longe há um mês atrás, a inflação seria temporária.
    Há uma semana atrás, a inflação tornar-se-ia um problema.
    Hoje em dia, fala-se de escassez.
    Amanhã vamos falar sobre a fome no Ocidente?

    Afinal, o globalismo enriqueceu as grandes empresas, causou guerras por causa dos recursos energéticos e matérias-primas, e escravizou a maior parte do mundo a um sistema. E se, na visão de um novo paradigma, este sistema se tivesse tornado completamente obsoleto, desaparecendo para dar lugar a um novo sistema baseado em produtos locais, comunidades de interesse, o desaparecimento de Estados como os conhecemos há centenas de anos, … E se esta escassez de energia forçar o aparecimento de uma nova fonte de energia, muito mais barata, muito menos poluente, que transformaria radicalmente o nosso modo de vida e de funcionamento. O fim de um ciclo é muitas vezes tão doloroso como o parto.

    Para ver ao longe,uma nova ordem mundial, não a dirigida pelos EUA como Biden quer, mas uma nova ordem mundial onde os EUA e os europeus já não poderão pilhar a riqueza do mundo e onde todos terão de apertar o cinto,com uma ditadura ecológica para mudar os nossos padrões de consumo… Bem, estamos a chegar lá por outro meio!!!

    Para ver ao longe a escassez virá ou de uma falta de matérias-primas ou de objectos que não podem ser fabricados devido a problemas na cadeia de abastecimento. Virá também do facto de muitas pessoas já não poderem pagar artigos que não valiam muito no mundo anterior.

    A crise é também o resultado da divisão de valor entre os países ocidentais e os outros. Lembro-me de me terem dito no Vietname por volta de 2000 que para os sapatos Nike fabricados nesse país, o salário do jogador de basquetebol americano que os promoveu era igual ao salário total pago aos trabalhadores vietnamitas que os fabricavam. Isto é normal?

    Para ver ao longe,não esqueçendo a crise bolsista anunciada antes da emergência do Covid, a guerra e o Covid são apenas aceleradores ou reveladores do impasse da globalização.

    A crise mundial ligada aos subprimes revelou o seu início, seguida da crise europeia devido à dívida grega e Portuguesa, que nos levou a uma “flexibilização quantitativa” com taxas de juro negativas.

    O que é que a história vai recordar? Provavelmente mais do que uma simples crise devido a pandemia e guerra, uma versão que é muito conveniente para os nossos líderes.

    Para ver ao longe que a contenção drástica feita pelos chineses à sua própria população é a forma mais segura de apoiar o seu aliado russo e de enfraquecer consideravelmente o Ocidente.

    Não é por acaso que Kissinger (um grande representante do Estado Profundo) nos está a dar uma demonstração de retrocesso ao pedir que a paz seja rapidamente implementada entre a Rússia e a Ucrânia. De que outra forma espera que os nossos governos implementem o controlo social sem equipamento chinês de vigilância electrónica? Nunca esqueçamos que os chineses são excelentes estrategas, porque para eles o tempo não tem a mesma dimensão que para os nossos governos, que estão com pressa.

    Para ver ao longe,será altura perfeita para o Grande Reset!
    Reporão todos os relógios, seguir-se-á um longo período de caos e o governo mundial será instalado, com novas regras e novos paradigmas..

    Quem está a puxar os cordelinhos de uma escassez de energia que as nossas centrais eléctricas teriam tornado possível aliviar para evitar fazer contratos mortais com os EUA para gás de xisto? Quem está a bloquear as matérias-primas nos portos? Quem está a pressionar a China, que nunca faz nada em vão, para mostrar ao mundo que é resistente à entrada da COVID, e que por isso resistiria a um ataque biológico mais grave… Como a varíola humana, para a qual nos preparamos para fabricar uma vacina, talvez! Quem representa a “vida planetária” em 2 blocos: os bons e os maus da fita?

    A Europa imprime esta visão maniqueísta aos EUA porque temos uma Europa de reis infantis que não suporta contradições e carece de profundidade, mas até onde nos conduzirão estas obrigações para com os EUA, que já está a planear proteger Taiwan?

    Aonde conduzirá a política pró-natalista dos EUA que leva as mulheres a lutar pelos seus direitos em vez do clima? Para onde vão estes governos que estão a rearmar-se com a firme intenção de iniciar uma guerra mundial que o seu povo não quer? Não haverá um bloco de super-bons e um bloco de super-vilões, como nos dizem as Maravilhas (23 filmes para a saga Infinity!), haverá povos que as multinacionais que vendem armas e vacinas não conseguem financiar, morrendo de miséria e fome por causa da escassez orquestrada pelos seus próprios governos, povos que irão lutar, por falta de qualquer outro futuro possível.
    “Até agora estou bem”, diz o homem que cai do 40º andar.

    Estes belos raciocínios que não ressoam nos meios de comunicação social só existem para pôr todos a dormir Enquanto outros forram os seus bolsos, aproveitando a informação real e as alavancas do poder na sua posse.
    Um pouco de cultura económica (ou de consciência), um pouco de observação do mundo real e é possível distinguir rapidamente as forças que governam o mundo.

    Obrigado Miguel por veres ao longe.

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