Esta guerra que nos querem vender

(Miguel Sousa Tavares, 12/02/2022)

Parece que o mundo não tem suficientes problemas globais urgentes, com a pandemia, as alterações climáticas, as migrações do sul para o norte, a crise do preço das matérias-primas e a inflação, e ainda precisa de lhes acrescentar uma guerra — uma guerra a sério, capaz de destabilizar tudo, de causar a morte a muitos milhares de seres humanos, lançar o caos na economia e relançar em força o espírito da Guerra Fria, que ainda alimenta tantas nostalgias.

Putin, garantem-nos há meses os nossos “especialistas” ocidentais, prepara uma invasão iminente da Ucrânia: marcada primeiro para Janeiro, depois adiada para o início de Fevereiro e agora garantida para a semana que vem. Mas desconfiem também disto: de cada vez que alguém fora do círculo belicista NATO-Estados Unidos-Inglaterra inicia diligências paralelas para encontrar uma saída que evite a guerra (o chanceler Scholz ou o Presidente Macron), ou de cada vez que é o próprio Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a pedir aos seus aliados ocidentais que parem com a “histeria” da guerra iminente, logo aumentam as “notícias” na imprensa ocidental sobre novas movimentações de tropas russas com vista à invasão. Sim, é verdade que Putin tem os meios para iniciar a invasão de parte ou de toda a Ucrânia quando o quiser e se o quiser. Mas ainda ninguém respondeu cabalmente a esta pergunta: porque haveria Putin de querer invadir a Ucrânia, o que teria a ganhar com isso, no curto e no longo prazo? A Ucrânia não será nunca, para o Exército russo, um passeio na Crimeia: é 25 vezes maior do que a Crimeia, e a sua população de 43 milhões de pessoas é dividida entre 73% de ucranianos e 22% de russos, contra apenas 2,4 milhões de habitantes na Crimeia, dos quais 65% de russos e 15% de ucranianos. Mesmo que o referendo posterior à anexação russa de 2014, que Moscovo sustenta ter-lhe sido favorável com 94% dos votos, não seja credível, é óbvio que na Crimeia — que Potemkin conquistou para Catarina, a Grande, em 1783, e que o ucraniano secretário-geral do PCUS Nikita Khrushchov deu à Ucrânia, em 1954 — Moscovo está em casa, enquanto na Ucrânia teria pela frente umas Forças Armadas poderosas, uma resistência feroz e um povo maioritariamente hostil, que transformaria a ocupação num inferno permanente. E por mais que Putin seja um saudosista do Império russo e soviético, também é suficientemente pragmático para compreender os custos que tal aventura lhe acarretariam, com a Rússia mergulhada em nova Guerra Fria, cercada de inimigos por todos os lados e reduzida à condição de pária entre as nações, só com o cordial inimigo chinês como potencial aliado.

Não, é muito provável que Putin não queira invadir a Ucrânia, nem queira uma guerra. Que queira outras coisas, paras as quais é preciso ouvi-lo com atenção. Para começar, isso mesmo: ser escutado. Lembrar que, apesar da actual guerra latente Ocidente-China, continua a existir uma terceira superpotência chamada Rússia, o segundo maior país do mundo, com o segundo arsenal nuclear, maior fornecedor à Europa de gás natural (agora considerado “energia verde” pela UE), e cujos interesses estratégicos não podem, pura e simplesmente, ser distratados, como se não merecessem qualquer consideração. Quem conhecer a história da Rússia sabe que no subconsciente de todos os russos está o medo ancestral do cerco. Putin vê nos sucessivos alargamentos da NATO aos ex-países da órbita soviética e aos vizinhos da Rússia uma manobra de cerco, e, ao opor-se a ela, ele não está, necessariamente, a manifestar um saudosismo imperial, mas a defender aquilo que os russos pensam: é política interna, não é política externa.

