Olha que não Daniel, olha que não!

(António Filipe, in Expresso, 02/05/2022)

Meu caro Daniel Oliveira,

Desde muito jovens que somos militantes de muitas causas e que nos cruzamos nesta vida. Encontramo-nos acidentalmente com alguma frequência, trocamos impressões com enorme cordialidade sobre os mais variados assuntos, fundamentalmente sobre a vida política, que acompanhamos apaixonadamente. Sabemos do que cada um de nós vai escrevendo e dizendo em público. Temos imensos amigos comuns e creio poder dizer que somos amigos. Concordamos muitas vezes e discordamos outras tantas, mas temos em comum o facto de, como escreveu José Fanha, trazermos o mês de abril “a voar dentro do peito”.

Na passada semana ouvi uma crónica na TSF onde atacas duramente o PCP a propósito do que consideras ser a sua posição sobre a Ucrânia. É certo que atacas a hipocrisia de outros partidos (designadamente o PSD e o CDS) por criticarem o PCP, quando fizeram o que fizeram sobre o Iraque, mas a centralidade da crónica é sobre o PCP e é isso que me merece reparo e, mais que isso, discordância.

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Passo por cima da adjetivação: posição “inaceitável, esdrúxula, insuportável, revoltante”, nas tuas palavras. Entendo a violência destas qualificações como uma espécie de tributo a pagar ao macartismo reinante. Qualquer referência ao PCP sem ser nesses termos seria porventura entendida como contrária ao esforço de guerra do Ocidente e sujeita a todos os vitupérios nas redes sociais e fora delas.

A posição do PCP, em teu entender, merece essa qualificação, porque o PCP teria “posto em causa que houve uma invasão”, logo, isso equivale a uma não condenação. Ora, caro Daniel, nada legitima essa conclusão. Desde logo porque, se nem todos os dirigentes do PCP qualificaram a guerra da Ucrânia usando o termo invasão, houve outros, não pouco responsáveis (e nem me refiro a mim próprio), que o usaram. Mas mais importante que o termo usado, seja invasão, guerra, conflito, ou seja o que for, o facto é que não houve um único dirigente do PCP que se tenha pronunciado que não a tenha condenado.

É curioso que os comunistas, que sempre foram acusados pela comunicação social mainstream de dizerem todos o mesmo (a cassette) agora são acusados de dizer coisas diferentes, e como não usaram todos o substantivo comum “invasão”, foram condenados a não ter condenado aquilo que inequivocamente condenaram.

Adiante na tua crónica consideras que o PCP terá baseado a sua posição em três argumentos, a saber: a) a Ucrânia não é democrática; b) a questão da segurança da Rússia; c) a discordância com o armamento da Ucrânia.

São de facto três questões que o PCP tem vindo a referir e que são questões relevantes. O problema é que o PCP não apoia a invasão. Condena-a. E portanto, é totalmente abusivo dizer que o facto de alguém (neste caso, um partido) pretender contextualizar um assunto aduzindo factos que são deliberadamente ignorados pelo maniqueísmo reinante, significa apoiar uma invasão.

Mas vejamos cada um deles: que a Ucrânia não é democrática, que quase todos os partidos estão ilegalizados (o Partido Comunista desde 2014) e que forças político-militares assumidamente nazis foram integradas formalmente nas Forças Armadas ucranianas não é questão de opinião. É factual. Mas não ignorar isso, não significa apoiar uma invasão. Afirmas e bem, que o PCP não apoiou a invasão do Iraque apesar de Saddam ser quem era. Tens razão. O PCP nunca apoiou invasões externas para mudar regimes políticos, e no caso da Ucrânia também não apoia. Haverá em Portugal quem, depois de durante muitos anos ter colocado Putin num pedestal, o derrube agora para colocar Zelenski no seu lugar. Mas o PCP, que nunca colocou Putin em nenhum pedestal, também não se sente obrigado a erguer estátuas a Zelenski para expiar pecados que nunca teve.

A segunda questão diz respeito à segurança da Rússia. Escrevia Mário Soares em 2008, perante o alargamento da NATO para leste, que isso não poderia deixar de ser sentido pela Rússia como uma ameaça. Escreveu Kissinger também já há alguns anos que a Rússia nunca poderia consentir a entrada da Ucrânia na NATO. Não ignorar este facto é apoiar uma invasão? Não é. O vendaval de críticas ao PCP e a muitas personalidades que referem o alargamento da NATO para leste como uma das causas desta guerra não tem nada a ver com qualquer apoio à invasão da Ucrânia. Deve-se ao facto de os poderes dominantes, incluindo a comunicação social mainstream, não suportarem qualquer crítica ao papel da NATO, dos EUA e da UE enquanto potências agressivas e ameaças à paz mundial.

