As sanções impostas à Rússia são um sinal claro de novos tempos na política global

(José Sócrates, in CartaCapital, 11/03/2022)

(É estranho (ou talvez não) que o melhor texto e análise que lemos, até à data, sobre a guerra na Ucrânia, subscrito por gente do mundo da política portuguesa, seja assinado pelo ex-Primeiro Ministro José Sócrates. Fugindo do fanatismo azul e amarelo e demonstrando uma correta avaliação da geopolítica envolvida nos eventos e das consequências que ela acarretará em sofrimento para os povos da Europa, isto é, para todos nós. É ler, pois, e refletir. E não digam que Sócrates também é pró-russo…

Estátua de Sal, 18/03/2022)


Duas semanas depois da invasão, é possível identificar a linha de força da nova ordem em construção, a separação dos mundos.

Em 1988, o dirigente soviético Georgi Arbatov afirmou perante uma audiência norte-americana que “lhes iriam fazer uma coisa terrível – vamos privar-vos de um inimigo”. Trinta e quatro anos depois, a agressão da Rússia à Ucrânia devolve o inimigo ao Ocidente e dá-lhe ainda alguém a quem odiar profundamente, o presidente Vladimir ­Putin. A brutal e injustificada invasão constituiu um sério abalo na reputação da Rússia enquanto potência mundial e dá um novo fôlego político à União Europeia e à Otan. A guerra da Ucrânia tem todo o potencial para vir a ser registrada na história como o início de qualquer coisa nova na organização política global.

As interessantes discussões sobre a nova ordem mundial destes últimos anos costumam girar à volta de duas visões alternativas. Para uns deveria assentar num acordo entre as principais potências capaz de impulsionar a cooperação multilateral. Para outros, aquela ordem deveria resultar do estabelecimento de esferas de influência que, uma vez respeitadas, constituiriam a forma mais segura e eficaz de estabelecer a paz no mundo. Como muitas vezes aconteceu no passado, o debate em curso foi, no entanto, subitamente interrompido pela História, que insiste em nos lembrar que as diversas “ordens mundiais” sempre resultaram mais da contingência política e do incidente fortuito do que de doutrinas estratégicas previamente concebidas. Mais ainda: a força dominante por detrás delas foi sempre o medo e o ódio ao inimigo, não o desejo de cooperação na construção de um mundo melhor. O que quero dizer é que, infelizmente, as ordens políticas mais fortes nasceram de forma negativa, nunca foi acerca do que queriam os diferentes países, mas do que não queriam. Nunca foi acerca de cooperação, mas de alianças para fazer frente aos inimigos comuns. Este momento, infelizmente, não é diferente. O que quer que seja que esteja a nascer desta situação de guerra trará consigo a lógica da exclusão baseada no medo e no desprezo do inimigo. Para a escola cínica das relações internacionais, que também se diz realista, nada de novo debaixo dos céus.

Duas semanas depois da invasão, é possível identificar a linha de força da nova ordem em construção, a separação dos mundos. Dois campos, dois blocos políticos, dois mundos. De um lado, a China e a Rússia compondo o núcleo essencial de um bloco, do outro os ­Estados Unidos formando com os países do G-7 a vanguarda do grupo ocidental.

As sanções impostas à Rússia são um claro sinal destes tempos: separação dos sistemas financeiros, separação das economias, separação das empresas, separação das viagens aéreas, separação das ofertas culturais. A divisão da internet em duas pode muito bem ser o próximo passo. Os telefones de um lado não funcionarão no outro, as contas de e-mails de um lado não estarão ligadas ao outro, as aplicações eletrônicas de um lado não serão utilizadas no outro.

Até o desporto, que no passado sempre resistiu à pressão política da escolha de lados na Guerra Fria, resolveu entrar agora no jogo político de exclusão ao banir a Rússia das competições desportivas globais. Este parece ser o duplo mundo que nos aguarda – dois mundos reais, dois mundos digitais.

Na verdade, esse movimento de exclusão econômica não é novo, mas foi agora fortemente acelerado pela guerra. Há muito que as economias ocidentais colaboram para criar restrições à China na economia global, pela simples razão de lhes ser impossível aceitar que foi ela, a China, a vencer a batalha da globalização – e a vencer com as regras do Ocidente e com as instituições criadas pelo Ocidente. A mais ostensiva operação de exclusão são as restrições impostas à empresa chinesa Huawei, a mais importante fornecedora de tecnologia 5G, no acesso aos mercados de equipamentos de telefonia celular do mundo ocidental. As razões invocadas são de segurança nacional, mas, na verdade, a ameaça de segurança a que se referem resulta do sucesso econômico da China. Nada mal para os defensores do livre-mercado livre.