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E a verdade é que, se a NATO foi criada para enfrentar a ameaça soviética, uma vez dissolvida a URSS e extinto o Pacto de Varsóvia, foi preciso uma grande ginástica política para justificar a sua continuidade — que, aliás, e por outras razões, Donald Trump pôs claramente em causa. Mas não só a NATO não se extinguiu como se foi alargando a novos membros e a novos territórios, abraçando e cercando a Rússia, mas não só. Na sequência do 11 de Setembro, e torcendo de forma clara os princípios da sua carta fundadora, a NATO foi intimada pelos Estados Unidos a segui-los na caça à Al-Qaeda e a Bin Laden, no Afeganistão. Mas como a Al-Qaeda era uma ameaça planetária e o 11 de Setembro chocou todos, abriu-se pacificamente o precedente. Porém, não havia Al-Qaeda no Afeganistão, e Bin Laden foi capturado e morto comprometedoramente no Paquistão, um aliado americano. E, depois de anos de inúteis e mortíferos esforços de nation building, os EUA, logo seguidos pelos seus fiéis aliados, bateram em retirada daquele vespeiro, entregando-o à barbárie dos talibãs. Mas aprendemos a lição? Não.

Quando se tem uma organização que deixou de ter como fim a preservação da paz através da dissuasão para passar a ser um instrumento de guerra sempre latente, comandada por um pistoleiro irresponsável e tão sensível aos interesses dos grandes fabricantes de armas, a qualquer guerra falhada segue-se invariavelmente uma nova tentativa de guerra feliz — como se isso pudesse existir.

Eu conheci a NATO em 1979, no seu quartel-general em Bruxelas, numa das minhas primeiras viagens como jornalista ao estrangeiro. A ordem de trabalhos da reunião extraordinária não podia ser mais dramática: discutia-se que resposta dar à iniciativa da URSS de colocar mísseis de curto e médio alcance — os SS-20 — na Alemanha Orien tal, Polónia e Checoslováquia. Aquele passo, tomado pelo louco do Brejnev, era uma escalada determinante que rompia o periclitante “equilíbrio do terror” em que se vivia na Europa. Significava que, em lugar de esperar que um míssil disparado da Rússia demorasse 20 ou 30 minutos a atingir uma capital europeia, bastariam agora 5 minutos para isso, não dando tempo ao lado de cá de tentar interceptar os mísseis e até de ripostar — o mesmo que Khrushchov tentara 16 anos antes, em Cuba, e que Kennedy travou com a ameaça de uma terceira guerra mun dial. Fora do edifício da NATO, uma multidão de manifestantes, vindos de toda a Europa, gritavam e ostentavam cartazes dizendo “Better red than dead” (“Antes vermelhos do que mortos”) — o mesmo que apregoava essa organização pró-soviética chamada Conselho Mundial da Paz, em Portugal representada pelo ex-PR Costa Gomes e um patético personagem de seu nome Silas Cerqueira. Pelo contrário, eu não tive dúvidas algumas de que, se a NATO não respondesse, não só acabaríamos vermelhos como também provavelmente mortos. Mas a NATO não vacilou, apesar das resistências em contrário: ripostou com a instalação dos Cruise e Pershing II junto às fronteiras do Pacto de Varsóvia, e esse gesto de resistência viria a apressar o fim da URSS.

De então para cá assistimos à 1ª Guerra do Golfo, que George Bush pai desencadeou, com toda a legitimidade, para expulsar Saddam Hussein do Koweit, que ele acabara de invadir, e que terminou cumprida a missão. Mas depois a NATO envolveu-se na guerra civil da ex-Jugoslávia, na infame guerra de bombardeamento aéreo de Belgrado, cujo objectivo primeiro foi escoar material militar americano em vias de ficar obsoleto e permitir à indústria militar nova geração de contratos com o Pentágono.

E envolveu-se na 2ª Guerra do Golfo, desencadeada pela vaidade oca de George Bush filho, “a President at war”, com o pretexto de aniquilar as armas de destruição maciça de Saddam, cuja existência não estava provada e cujas “provas irrefutáveis”, de que falava Durão Barroso, se revelaram grosseiramente forjadas.