A terceira questão é o armamento da Ucrânia. A comparação que fazes com Israel e a Palestina tem toda a razão de ser, e só dá razão ao PCP. De facto, o PCP não podia ser mais solidário com o povo palestiniano, sujeito à mais ilegal ocupação, à mais brutal repressão e a um regime de apartheid que conta, como bem sabemos, com o apoio ativo dos EUA e com a complacência da UE, mas nunca passou pela cabeça de ninguém do PCP pensar que a resposta é armar a Palestina até aos dentes para que, perante a desproporção de forças existente, resista até ao último palestiniano.

Referes o apoio ao Vietname, mas aí a comparação é deslocada. A participação dos EUA na guerra do Vietname, em nome da luta contra o comunismo, resulta da decisão de envolvimento militar norte-americano destinado a impedir que o regime corrupto instalado no sul desse país fosse derrubado pelo seu próprio povo, o que acabou por acontecer à custa de muitos milhares de mortos.

Podemos continuar esta conversa, caro Daniel, um dia destes em que nos encontremos por aí, com a cordialidade de sempre, na concordância e na discordância, mas para já o mais importante é fazer o que se puder para que esta guerra termine tão brevemente quanto possível e para que não se instale entre nós, portugueses, um clima de intolerância que pode conduzir a resultados funestos.

Na tua crónica, Daniel, dizes muitas coisas acertadas, mas no que se refere aos fundamentos da crítica ao PCP, atrevo-me a recorrer a um clássico: olha que não, olha que não!

António Filipe


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12 pensamentos sobre “Olha que não Daniel, olha que não!

  1. Oh António você não percebeu o Daniel ainda. O Daniel é um gajo “porreiro” com boas ideias, pensa por si, etc. etc. Só tem um problema: è que precisa de “PALCO” e de fazer pela vida. Ora se fosse defender o PCP ou se aproximasse das suas ideias, lá ia o palco dele. Também é um rapaz com algum medo, e por esse facto não consegue sair da onda…

    • O António Filipe respondeu com classe.
      Você respondeu com a verdade crua, aquela que dói que se farta a quem não a quer ouvir.
      Aplaudo a cordialidade e paciência dos Comunistas portugueses neste assunto, e noutros.
      Mas estou também no mesmo estado em que o VESPASIANO está: sem paciência para aturar montes de merda com a educação que eles deixaram de merecer.
      E o Daniel, por seguidismo ou medo de perder o palco, voluntariou-se para fazer parte desse monte de forma indistinguível daqueles de quem aparentava ser opositor. Foram-se as aparências, ficou a verdade:

      Isto é tudo um putedo.

      Salvam-se os Comunistas, com os seus defeitos bem conhecidos, mas ainda assim bem afastados do tal monte…
      O meu nível de paciência para com o putedo chegou a zero. A partir de agora é tudo corrido ao murro e pontapé, na forma escrita obviamente.
      Quem convida o “comander in chief” de batalhões como o Azov para falar no nosso parlamento, sem direito a perguntas, só merece que eu os repudie. Faço parte dos 23% de portugueses, segundo certa sondagem, que concorda com a posição do PCP.

      É engraçado como só tenho acesso aos textos do Daniel Oliveira a partir da Estátua De Sal (era o que faltava eu financiar o grupo Impresa…), e quando deixei de os ler aqui, percebi logo qual era a posição do dito cujo sobre esta guerra.
      Agora, este artigo do António Filipe esclarece ainda mais e confirma a minha suspeita sobre o avençado da Impresa. Por um lado, é falta de pluralismo da Estátua De Sal, por outro lado é serviço público ter deixado de publicar quem só escreve asneiras ou repete asneiras dos outros, e dedicar antes o espaço a todos os que foram esmagados pela “imprensa livre”.

        • Foi o que eu suspeitei quando reparei que já não havia textos do DO por aqui.
          Era a única coisa para a qual eu ainda ia abrindo esporadicamente excepção às minhas sanções pessoais contra a “imprensa livre” televisiva portuguesa: ver o DO no Eixo do Mal. Agora nem isso.

          Já devia ter percebido mais cedo, quando ele passou 2019 e 2020 inteiros sem fazer referência (que eu saiba) ao golpe fascista sangrengo na Bolívia e seus desenvolvimentos, com enorme ingerência dos EUA e silêncio ensurdecedor da UE.