No fundo, é possível vislumbrar no atual discurso ocidental um desejo não confessado de regresso ao mundo da Guerra Fria, que, bem vistas as coisas, alguns consideram agora que talvez não fosse assim tão mau. Nesse mundo, dizem, estávamos a ganhar e ainda nos lembramos dele como um mundo seguro. A consequência desse discurso é óbvia: todo o esforço de globalização política dos últimos anos foi uma perigosa ilusão. A ideia de que poderíamos viver sem inimigos e a ideia de que poderíamos construir uma ordem à escala global baseada nos valores da cooperação e do direito internacional não passaram de uma aventura estouvada que deixou de lado as preocupações de segurança.

Um pouco por todo o mundo, em especial na Europa, o discurso dominante é agora o do medo e da desconfiança. Mais exércitos, mais armas, mais orçamento de defesa. Pela primeira vez, desde 1945, a Alemanha decide armar-se e a Europa aplaude a mudança. Não há dúvida de que a cultura política mudou. Leio um artigo de jornal que classifica esta guerra como o 11 de Setembro europeu. Sinto que vi esse filme e vêm-me ao espírito as palavras de Michael Ignatieff: “O terrorismo (…) tem conduzido a governos mais secretos, mais poderes policiais e a um aumento dos poderes executivos (…) em todos estes aspectos é a resposta ao terrorismo, mais que o terrorismo ele próprio, que tem feito pior à democracia”. É justamente isto que temo.

O dever dos democratas é bater-se para acabar com a guerra, não alargá-la.

Durante os quase 30 anos que se seguiram à Guerra Fria, muitos de nós tentaram centrar o debate político internacional na organização da globalização – a economia mundial, o ambiente global, a informação global, as doenças globais. Foi um tempo em que a lógica da política se virou para a abertura política, para o fim das fronteiras econômicas, para o mercado global e para a necessidade­ de construir instituições supranacionais capazes de produzir bens públicos globais. Nas palavras de Bill Clinton, talvez o maior arauto político destes novos tempos, “a globalização não era algo que nós pudéssemos desligar ou ligar. É o equivalente a uma força da natureza, como o vento e a água”. Estas palavras podem parecer hoje ingênuas, mas por detrás delas estava um pensamento: um só mundo, um só planeta, uma agenda de cooperação mundial.

Na altura, ninguém tinha ilusões. A globalização política e econômica não acabaria com o conflito político nem significaria o fim da história. Os debates sobre a globalização e sobre a melhor forma de a regular continuaram ferozes ao longo dos anos. Esses debates tinham como pano de fundo, no entanto, uma visão política cosmopolita que fosse capaz de deixar de lado os fantasmas políticos da terra e do sangue que sempre trouxeram consigo a intolerância, o nacionalismo e a xenofobia. Essas discussões parecem agora postas de lado à medida que são lentamente substituídas pela paranoia do medo e da segurança nacional.

Nesta loucura que parece agora varrer o mundo, fazem falta as vozes dos países não alinhados, dos países que defendem a paz, o direito internacional e a resolução pacífica dos conflitos. Nenhum dos grandes problemas mundiais, nem sequer os de segurança, terá solução sem cooperação à escala global. É por essa razão que o lento caminho de dividir o mundo em dois blocos me parece ser tão desesperador. Em face do que vejo, não consigo deixar de pensar que a humanidade é capaz de fazer melhor.


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3 pensamentos sobre “As sanções impostas à Rússia são um sinal claro de novos tempos na política global

  1. As teses de Março.

    Sem energia barata não há globalização que resista. A energia barata entrou na recta final antes da invasão da Ucrânia. Quem tem mais a perder com o fim da globalização não é o Ocidente.

  2. A História, já pelo simples facto de ser História, está sempre a registrar „o início de qualquer coisa nova“. No caso da guerra da Ucrânia essa „qualquer coisa nova“, tristemente nova, resulta do excesso de expansão dos interesses americanos, configurados pela NATO, para o Leste europeu. A intervenção militar na Ucrânia que, na visão socrática e também de alguns crentes da religião ocidental, „constitui um sério abalo na reputação da Rússia“ é de facto a reposição da sua reputação a nível mundial. Esta a tal „qualquer coisa nova“ pouco definida na cabeça de Sócrates. E para captar o „novo fôlego político“, que Sócrates julga ver na União Europeia e na OTAN, até já há muita gente de espelho na mão.
    E onde Sócrates vê „separação“, „separação“, „separação“, do que se trata é de uma nova arrumação de forças, da busca de um novo equilíbrio de interesses mais consentâneo com o nome „globalização“. Uma globalização mais justa, também isto será „o início de qualquer coisa nova“.

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