Resposta a Manuel Carvalho

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 12/03/2022)

No dia anterior ao artigo mencionado por Manuel Carvalho, publicava o Jornal de Letras um artigo meu intitulado É ainda possível pensar com complexidade? A certa altura pode ler-se o seguinte: “No eixo Atlântico Norte, a polarização de opiniões é tal que deixou de ser possível introduzir complexidade na discussão, uma posição muito semelhante à que se viveu no imediato pós-11 de Setembro. Qualquer posição que contextualize ou problematize é considerada traição. Putin também tem seguidores igualmente primários. Alguns sectores da esquerda (por exemplo, no Brasil e em Portugal) recusaram-se a condenar a invasão da Ucrânia. Talvez por pensarem que Putin é um legítimo herdeiro da União Soviética? Não se terão dado conta de que Putin é um líder conservador próximo da extrema-direita europeia crítico de Lenine e com contactos privilegiados com Marine Le Pen e Donald Trump?

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Aliás, o apoio do partido comunista russo a Putin é comedido e alguns dos seus líderes não têm hesitado em distanciar-se dele. Em entrevista à BBC, em 28 de Fevereiro, o vice-presidente do Comité de Política Regional da Duma do Estado do Partido Comunista Russo, Mikhail Matveev declarou: ‘No meu entendimento, o potencial de reconhecer as repúblicas [Donetsk e Lugansk] e de lhes dar um novo estatuto mais protegido, como foi o caso da Abecásia e da Ossétia do Sul, não foi aproveitado. Aparentemente, o partido da guerra decidiu que não havia sequer necessidade de tentar construir uma nova relação entre a liderança da Ucrânia e essas repúblicas noutras realidades, sendo certo que o exército russo estacionado lá funciona como um escudo e garante que não haverá ataques às cidades de Donbass. Eles [Governo de Putin] nem tentaram. Na minha opinião, esta lógica agressiva está agora a levar a uma crescente exasperação. Quanto mais pessoas forem mortas de ambos os lados, mais difícil se torna parar a batalha… Este é um grave erro da liderança russa que não usou todas as possibilidades para uma solução pacífica do problema. Decidiram cortar imediatamente todas as perguntas acumuladas com um só golpe’”.

Sobre o que penso de Putin a da invasão da Ucrânia dispenso-me de maior especificação. Claro que não se exige que um director de jornal, que aliás muito aprecio, leia tudo o que se escreve sobre os temas da actualidade e não é por isso que lhe respondo. Aliás, é de saudar como um sinal da vitalidade da democracia em que vivemos que o PÚBLICO tenha publicado um artigo contra o qual se insurgiu em termos tão veementes o seu director. Não conheço muitos jornais no mundo onde isto seria possível. Parabéns ao PÚBLICO, pois. Respondo-lhe porque a precipitação e a linearidade da sua condenação do meu texto são reveladoras do tempo que vivemos e não desisto de ser sociólogo da minha circunstância.

Na minha longa vida passei já por três momentos em que não foi possível pensar com complexidade e contracorrente e em que paguei um preço por isso. O primeiro foi logo depois do 25 de Abril. Na altura houve uma viragem brusca e radical à esquerda e quem não estivesse connosco estava contra nós. Penso que fui na altura o único director de uma Faculdade de Economia que não era filiado no PCP ou num partido próximo. Fui publicamente acusado de ser um agente da CIA (talvez porque tinha acabado de terminar o meu doutoramento na Universidade de Yale). Valeram-me os estudantes ao eleger-me (não sabiam se eu era da CIA, mas pelo menos sabiam que eu fora o único professor a ensinar-lhes Karl Marx antes da revolução de Abril).

O segundo momento foi no 11 de Setembro de 2001. Estava nos EUA — sim, porque nos últimos 35 anos vivi quase metade de cada ano nos EUA, afiliado a uma universidade, e se pensasse deste país o que me é atribuído por M.C. este facto teria difícil explicação — e participava num debate na Universidade de Columbia (Nova Iorque) sobre direitos humanos. Porque na minha intervenção, e apesar de ter condenado veemente o ataque às Torres Gémeas, ousei falar da necessidade de respeitar os direitos humanos em todas as circunstâncias e não desistir de continuar o diálogo intercultural com o mundo islâmico, fui invetivado violentamente pelos meus colegas de Harvard que quase me consideraram filoterrorista. Nos anos seguintes, estes colegas viriam a justificar a tortura e outras coisas piores contra a Constituição dos EUA. Estamos num novo tempo de extrema polarização. Não a vi a na invasão e destruição do Iraque nem noutras (muitas) situações.