          Acho que falou só uma vez, e foi para comentar que o Presidente NOVAMENTE ELEITO POR VONTADE POPULAR DEMOCRÁTICA estava realmente há muito tempo no poder…
          O mesmo argumento nunca foi usado sobre Merkel, tem graça.

          Mas mais vale abrir os olhos tarde do que nunca. O DO enganou-me até então. Agora não engana mais. Realmente, para megafones da propaganda do imperialismo da “democracia liberal” já chegam os outros.
          E sempre me dá outro gozo poder dizer que sanciono a “imprensa livre” televisiva portuguesa a 100%.

      • Carlos Marques, é sempre um gosto ler o que escreve com a clareza e a arte que eu gostaria de ter.
        Concordo totalmente consigo quando diz que quem convida o “comander in chief” de batalhões como o Azov para falar no nosso parlamento, sem direito a perguntas, só merece repúdio. E acho que a História dirá um dia que tal evento configurou um dos episódios mais vergonhosos do Portugal democrático. Isto se houver quem a possa escrever, pois a aprovação do novo “Lend-Lease” de 33 mil milhões, mostra que os falcões de Washington estão dispostos a levar esta guerra até às últimas consequências e a incendiar a Europa e o mundo, para concretizar os seus objetivos.
        Não sendo eu do PCP, também faço parte dos tais 23%, e até acho que poderemos ser mais, e que a percentagem aumentará à medida que formos tomando conhecimento dos tiques totalitários desta rapaziada que vem do leste, como os que manifestou a embaixadora da Ucrânia e o outro senhor que preside à associação deles.
        Congratulo-me pelo facto de a sensatez não ser exclusiva do PCP e, embora entenda o tom diplomático de António Filipe, o meu nível de paciência para aturar os servidores dos “donos disto tudo” e as hordas de mentecaptos radicalizados pela lavagem cerebral feita pelas televisões e pelas redes sociais, também já é zero.

        • Escreveu com toda a arte e toda a clareza:

          “também faço parte dos tais 23%, e até acho que poderemos ser mais, e que a percentagem aumentará à medida que formos tomando conhecimento dos tiques totalitários desta rapaziada que vem do leste, como os que manifestou a embaixadora da Ucrânia e o outro senhor que preside à associação deles.”

          Assino por baixo, e espero que assim aconteça.

          Que a verdade venha ao de cima, como as “armas de destruição massiva do Iraque”.
          Acho que muito do nosso futuro, no que à verdade diz respeito, está agora nas mãos de Priti Patel (Ministra do Reino Unido) que pode defender o jornalismo, ou mandar Assange servir de “exemplo” no gulag americano…

          Na versão do textp do blog Ladrões de Bicicleta, em que tive conhecimento da tal sondagem dos 23%, a versão deles é que esta carrada de propaganda e mentira é tal, que mais cedo ou mais tarde dará um coice contra o feiticeiro. E que, aliás os tais 23% já podem ser indício disso, pois com tanta imposição de pensamento único e ataque a quem discorda, se fossem eficazes, esses 23% não chegariam sequer aos 5% dos votos do PCP.

          E como alguém disse noutro artigo, é um perigo e erro trágico ter agora a mania de chamar “putinista” a todos os que discordam de alguma parte da narrativa. Até ao Oliver Stone (realizador do filme sobre Snowden) já chamaram de “propagandista de Putin” num artigo da Visão (só vi o título no SAPO, nem tive estômago para abrir).

          E agora no Twitter anda aí uma carneirada a atacar, veja só, o Noam Chomsky, só porque este ser humano maravilhoso e de raciocínio bem acima da média concordou com uma posição de Trump: é melhor desescalar do que escalar.
          Ao que isto chegou…
          Qualquer dia chamam-me “trumpista” só porque eu também concordo quando ele diz: a imprensa mente.
          Enfim.

          PS: obrigado pelo elogio, mas sei que os meus comentários não são grande coisa. Escrevo-os de rajada como desabafo após ler os artigos, sem sequer corrigir os erros que os dedos grandes fazem “sozinhos” no teclado tão pequeno do ecrã…
          Mas pelo menos, como a Estátua De Sal já me deu a honra de reconhecer, tento escrever uma opinião com base na verdade. O que só me dobra a satisfação quando um irado mal informado me critica.
          Se as críticas forem baseadas em factos, lido bem, e se for preciso corrijo e peço desculpa pelo erro. Há mais alguma maneira decente de se estar no debate de opiniões? Por mais contrárias que elas sejam?