Uma guerra em que a NATO (e Portugal) se envolveram contra o voto do Conselho de Segurança da ONU e que teve como consequência, até hoje, a disseminação do terrorismo islâmico por todo o Médio Oriente. Lembrem-se disso. Lembrem- -se das aventuras desastrosas, das guerras ilegítimas e das suas consequências trágicas em que a NATO já nos envolveu desde que ficou sem inimigo natural e passou a procurá-lo algures. Lembrem- -se de como o Ocidente respondeu, e bem, às tentativas da URSS de o cercar de mísseis de alcance próximo, em Cuba e na Alemanha, em 1962 e 1979. É isso mesmo que a NATO pretende fazer agora com a Rússia. Cercá-la de aliados seus e posteriores inimigos da Rússia — à força, se necessário, pois ninguém ainda ouviu a Ucrânia ou a Geórgia pedirem para aderir à NATO. E depois armá-los para os defender da ameaça russa. O que, aliás, já estão a fazer, sem esperar sequer pela adesão. Porque, se até há umas semanas o discurso, do lado de cá, é que em caso de invasão russa se responderia com sanções económicas e financeiras nunca vistas, agora, e no meio da gritaria permanente com os 100 mil soldados russos do lado de lá, ninguém fala dos soldados e armas que se vão colocando no terreno do lado de cá. “São apenas manobras defensivas”, explicava há dias um “especialista” português.

Defensivas? Trazer dos Estados Unidos a 82ª Divisão Aerotransportada, a unidade de combate de elite do Exército americano, para a Polónia, será uma manobra defensiva ou a preparação de uma sanção económica? Acordem, europeus! Porque Biden e Johnson precisam de tensão ou guerra para subir os índices de popularidade interna e a Polónia precisa de transfigurar a sua imagem de pior parceiro europeu em tempo de paz para parceiro indispensável em tempo de guerra, querem vender-nos uma guerra sem causa.

Uma guerra que os ucranianos suplicam que não lhes imponham, que os russos pedem que evitem e que nos fará, a nós outros, na melhor das hipóteses, retroceder anos, em vez de avançar em direcção ao que importa.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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3 pensamentos sobre “Esta guerra que nos querem vender

  1. A Russia faz o que qualquer faria se alguem pretendesse instalar-se no seu Quintal….que fariam os residentes na Peninsula Iberica ,se as tropas Russas se aproximassem desta parte da Europa ,fossse por ou terra ou mar?A Europa ,pelo menos os Franceses ,atraves do seu Presiente tem tomado uma posiçao que defende não só a FRança de “aventuras” dos EUA ….que tem feito a UE de concreto para disuadir o outro lado do Atlantico ?…..As consequencias para a Europa depois duma Pandemia que destruiu Vidas e empregos ,seráde consequencias imprevisiveis e fragilisará a UE ,objectivo que os USA ainda não desistiram depois de incentivarem a saída da GB ….apesar do sue aliado ,GB,neste caso alinhar com a UE e perceber que a “aventura” dos USA fragiliza a toda aEuropa e os seus interesses Económicos ,incluindo a rede de gaz fundamental e vital para todo Continente Europeu ……

  2. Uma correção: os soviéticos colocaram mísseis em Cuba em resposta à colocação, pelos norte-americanos, de mísseis na Turquia. Toda a gente sabe da cedência soviética mas poucos sabem (porque os norte-americanos calaram isso bem caladinho) que os EUA também tiveram de ceder, retirando os seus mísseis da Turquia.

  3. Eu nem sempre estou de acordo com o que MST escreve nem com as suas opiniões CONTUDO considero este artigo muito lúcido e extremamente bem argumentado , ,,chamo só a atenção que a Rússia tem uma dimensão de 17.3 M de km2 seguido pelo Canadá com ± 10Mkm2 PELO que é o Maior país do mundo {em extensão territorial )

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