Para mantermos a capacidade de pensar mesmo nos momentos de perigo, como nos ensinou Walter Benjamin, não é nunca saudável que se atinja este nível de polarização. Tal como não é aceitável passar em silêncio a violência as atrocidades quando elas ocorrem mais longe de nós e não mobilizam a nossa comunicação social. A vida humana para mim tem um valor incondicional. É terrível o sofrimento dos ucranianos que queriam tão pouco a guerra quanto qualquer de nós. Mas dói-me igualmente as mortes injustas que ocorreram nos mesmos dias noutras guerras em outras regiões do mundo. Nenhuma morte injusta pode relativizar ou justificar qualquer outra morte injusta. Segundo uma conhecida organização que regista as mortes em guerra em todo o mundo, eis a estatística do período inicial da invasão da Ucrânia (20 de fevereiro-4 de Março): 114 (Ucrânia), 23 (Iraque), 511 Iémen, 187, Síria, 192, Mali, 527, Nigéria, 155 (República Democrática do Congo), 180 (Somália), 112 (Burkina Faso). O facto de nenhuma das outras tragédias ter merecido qualquer atenção dos meios de comunicação não tem para mim outro significado ou interesse senão o de me permitir conhecer os mecanismos sociológicos da formação do pânico moral e da indignação pública.

É típico das situações de extrema polarização que se atribuam intenções conspirativas ou ocultas à análise que se faz de uma da situação. É isso mesmo que faz M.C.. Tem obviamente uma leitura oposta à minha de tudo o que se passou depois de 2014. Mas nem por sombras me passa pela cabeça acusá-lo de ser um agente da CIA. É legítimo que pense diferente. O futuro acabará por esclarecer. Como foi o futuro quem esclareceu que afinal não havia armas de destruição massiva no Iraque, infelizmente só depois de muitos milhares de mortos e de um país destruído.

Há, no entanto, um tema que não convém passar em claro porque é de iminente relevância para a Europa. O neo-nazismo não é coisa de menos na Ucrânia. Este país é o único onde líderes neo-nazis foram condecorados pelo Presidente da República e onde as suas milícias (nomeadamente o Batalhão Azov) foram integradas no exército regular. Para não se pensar, mais uma vez, que é conspiração, remeto os leitores para think tank informal da NATO, o Atlantic Council.

Reconheceu em 2018 que a Ucrânia tinha um problema de extrema-direita, e em 24 de fevereiro de 2020 publicava um artigo intitulado Why Azov should not be designated a foreign terrorist organization. Uma leitura atenta do documento esclarece mais do que eu posso aqui fazer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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6 pensamentos sobre “Resposta a Manuel Carvalho

  1. Eu bem tento entender mas não chego lá. Na questão da “complexidade” trata-se de “pensar com complexidade” ou pensar a complexidade? Não é assim que a complexidade está nos factos da realidade e da vida e para a entendermos precisamos de instrumentos intelectuais apurados capazes de os destrinçar? Se os fenómenos da realidade já de si são complexos, introduzindo-lhes ainda mais complexidade para os entender, então é que não chegamos lá das pernas.
    A “invasão russa” da Ucrânia é um desses fenómenos complexos. Sou dos que recusa a designação mesmo que tenha de engolir em seco quando me chamam “primário”. Inclino-me tal como o PCP para a “intervenção militar”. Mais: “intervenção militar” preventiva. Preventiva a evitar que a NATO, esse coro de anjos celestiais, lá instale os seus arraiais. Se há crítica a fazer à “intervenção russa” só pode ser por vir tarde e a más horas. Agora deixarei de ser um primário para ser um retinto primário. Não faz mal.
    Para destrinçar a complexidade da “invasão russa” seria necessário recuar a 1990 quando o ingénuo Gorbatchov embarcou no canto de sereia dos presidentes e secretários de estado americanos. Seria necessário ter em conta a expansão da NATO para Leste, toda bem cozinhada e temperada nos departamentos do Pentágono, onde a “Europa” só foi chamada para engolir, pagar e calar. Seria necessário ler a partir de 2000 os sonhos lindos de Putin no Reichtag alemão, onde foi aplaudido de pé; ler os seus apelos para que não alargassem a NATO para Leste; ler os seus avisos para que não instalassem armas viradas contra a Rússia nas novas bases militares dos novos países ocupados pela NATO. Seria necessário estudar bem o golpe de estado na Ucrânia em 2014 com os nazis dos batalhões Azov e o “investimento” dos milhares de milhões de dólares americanos. Seria necessário perceber um pouco de geopolítica e de geoestratégia militar e de saber da posição estratégica da Ucrânia quando o objectivo é o cerco e assalto à Rússia. Bem, condenar a “invasão russa” até nem custa nada, basta fechar os olhos e mandar f*der os russos com os seus medos e as reminiscências do seu passado.
    Mas que estou eu para aqui a escrever? Não bastaria conhecer o ADN da NATO? Não foi em 1949, o Portugal fascista de Salazar um dos seus membros fundadores? Sinceramente, “pensar com complexidade” só pode mesmo servir para escamotear as mais profundas aspirações de qualquer povo para viver em paz.