          Isto não pode ser como no CrossTalk (RT, que passei a ver diariamente após o canal russo ser censurado) onde apesar de se dizer muita coisa certa, estão quase sempre todos de acordo… É patético. E pior, é assustador pensar que não foi a RT a aproximar-se do alegado pluralismo Ocidental, mas o Ocidente a aproximar-se do modelo da RT. E depois nós é que somos “putinistas”…

  2. Estátua de Sal tomo a ousadia de publicar aqui um artigo de um colega meu que muito aprecio. Vai fora de contexto pelo que peço desculpa.

    O Jardim dos Cravos

    Neste canteiro do sul da Europa, a terra foi cinzenta e repressiva durante quase meio século. O jardineiro-mor munido de regador na mão, derramava o sangue e o silêncio do seu próprio povo, no solo árido que idolatrava como Pátria. Era um tratador exímio do seu jardim, toda e qualquer planta que viesse em flor, era classificada como erva daninha, e queimada pela raiz. Tinha grandes e severas alfaias, que devastavam tudo do Minho ao Algarve, enquanto enviava para outro continente, as suas jovens sementes, para lutarem num conflito sem sentido. Era um majestoso jardineiro dum canteiro que vivia sempre na estação de inverno e que dava boa vida aos ‘portugueses de bem’, e uma vida de miséria ao povo. Saber ler e escrever, e trabalhar por tostões, era este o expoente máximo da ambição da juventude, que tinha como certo: a guerra, e a tortura, se ousasse ‘resmungar’ da generosa dádiva do grande jardineiro do canteiro!
    Um dia o jardineiro caiu, e noutro dia, no dia 25 de Abril caiu de velho o seu estado novo. A partir desse dia, a liberdade inundou o canteiro e a vida dos portugueses pôde florir em todos os tons e expressões! Passado outro quase meio século, a liberdade deu origem a uma vasta vegetação, de onde eclodiram muitas flores, e algumas ervas daninhas. O jardim de cravos continua imperfeito, mas é incomparável superiormente ao canteiro árido e seco que outrora existira. Hoje o jardim é tão vasto, que permite que num canto deste canteiro existam cravos negros que prometem secar tudo à sua volta, e voltar a glorificar o antigo jardineiro. Mas quereremos nós retomar à seara estéril? Queremos nós voltar à total imperfeição, porque encontramos algumas imperfeição na obra inacabada d’Abril?
    Um dia contaram-me que um homem contratara um jardineiro muito jovem, para tratar dos
    seus canteiros. Apesar de receoso da sua juventude, o homem confiou nele. No final do primeiro dia de trabalho, o jovem chegou perto do homem e pediu-lhe para fazer um telefonema. Embora não quisesse, o homem escutou a sua conversa:
    – A senhora precisa dum jardineiro? — perguntou o jovem ao telefone.
    – Não. Eu já tenho um. — respondeu a senhora do outra lado da linha.
    – Mas eu para além de jardinar, também tiro o lixo.
    – Obrigado, mas isso, o meu jardineiro já faz.
    – E se lhe disser que eu limpo todas as ferramentas no final do serviço!
    – O meu jardineiro… também faz isso…
    – O meu preço é um dos melhores.
    – Não, muito obrigada! O preço do meu jardineiro também é muito bom.
    Depois do jardineiro desligar o telefone, o homem disse:
    – Parece que não conseguiu uma nova cliente!
    – Nada disso… Sabe… o jardineiro dela, sou eu! Estava a medir o quanto ela está satisfeita…
    Eu nasci depois da revolução dos cravos, mas apesar do capítulo dos capitães de Abril, ter estado sempre naquelas últimas páginas dos manuais de História, que nunca foram lidas na sala de aula, eu não me deixei ensarilhar na ignorância e não me deixo levar pelo vento da desgraça, do racismo, da pena de morte e de outros aromas bafientos do passado. Porque a liberdade que Abril instaurou neste jardim, liga aos portugueses várias vezes e chama-os à urna de voto, para medir a sua satisfação, e nós podemos nessa altura limar as imperfeições da democracia! Mas atenção, lembrem-se que a liberdade de Abril, permite plantar laranjeiras, roseiras, frutos vermelhos, e outras iniciativas, mas neste jardim, ninguém pode tirar os cravos vermelhos!
    Ricardo Jorge Neto
    May 2

  3. Que falta nos fazia os esclarecimentos de António Filipe. Há males que vêm por bem. E nem tudo é mau pelo facto do António Filipe ter saído do parlamento

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