  2. “Alguns sectores da esquerda (por exemplo, no Brasil e em Portugal) recusaram-se a condenar a invasão da Ucrânia. Talvez por pensarem que Putin é um legítimo herdeiro da União Soviética? Não se terão dado conta de que Putin é um líder conservador próximo da extrema-direita europeia crítico de Lenine e com contactos privilegiados com Marine Le Pen e Donald Trump?”

    Penso que a hipótese que apresenta não tem poder explicativo – o que não abona muito a favor dela – porque é contra factual: toda a esquerda sabe muito bem quem é Putin e os seus defeitos, que, infelizmente, não lhe pertencem em exclusividade.
    Proponho explicar que essa reticência na condenação da invasão resulta de perceberem que, se o fizerem , estão a fazer o jogo dos Estados Unidos e seus acólitos porque, se Putin invadiu a Ucrânia, foi porque não lhe deixaram alternativa e quando não há alternativa e há ma fé do outro lado o que é que se espera?!
    Pensemos no que teria acontecido se não invadisse, ou se só invadisse as províncias problemáticas. Acha verdadeiramente que a Nato não iria aceitar a integração da Ucrânia? Se não tivesse tal intenção, teria sido muito fácil assinar um compromisso que estabelecesse que a Ucrânia se iria assumir como um pais neutral. Deram algum passo nesse sentido? Não, ficaram, como se costuma dizer, na retranca, e deixaram que as coisas seguissem o seu curso normal, vindo depois verter lágrimas de crocodilo pelo povo ucraniano.
    Putin invadiu porque foi empurrado para tal e os Estados Undos/ Nato percebiam muito bem o que estavam a fazer e não se preocuparam minimamente porque, ao nível de espetáculo mediático, a Rússia e o Putin iriam ficar mal na fotografia, mas não foram capazes de pensar no longo termo e no sofrimento a que, com toda essa hipocrisia, iriam dar aso. Claro que também não pensaram noutras coisas, mas agora não vem ao caso.
    Se eu souber que o meu vizinho adquiriu armas , que guarda em casa, e tiver a perceção nítida que a sua intenção é dominar-me prejudicando os meus interesses e limitando os meus movimentos, que é que acha que eu faço? Fico à espera do acontecimento?

    • Com que então o canalha do Putin foi empurrado para a guerra contra os ucranianos? Perguntas: que direitos tem a Rússia sobre a Ucrânia, ou sobre outro país qualquer, livre e soberano? Mas a Nato têm mísseis apontados a Moscovo? Mas a Ucrânia pertence à NATO? Não será antes Putin a desenvolver o seu sonho de reconstituir o Império Soviético e a NATO a ser um simples pretexto? Como é possível gente que se diz «das esquerdas», muito humanista, anti-imperialista, blá, blá, blá, a justificar a invasão de um povo livre? Cegueira pura… ou talvez colaboracionismo encapotado.

      • Não deixa de ser curioso que o atual chefe ucrâniano, ao fim de 15 dias, esteja agora disposto a ceder ao que não cedeu antes da invasão Russa. Era necessário ter este comediante populista ajudado ativamente a destruir o seu próprio país, para agora vir dizer que as condições iniciais (saída da Nato, reconhecimento das repúblicas, da Crimeia) já são aceitáveis? É e este comediante o herói do mundo livre, como li na capa da inenerrável revista Sábado? Não percebo: o que não valia ontem e que levou a esta guerra brutal que nos pode levar a todos para inferno já vale hoje?

  3. Claro bravo….a Nato ia ,vai fazer um passeio Turistico à Ucrania e que grande passeio com dois (2) mil km de Fronteira com a Federaçao Russa…..ea Nato como tem asas de anjo ,que o digam os Povos dos Balcãs e outros que viram a Angelica Nato e dos “presentes ” que vem ofereçendo sobre a cabeça dos Povos aonde intervem ……Claro que todos os povos que sofreram ,não eram “Livres” pq quem determina quem são os Povos Livres e a Nato eo AMJBB…..
    a

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